Tudo começou nos anos 1970, nos Estados Unidos da América, para onde Manuel Costa Cabral - professor, pintor e fundador do Ar.Co - viajou, com uma bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian. Movido pelas suas convicções, percorreu e investigou todas as escolas com o objetivo de analisar como estas funcionavam e, acima de tudo, perceber se, de facto, havia ou não uma metodologia do ensino das artes. Com uma grande bagagem de conhecimento e, como o próprio descreve ao Gerador, “com sangue na guelra e amadurecido”, Manuel Costa Cabral regressou a Portugal e, durante uma troca de ideias com os seus aliados, começou a idealizar um novo conceito de formação: uma escola que privilegiasse a liberdade artística. Colocaram mãos à obra, desde procurar espaços, arranjar autorizações a angariar fundos. “[Este processo] demorou nove meses, era a gestação do bebé”, recorda o fundador. O Ar.Co nasceu fruto de um trabalho de equipa, mas há um nome que Manuel Costa Cabral não deixa passar despercebido: a sua falecida esposa Graça Costa Cabral - escultora - que, durante a vida a dois, foi o seu braço direito e a sua maior fonte de força e inspiração, acabando por assumir a posição de cofundadora.
“Agarrámos em cento e vinte inscrições”, relembra Manuel Costa Cabral, e foi o início de tudo. Em 19 de fevereiro de 1973, a escola abriu ao público, numa altura em que “Portugal estava a passar por uma grande fase de renovação”. No mesmo ano, fundou-se também o jornal Expresso, o Partido Socialista ou, até mesmo, a Universidade NOVA de Lisboa. Mais tarde, deu-se o 25 de Abril que “mexeu com muita coisa” e, em 1975, o Ar.Co assumiu a forma de associação cultural, com o intuito de “formalizar um projeto pedagógico que um grupo de pessoas ligado às artes [fundadores e aliados] procurava fazer emergir em Lisboa, sendo este uma alternativa ao ensino oficial e ao ensino académico das Belas Artes”, conta Ana Martinho, responsável pela comunicação, programação e parcerias do Ar.Co, em entrevista ao Gerador. Atualmente integrante da direção, iniciou o seu percurso na escola enquanto aluna de Joalharia. “A par da formação e como parte integrante desta, o Ar.Co promove encontros e conferências com especialistas numa vasta gama de áreas, realiza exposições públicas incidindo sobre a produção escolar e, ciclicamente, sobre a produção nacional e internacional de uma ou várias das suas áreas disciplinares”, lê-se no site. Foi neste sentido que se constituiu enquanto associação cultural, para dar oportunidade às pessoas fora do Ar.Co de mostrarem as suas aptidões.
Ainda assim, a componente pedagógica prevalece. Aliás, de acordo com Manuel Costa Cabral, nos anos 1980, o Ar.Co “começa a afirmar-se mais enquanto escola e a perder um pouco o sentido de centro cultural”. “A ideia do Ar.Co é oferecer todos os instrumentos e ensinar todas as técnicas nas suas diversas áreas, mas com enfoque no trabalho autoral. Ou seja, a ideia não é formar para a indústria, a ideia é formar autores usando aquelas áreas e matérias”, afirma Ana Martinho. Ao longo de 50 anos, as áreas de formação foram variando consoante a adesão dos alunos - Desenho, Pintura, Fotografia; Joalharia; Cerâmica; Ilustração/Banda Desenhada; Cinema/Imagem em Movimento; História e Teoria da Arte; Projetos Individuais e Multi-Disciplinares são as que perduram hoje em dia.
Alternativa. Experimental. Independente. São os três conceitos que sustentam o Ar.Co desde o primeiro dia de atividade. “A ideia de «alternativa» vem da necessidade de criar um ensino que não fosse institucionalizado”, explica Marcelo Costa que, tal como Ana Martinho, também começou o seu percurso no Ar.Co enquanto aluno, mas nos cursos de Desenho e Pintura. Hoje em dia, é também membro da direção, responsável pelo departamento de Desenho e Pintura e, ainda, colabora no departamento de Cinema que ele próprio criou. “O lado «experimental» é muito importante do ponto de vista artístico. Nada se aprende sem o exercício - tem de se praticar muito”, continua Marcelo Costa. Madalena Parreira fez o mesmo trajeto e entrou no Ar.Co enquanto aluna de Desenho e, nos dias que correm, é responsável pelo departamento de Ilustração e oficina de Gravura/Serigrafia. Em entrevista ao Gerador, sublinha que “a formação artística no Ar.Co é uma formação fundamentalmente prática e é a prática que manda; é o fazer que manda; não é o saber; o saber vem com o fazer; o saber é muito importante para informar o fazer”.
É unânime entre todos que o conceito-chave da escola é «independente». “O Ar.Co é independente neste sentido: só a direção do Ar.Co é que decide qual a orientação da escola; que programas fazer e como os fazer. Não há mecenas, não há Estado, não há nada a meter-se nisso. Nós fazemos os acordos que queremos fazer, mas preservamos sempre a nossa independência”, realça Manuel Castro Caldas, que entrou no Ar.Co enquanto colaborador, para sistematizar um programa de estudos de História e Teoria de Arte e comandar o centro de documentação, acabando por assumir, em 1994, o cargo de diretor executivo.
O Ar.Co organiza-se tal e qual como uma instituição de ensino superior, no sentido em que apresenta um bloco de três anos de formação em cada área. Posteriormente, existe ainda a possibilidade de concorrer a um curso avançado, bem mais complexo. Contudo, uma das particularidades mais fortes do Ar.Co é que “não há faltas, não há notas, não há exames e não há diploma, portanto a responsabilidade é de quem cá anda”, esclarece Ana Martinho. O trabalho é avaliado através de um portefólio, que vão desenvolvendo ao longo do curso, que serve unicamente para “posicionar os alunos face àquela imensidão de exercícios”, ou seja, ajudá-los a entender “o que lhes interessa mais, o que lhes interessa menos, o que acham mais importante, o que acham menos importante”, clarifica Marcelo Costa.
Ao Gerador, todos os entrevistados da direção do Ar.co confirmam que, em tempos, houve a tentação de oficializar/institucionalizar a escola. “Claramente que a independência é um risco enorme, mas e o risco que as pessoas correram nos primeiros anos - os fundadores? O risco era gigantesco. Na verdade, acho que o risco faz parte da energia inventiva que a escola tem que ter”, diz o diretor executivo. Entre crises financeiras, problemas demográficos e a instalação de uma pandemia, o Ar.Co conseguiu manter-se de pé. “Nos últimos anos, conseguimos superar todas as adversidades, ainda que com muitas dificuldades, tal como muitos. Neste momento, os números estão bons e o Ar.Co está a viver uma boa fase. Contudo, mantém-se a mesma preocupação e vigilância, isto porque nós vivemos, no fundo, de propinas, embora tenhamos alguns apoios, quer do Estado, quer privados”, afirma Manuel Castro Caldas. O facto de terem alunos das mais diferentes faixas etárias e, até mesmo, alunos estrangeiros, ajuda a manter um equilíbrio saudável e, consequentemente, contribui para o aumento da sustentabilidade da escola. Uma constante mutação e adaptabilidade, nunca fugindo aos seus princípios e valores, está na base de atração de mais e mais alunos. Tal como explica Madalena Parreira, “há uma certa exigência permanente de termos que saber o que anda por aí a ser feito, o que é relevante em cada área e, portanto, é importante procurarmos as melhores pessoas, termos a melhor prática e, ao mesmo tempo, sermos altamente flexíveis”.
Uma celebração do presente com sabor a futuro
No momento em que comemora os seus 50 anos, o Ar.Co prepara uma programação especial que decorre até ao final deste ano. Ana Martinho enfatiza que o objetivo é “pontuar o presente, questionando o que é que [o Ar.Co] pode vir a ser, em vez de fazer algo cronológico ou histórico”. Manuel Castro Caldas acrescenta ainda que não queriam “uma coisa muito pesada e institucional”, como também não queriam uma programação semelhante à de anos anteriores. “São 50 anos, eles têm que ser fortemente marcados”, anuncia. Deste modo, a abertura oficial das comemorações do Ar.Co deu-se no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC), com a exposição I II III IV V – cinco décadas do Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual, que esteve patente entre março e maio. O programa continuou com a estreia do Ciclo de Cinema Ar.Co na Cinemateca, com a exposição Problema-Solução-Catarse - Seminário Avançado em Ilustração Ar.Co 2018-2021 na Biblioteca de Alcântara, e com a exposição Escola de Pedro Tropa nas instalações do Ar.Co - Antigo Mercado de Xabregas e entre outras tantas atividades.
Ana Martinho destaca que, a par da formação, “vem a responsabilidade na divulgação, porque é importante que os alunos tenham momentos de contacto com o exterior, quer para fazerem uma síntese dos seus trabalhos, quer na tentativa de iniciarem as suas carreiras”, e o Ar.Co surge como o fio condutor. Neste sentido, guardou-se espaço na programação, por exemplo, para a apresentação de trabalhos dos alunos do departamento de Cinema/Imagem em Movimento, também nas instalações do Ar.Co - Antigo Mercado de Xabregas.
Neste momento, estão patentes duas exposições: Objectos Rituais no Convento dos Capuchos (Sala do Aquário) em Almada (até 22 de julho), e A Couve e o Plano das Coisas de Roger Paulino nas instalações do Ar.Co - Antigo Mercado de Xabregas - até 15 de setembro. Do alinhamento da programação, fazem ainda parte uma série de atividades lúdicas que têm vindo a ser divulgadas, nas redes sociais do Ar.Co, peça a peça.
O Ar.Co enquanto símbolo de resistência
Ao longo destes 50 anos, o Ar.Co tem tido um papel preponderante no ensino artístico do país. Período que, para Madalena Parreira, “não só demonstram que há uma certa solidez no projeto, como também constituem uma prova de resistência espetacular num país com muita precariedade e dificuldade, e um escasso apoio e sistema de suporte às artes”. O Ar.Co tem vindo a crescer cada vez mais e, enquanto escola alternativa, experimental e independente, é para todos uma grande conquista chegar até aqui. Manuel Castro Caldas diz ser “absolutamente extraordinário” uma associação cultural sem fins lucrativos, que dá formação independente, conseguir sobreviver 50 anos. “Quer dizer, se formos procurar, não encontramos, e não só não encontramos cá, como também não encontramos lá fora. Muitas das escolas dizem-se independentes mas, na verdade, não o são”, acrescenta.
Quando questionada sobre as expectativas para um futuro próximo, Ana Martinho pensa imediatamente no futuro dos alunos, fantasiando um cenário onde o mercado da arte em Portugal ofereça mais oportunidades. “Sentimos uma enorme frustração de formar pessoas capazes que, depois, encontram um mercado fechado - em decadência”, confessa. Marcelo Costa coloca na mesa todas as hipóteses possíveis e partilha com o Gerador que “o Ar.Co deve existir enquanto conseguir constituir alternativa, ser experimental e independente”. Caso contrário, deve-se imortalizar “o papel que teve na formação de artistas e na pedagogia das artes - em Portugal” e terminar a história com um final feliz.
Como diz Manuel Costa Cabral, “o Ar.Co não é um curso, é um percurso” e é este o lema que conduz o Ar.Co e todos os que fizeram - e fazem - parte desta história que conta agora com 50 anos.
Neste momento, patente ao público:
26 de maio a 22 de julho
Exposição Objectos Rituais
Resultados do Workshop de Joalharia com João Sarmento
Convento dos Capuchos (Sala do Aquário), Almada
1 de junho a 15 de setembro
Exposição A Couve e o Plano das Coisasde Roger Paulino
Curador: Miguel Von Haffe Perez
Ar.Co Xabregas, sala polivalente
8 de julho a 26 de agosto
Exposição Residência - Mostra de Resultados
Convento dos Capuchos, Almada
5 de julho a 3 de setembro
Exposição Ar.Co Bolseiros & Finalistas ‘22
Pavilhão Branco, Museu da Cidade, Lisboa
A restante programação será divulgada, peça a peça, nas redes sociais do Ar.Co.