“Enquanto morava no exterior, comecei a gravar conversas dos meus colegas de quarto. Esta curta-metragem é a minha própria interpretação de uma dessas gravações”, lê-se na sinopse de Lessons in the Kitchen, obra cinematográfica premiada na 25.ª MNJC, promovida pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), de 1 a 3 de dezembro, em Almada.
O filme, explica-nos Mariana, começou a ser desenvolvido em 2018, durante um programa de Erasmus na Bélgica, onde fez a sua primeira cadeira de animação. O projeto documental acabou por ficar na gaveta até à conclusão da sua licenciatura em Design de Comunicação e foi finalizado três anos mais tarde, já quando aluna de mestrado de Animação em Stop-Motion. Em âmbito académico, realizou Pobre António, história fictícia centrada numa personagem presa à sua rotina.
Em videochamada com o Gerador, a artista multidisciplinar de 25 anos falou da surpresa em levar o prémio do concurso de jovens e do incentivo que o reconhecimento traz. “Sempre senti que era mais difícil competir com filmes de imagem real”, afirma. Numa conversa sobre o seu processo criativo e a versatilidade do mundo da animação, Mariana revela ainda que um desafio a ultrapassar é a impossibilidade de viver apenas do cinema animado: “[No momento,] tenho de estar sempre com outro trabalho. Agora estou a tentar aprender como navegar o mundo das candidaturas e da produção – coisas que, talvez, quando as pessoas veem os filmes de animação, não pensam, mas há muita estrutura que tem de haver por trás”.
Depois de ter concluído a licenciatura em Design, o que te levou à animação e ao stop-motion?
Sempre tive muitas histórias em minha cabeça. Escrever não é o meu forte (risos), então o cinema e a animação, em específico, têm um espectro de possibilidades de criar algo, em vez de as pessoas lerem para criarem elas próprias essa imagem. A animação é mais livre em comparação com o cinema de imagem real, que tem de ser com pessoas e cenários – pode ir para os efeitos visuais, mas é diferente. Acho que foi isso que mais me atraiu, ter abertura para a imaginação e para criar aquilo que eu quisesse.
O teu site mostra que os bonecos que usas nos teus filmes são produções tuas. O que mais gostas nesse processo?
Trazê-los para a realidade. Acredito que o 2D fica muito em papel, e tem uma parede entre o espectador e o desenho – não é real. Quando se passa para o stop-motion, acabam por ver que aquilo foi mesmo construído e, no ecrã, parece que é uma pessoa que existe.
Na tua biografia, falas do interesse em “documentar e contar histórias sobre as pessoas e as lutas que enfrentam em sua vida cotidiana” e também afirmas que as tuas personagens tentam “refletir as peculiaridades que tornam cada pessoa especial e diferente”. Que desafios isso envolve?
No caso do Pobre António, a dificuldade foi separar a personagem de mim mesma. No documental, é deixar de parte a pessoa que és. O que queres contar tem de ser através das outras pessoas, então é tentar chegar a elas para ver o que querem transmitir. É interessante despegar-se completamente da tua própria personalidade e das tuas vivências e quase entrar na alma de outra pessoa e perceber como ela vive.
O que te motivou a fazer a candidatura à MNJC?
Em mostras, estou habituada a só estar no mundo do cinema e do cinema de animação. A MNJC foi a possibilidade de também partilhar o meu trabalho com outras áreas artísticas. É um ambiente diferente, sair do mundo que é o cinema e ter contacto direto com outros artistas.
Como é um filme em língua italiana, estava a mandar [candidaturas] mais para festivais em Itália e ainda a perceber se funcionava cá em Portugal, por ter muitos maneirismos do idioma. Foi interessante tentar explicar [a produção no contexto nacional], sinto que para cada festival era diferente. Para este, tinha de ser mais baseado na experiência que tive quando vivi o momento que registei e não tanto sobre a história em si.
Qual a ideia por detrás de Lessons in the Kitchen?
A ideia principal era documentar a minha experiência no estrangeiro. Tendo uma cadeira de cinema de animação e estando, ao mesmo tempo, a trabalhar o documental dentro da faculdade, achei essa a oportunidade perfeita para criar uma memória, uma coisa que ficasse no tempo. O processo foi fazer muitas gravações desse período. Eu deixava o gravador, ia embora e, quando voltava, via o que tinha saído (risos). Não tinha qualquer briefing ou restrições da parte dos professores, então foi divertido pegar nesses áudios todos e começar simplesmente a desenhar. Passei de um processo pensado e estruturado, com guião, storyboard, etc., para um processo muito livre – uma coisa que eu não estava habituada –, de ouvir, desenhar, ver o que sai e se faz sentido ou não – e não interessa.
Como é fazer a tua própria interpretação daquilo que os áudios registam?
Foi interessante, um mix de [achar que] devia estar mesmo a representar o que eles estão a dizer ou criar a situação em que eles se encontravam – não estavam a discutir, mas estavam exaltados (risos) –, e [de pensar que] também era uma coisa pessoal. Quando tenho muitos estímulos, divago. Parte do filme mostra isso, [quando] aparece um dragão que não tem nada a ver. Acho que representa a maneira da vivência de cada um quando está com outras pessoas – nem sempre estás completamente lá.
Na curta, falas da sensação de estar “lost in translation” (perdida na tradução) quando se vive no estrangeiro. Na tua opinião, qual é a importância de refletir sobre a nossa relação com as várias línguas e sotaques?
O facto de viver no estrangeiro também te dá uma perspetiva, quando voltas para Portugal, de quem vem de outros sítios, e acho que isso é importante. Faz-te ver a tua própria língua numa forma diferente. Há quase esta perspetiva um pouco egocêntrica de que a maneira como comunicamos é universal, mas nem sempre é assim. Uma pessoa, se não se mexe do próprio contexto, vive nesta bolha. [Viver no estrangeiro] faz-te refletir um bocado sobre a maneira como falamos. Mesmo dentro do próprio país, há tantas maneiras de comunicar diferentes. Também me faz pensar não só na própria linguagem, mas em como se cria. Por exemplo, quando faço ilustração ou design, penso que, se calhar, isto não é tão universal e [pergunto-me] se isto faz sentido no meu contexto e no dos outros.
As diferenças técnicas entre animação 2D e stop-motion interferem na tua maneira de começar um trabalho?
Primeiro penso no conceito e na história, só depois na técnica. Tenho sempre a preferência pelo stop-motion, mas depende do projeto. Há projetos que fazem mais sentido em 2D, outros em stop-motion ou outras técnicas quaisquer. Sinto que, às vezes, em projetos que tento definir a técnica em primeiro lugar, condiciono o processo criativo, então faz sentido fazer isso ao contrário.
Além daquilo que já exploraste em Pobre António e Lessons in the Kitchen, que outros temas gostarias de levantar em futuros filmes?
Quero trabalhar em temas que façam mais sentido para mim. Lessons in the Kitchen teve sentido no contexto em que me encontrava e o Pobre António foi um trabalho de grupo, então também havia muito input e até foram outras pessoas que escreveram a história. Agora é a oportunidade de refletir sobre os temas que eu quero contar. Estou a fazer um trabalho sobre o empoderamento feminino, à volta do feminismo e do papel da mulher na sociedade, e a desdobrar essa temática em dois projetos de curta-metragem: uma ficção, que estou agora a tentar desenvolver e a procurar produtores; e um documentário, a fazer um paralelo entre duas regiões e a falar com pessoas mais velhas para tentar perceber o que sentiam há 50 anos e o que acham que é o progresso deste papel da mulher na sociedade.
O cinema de animação esteve, recentemente, no centro das atenções com a nomeação para os Óscares. O que pensas sobre o assunto? Acreditas que o futuro do cinema de animação português é promissor?
Acho que sim. Há vários artistas de stop-motion e animação em Portugal com muitas ideias, só que não há espaço para as produzirem. O facto de estes filmes [nomeados aos Óscares] terem [tido] grande visibilidade lá fora fez, se calhar, as pessoas cá em Portugal pensarem que devíamos dar mais destaque a esta área, e isso é muito bom. Essas coisas têm que ver com o financiamento que recebemos de bolsas e do Estado, o que ajuda muito para poder haver mais produções cá dentro. Acredito que há muitos artistas que se vão embora porque não têm essa possibilidade cá em Portugal.