Nascida numa altura que acabaria por definir que territórios compõem Portugal, esta aldeia histórica é alimentada hoje sobretudo pelo turismo. A esses visitantes, Sortelha oferece uma vista privilegiada, já que se abre como uma varanda sobre a Serra da Estrela. Aliás, empoleirada no alto de grandes rochas, surgiu para vigiar essa paisagem, com fins militares, mas hoje é para os milhares que, todos os anos, por ela passam um miradouro para um quadro vasto e verdejante, que vale mesmo a pena conhecer.
Mas recuemos na história. Foi há quase 800 anos – corria, então, o século XIII – que Sortelha nasceu, como aldeia fortificada, guarnecida de uma muralha e de um castelo. Surgiu com fins militares, uma vez que a sua localização bastante elevada permitia controlar a paisagem, o que era «muito importante», explica o arqueólogo Marcos Osório, numa época de definição da fronteira de Portugal face ao país vizinho. «Era uma guarda avançada em relação a outras aldeias fortificadas, como Belmonte e Covilhã», precisa o especialista, que conta que foi o Rei Dom Sancho I que fomentou o povoamento e o Rei Dom Sancho II que, em 1228, deu o foral a Sortelha, isto é, o documento real que estabeleceu este território como um concelho, regulando a sua administração, deveres e privilégios.
Sortelha tem, assim, uma fundação medieval. O castelo que se destaca entre as construções que vão compondo os seus 25 quilómetros quadrados de área terá sido construído no início do século XIII e foi reforçado com uma Torre de Menagem (entendida como último ponto da defesa) autónoma, o que é comum nos castelos românicos mais antigos.
Ainda antes de se erguer esse castelo, já tinha sido construída a cintura de muralhas, que ainda hoje protege Sortelha. Sem torres, esse anel assenta em escarpas, isto é, numa encosta íngreme de granito. São escassas as portas, na medida em que estas eram vistas, na época, como pontos de fragilidade na defesa. Mais tarde, já no século XIV, seria ainda construída a Torre do Facho, para melhor proteger as poucas portas existentes na muralha e para controlar as terras em direção à Covilhã.
Dentro dessa cintura, são as casas de poucos andares que abundam. Algumas habitações destacam-se, com pormenores nas fachadas mais cuidados que corresponderam à entidade social dos donos de outros tempos, como a casa do escrivão, a casa do pároco, a casa do governador e a casa do juiz.
Segundo os registos, acrescenta o arqueólogo que, por volta de 1496, havia nesta aldeia 144 moradores masculinos, aos quais se deve juntar um número semelhante de mulheres para apurar o universo de moradores. Já mais tarde, nas primeiras décadas do século XVI, o cadastro oficial dá conta de 78 fogos em Sortelha. «Se considerarmos um fogo um lar de, pelo menos, quatro pessoas, concluímos que havia 312 pessoas», estima Marcos Osório.
Outra curiosidade a realçar, indica Marcos Osório, é que, ainda que alguns acreditem que o nome Sortelha se deva à sua muralha e à palavra espanhola para anel, há investigadores que defendem que a designação tem origem na abundância de pequenas propriedades que formam esta região, na medida em que sorte é o nome que se dá a uma propriedade herdada. «Como Sortelha tem um terreno irregular, é uma região de pequenas sortes», diz o arqueólogo.
Com o Tratado de Alcanizes, assinado em 1297 – que definiu os limites de Portugal continental –, Sortelha acabaria, contudo, por perder as suas funções transfronteiriças. Os limites de Portugal avançaram, perdendo esta aldeia a sua posição privilegiada. «No século XIV, Sortelha já está a perder funções», conta Marcos Osório. Mas a história dessa aldeia não ficaria por aí.
Dos fins militares à água radioativa
Seguiram-se, é certo, anos de decadência resultantes da perda da importância militar, mas, em 1510, Dom Manuel deu um novo foral a Sortelha, de modo a tentar incentivar o seu repovoamento e desenvolvimento económico. Fez também obras para beneficiar o castelo, como comprova o brasão real ladeado pelas esferas armilares que está ainda hoje sobre a porta de entrada.
Já nos arrabaldes, desenvolvia-se, por esta altura, a agricultura e o gado, declara Marcos Osório. Mais tarde, no século XIX, Sortelha voltaria a ganhar projeção, desta vez, pela riqueza mineral – sobretudo em urânio e volfrâmio – da área circundante, sublinha o arqueólogo. «Surgiram muitas minas que deram algum vigor económico a esta região no século XIX e até à Guerra Mundial», explica o arqueólogo.
Também no século XX, Sortelha teve um outro período que lhe mereceu destaque, à boleia das suas águas radioativas. Numa altura em que se acreditava nas propriedades curativas dessas águas, foi construído um hotel e termas, com 90 quartos e capacidade para hospedar 150 pessoas. Além disso, essa água era engarrafada e vendida. Isto até serem percebidos pelos cientistas os efeitos nefastos do rádio. A estância termal acabaria, assim, por encerrar em 1945.
De notar que, entretanto, os cientistas chegaram à conclusão de que a água com radioatividade não é necessariamente um perigo para a saúde, mas as termas de Sortelha mantêm-se fechadas.
Turismo anima Sortelha
Longe vão os tempos da vigilância militar e até da exploração mineira ou da popularidade das águas radioativas, mas Sortelha resiste e hoje é «provavelmente a mais bem conservada aldeia portuguesa», elogia Marcos Osório. Atualmente, o turismo tem um peso significativo na vitalidade deste território, que, nascido para controlar a paisagem, abre-se hoje sobre ele como uma varanda, permitindo aos seus visi- tantes desfrutar desse cenário. «É o melhor miradouro da Serra da Estrela que existe. A vista é esplêndida», descreve o arqueólogo. Além do cenário que permite apreciar, Sortelha atrai visitantes por causa do seu património. «É entrar num ambiente medieval moderno, em que parece que entramos num filme», salienta.
À parte da atividade turística, em Sortelha, há também pecuária e agricultura, ainda que sem dimensões expressivas, e também artesanato, com a arte do bracejo à cabeça, destaca fonte oficial da Câmara Municipal do Sabugal. O bracejo é uma planta que os habitantes utilizam, desde tempos remotos, para tecer os mais variados objetos de uso doméstico e decorativo, nomeadamente cestas, esteiras e vassouras. «É uma forma de artesanato bonita. É uma mera erva do campo, o que mostra que as pessoas com o pouco que tinham souberam fazer coisas bonitas», adianta Marcos Osório, que esclarece que não há registos que permitam perceber com precisão quando e como nasceu esta forma de artesanato.
Por outro lado, fonte oficial da Câmara Municipal do Sabugal revela que vivem hoje cerca de 300 pessoas em Sortelha, sendo que a maioria se encaixa nas faixas etárias acima dos 60 anos e vive do que tem na horta. Há casais mais jovens que resistem, mas Sortelha já nem tem uma escola primária em funcionamento.
Já no que diz respeito ao paladar, Sortelha tem a oferecer carnes de caça, como o cabrito, mas também o arroz-doce e as filhoses. «E as papas de carolo», frisa João Reis, da Associação Etnográfica de Sortelha, referindo-se ao doce semelhante ao arroz-doce, que é feito com o carolo de milho. «Eram os pratos típicos das festas populares das gerações anteriores. São pratos carregados de história», salienta o responsável pela associação que dinamiza nomeadamente o grupo folclórico desta aldeia, que é composto por 30 elementos.
«Recomendaria a visita a Sortelha a todas as faixas etárias. A noite é muito emblemática. É uma aldeia medieval muralhada. O seu espírito desperta à noite. O silêncio é maravilhoso. Sortelha está metida entre rochas grandes. Apreciar o silêncio e as estrelas, ninguém dá o seu tempo por mal empregue», elogia João Reis, com a voz carregada de um evidente carinho por esta aldeia.
Vir a Sortelha é, portanto, um convite para viajar no tempo, ao passear pelas muralhas e pelo castelo, ao apreciar a arte do bracejo e ao explorar as ruas íntimas ladeadas de casas de granito, algumas com elementos de estilo manuelino. O centro político da antiga vila é o pelourinho, a antiga casa da Câmara e a prisão, que ficam próximos também da igreja matriz, que data de 1573. A idade medieval não está esquecida nesta localização e todos os anos ganha mesmo uma especial presença.
Uma festa para celebrar as raízes
«Sortelha é o cenário ideal para recuar no tempo. Em nenhum sítio se sentirão tão transportados para a Idade Média.» As palavras são da Câmara do Sabugal, que anuncia assim o evento temático Muralhas com história, que acontece todos os anos, em setembro, nessa aldeia histórica no interior do país.
Trata-se, importa explicar, de uma recriação histórica que pretende levar os participantes numa viagem ao quotidiano medieval, complementada com um mercado típico dessa época, um acampamento militar, animais de quinta, artes circenses, torneios de armas a pé e a cavalo, jogos medievais, animação infantil, músicos e personagens históricas.
Nas ruas estreitas de Sortelha, a história ganha vida. «É um evento preenchido pelo burburinho dos mercadores e dos artesãos, pelos cavaleiros que mostram a sua audácia em combates, pelo espírito de euforia que invade todo o burgo com as personagens que vagueiam e com os sons de coreografias e fantasias caraterísticos de uma época que foi de outras conquistas, de outras mentalidades, de outras culturas, entrando no encanto próprio da Época Medieval», pormenoriza a Câmara Municipal.
Este ano, o Muralhas com História, adianta fonte da autarquia ao Gerador, acontecerá em setembro, de 15 a 17. Este projeto visa valorizar esta aldeia, através da revitalização e promoção do seu património.
«Permite aproveitar o património, dando-lhe vida e criando um ambiente ímpar e de forte expressividade», sublinha a Câmara Municipal, que organiza este evento em parceria com as Aldeias Históricas de Portugal, com a Junta de Freguesia de Sortelha e com associações locais, como a já referida associação etnográfica. Como afirma João Reis, as danças e cantos folclóricos têm também raízes medievais.
Sortelha está a chegar à Netflix
O potencial de Sortelha de fazer quem a visita viajar no tempo não se esgota, porém, nesses dias mais temáticos e agitados. Há já quem a tenha escolhido como cenário de filmes e séries, eternizando nos pequeno e grande ecrãs esta localização portuguesa.
Quase 800 anos após ter nascido para fins militares, hoje Sortelha serve como destino turístico e até local de rodagem de séries e filmes. Ainda na primavera do ano passado foi anunciado que esta aldeia histórica foi um dos locais escolhidos para acolher as filmagens do filme Damsel, uma longa-metragem produzida pela plataforma de streaming Netflix. O Mosteiro da Batalha, em Leiria, e o Convento de Cristo, em Santarém, foram também selecionados para este filme, que estará disponível em outubro deste ano e conta com a participação de Millie Bobby Brown.
As filmagens causaram alguns constrangimentos nos locais escolhidos – em Sortelha, por exemplo, houve dias em junho em que todos os acessos estiveram indisponíveis –, mas poderão vir a abrir a porta a outras produções.
Com largos anos de história e várias vocações depois, Sortelha parece, assim, mostrar-se resiliente ao tempo, estando sempre aberta a tentar revitalizar-se. A mais de 200 quilómetros do Porto e a 300 quilómetros de Lisboa, já não é um território estratégico para o país, mas resiste como uma das mais antigas vilas portuguesas, sendo considerada também uma das mais belas, segundo a associação Aldeias Históricas de Portugal. Aqui consegue-se avistar o horizonte até Espanha ou, ao fim de cada dia, um pôr-de-sol que pinta os céus de laranja e serve de complemento à Serra da Estrela. Aos ouvidos do visitante, nada chega além do silêncio ou, quando muito, a música animada da folia medieval que, vez por outra, volta a galgar por estas muralhas.