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Do voto às manifestações, como os portugueses participam (ou não) na vida do país

Nas últimas eleições legislativas, a taxa de abstenção ficou pouco abaixo dos 49 %, gerando debate em torno da (falta de) participação dos portugueses. Mas os especialistas alertam que o voto não esgota o envolvimento dos cidadãos na vida do país. E nas demais ferramentas, dos orçamentos participativos às manifestações, Portugal até tem tido “exemplos valiosos”.

Texto de Isabel Patrício

Fotografia de Clem Onojeghuo via Unsplash

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O padrão é claro. Em cada ida às urnas, os elevados níveis de abstenção levantam vez após vez, nos noticiários e espaços de comentário, a questão: afinal, porque não participam mais os portugueses na vida do país? Os especialistas alertam, contudo, que o voto não é a única forma de participação nos regimes de democracia representativa. Há também os protestos e manifestações na rua, nos quais a participação dos portugueses até se destaca da dos demais europeus, realça o politólogo João Cancela. E também as parcerias entre entidades públicas e associações locais, salienta o investigador Roberto Falanga, que avança que tem encontrado “exemplos valiosos” disso mesmo na sua pesquisa sobre inovações democráticas.

Mas vamos por partes. Primeiro, há que traçar o cenário da participação em Portugal. E há “vários ângulos” possíveis para o fazer, notam os especialistas. No que diz respeito aos instrumentos de escrutínio e de tomada de decisão pelos cidadãos – nomeadamente referendos locais e assembleias de freguesia ou de municípios –, os dados não são abundantes, mas permitem perceber que não existe um uso disseminado, avança João Cancela, que é também professor do departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa (FCSH-NOVA).

Isto ocorre ainda que, segundo uma sondagem recente do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), exista uma “vontade generalizada de aumentar os mecanismos de participação”, observa o especialista. Em detalhe, cerca de 85 % dos ouvidos no referido inquérito manifestaram concordância com a ideia de que devem ser criados outros mecanismos que permitam a participação dos cidadãos nas decisões políticas. “Tal parece indiciar uma apetência da população por mecanismos de decisão mais inclusivos”, afirma João Cancela.

Por outro lado, embora os instrumentos de participação formais não sejam usados de forma generalizada, têm conquistado importância por cá as petições online, “também pelo baixo esforço que requerem e por necessitarem de um número relativamente reduzido de assinaturas para serem apreciadas pelo Parlamento”, assinala o politólogo. E há em Portugal uma “tradição de protestos e intervenções públicas”, que é importante não esquecer, destaca o mesmo. “O trabalho de Robert Fishman, um politólogo norte-americano, sugere que as elites em Portugal estão mais atentas à pressão dos cidadãos na rua do que acontece em Espanha”, explica o professor universitário. Cancela acrescenta que, por cá, a tendência é de “menos repressão do protesto político”.

Quando se fala em participação, a maioria das pessoas pensa na taxa abstenção nas eleições políticas. No entanto, esta é apenas uma forma de participação prevista em regimes de democracia representativa.

Roberto Falanga, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Também Roberto Falanga, que tem investigado a participação cívica e as inovações democráticas no ICS, realça as manifestações e protestos como formas de participação dos cidadãos nos Estado, ainda que as considere como não convencionais. Este especialista frisa, por outro lado, que a participação é um espetro que não se limita à esfera política, incluindo, por exemplo, o associativismo e as redes de ajuda mútua, “fenómeno que, aliás, ganhou um destaque enorme durante os primeiros meses da pandemia, incidindo diretamente em decisões de caráter público, como a distribuição de bens e serviços para pessoas mais vulneráveis”, analisa.

Mais, há que incluir, sublinha Falanga, também o voluntariado, que pode influenciar alguns setores do Estado, e as parcerias entre entidades públicas e as associações locais, nomeadamente em prol dos grupos mais vulneráveis. “À escala nacional, o recente Programa Bairros Saudáveis apostou neste tipo de participação, dinamizando iniciativas coletivas de sensibilização ou resolução de problemas locais. À escala regional, penso nas recentes experiências de orçamento participativo na Madeira e nos Açores como uma aposta interessante para convidar os cidadãos a pensar a uma escala supra local”, enumera o investigador do ICS.

A propósito deste último exemplo, importa destacar o orçamento participativo promovido pela Câmara Municipal de Cascais, desde 2011. “É o maior e mais votado do país”, de acordo com essa autarquia, que adianta que, por ano, são envolvidas cerca de 60 mil pessoas. E os reflexos desses 12 anos de participação estão à vista: “Desde 2011, foram decididos 51 milhões de euros traduzidos em 219 projetos vencedores, fruto de um trabalho de participação e cidadania que coloca o concelho entre os mais destacados da Europa e do mundo”, salienta a câmara municipal.

Os orçamentos participativos são do ponto de vista comparado bastante relevantes em Portugal e têm tido o mérito de gerar em alguns municípios como Cascais níveis de participação elevados.

João Cancela, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa

João Cancela também realça a experiência cascalense, declarando que os orçamentos participativos têm sido “bastante relevantes em Portugal”. “Os orçamentos participativos têm vindo a ocupar um lugar de prestígio”, concorda Roberto Falanga. No entanto, enquanto mecanismos de decisão, têm desvantagens, admite o politólogo da FCSH-NOVA. “Não assentam na comparação informada dos méritos relativos de cada solução apresentada, apresentando-se, por vezes, mais como uma competição por obtenção de engajamento por parte dos proponentes das diferentes alternativas a concurso”, reconhece.

Já Roberto Falanga atira: “Não há só orçamentos participativos em Portugal. Para além de iniciativas no planeamento urbano, há consultas públicas, conselhos municipais, redes sociais, bem como outras modalidades que vêm ganhando terreno em Portugal como em outros países.” E pormenoriza: “Penso, em particular, nos chamados ‘minipúblicos’, isto é, formas de participação que visam uma discussão de qualidade entre um grupo restrito de participantes selecionados de forma aleatória.” As assembleias de cidadãos são um exemplo desse modelo de minipúblico e têm gerado cada vez mais interesse dos decisores políticos, declara.

É o que tem acontecido no município de Lisboa nos últimos dois anos. Um grupo de cerca de 50 cidadãos foi convocado, primeiro, para discutir a fundo e propor ideias sobre as alterações climáticas e, mais recentemente, para debater soluções de proximidade, em linha com o modelo de cidade dos 15 minutos. “A vantagem deste formato de participação é que os cidadãos podem incidir de forma abrangente sobre o processo de decisão, podendo chegar a propor alterações a nível legislativo”, sublinha o investigador do ICS.

Alternativas de participação dos cidadãos

Além das formas de participação já experimentadas, com maior ou menor intensidade, em Portugal, há também outros instrumentos que poderiam ser utilizados para abrir a porta a uma maior atuação dos cidadãos na vida do país.

Uma dessas ferramentas chega-nos de países como o Canadá, a Bélgica e França, identifica o politólogo João Cancela, referindo-se a mecanismos com uma componente deliberativa mais sólida, “em que cidadãos auscultam especialistas com vista a escolher uma alternativa ou traçar um plano para lidar com uma ou mais questões concretas, seja uma reforma institucional ou o modo de responder a aspetos específicos das alterações climáticas”. 

“Há autores que criticam mecanismos deste tipo na medida em que eles podem esvaziar a autoridade de órgãos representativos. Mas estes instrumentos podem ter uma função consultiva, sendo as deliberações finais sujeitas a um debate e votação por parte dos órgãos representativos tradicionais”, defende.

Já Roberto Falanga chama a atenção para as práticas de participação mais espontâneas, que surgem em situações mais extremas, como a recente crise pandémica. “Demonstram como a necessidade e a oportunidade de juntar as pessoas pode ser um fator chave para tomar decisões certas. A crise climática pode e deve ser encarada como uma destas ocasiões para (re)convocar a cidadania sobre o seu presente e futuro”, assinala.

Qualquer inovação não pode e não deve remediar apenas as falhas da democracia representativa, mas, sim, deve alimentar o potencial democrático com novas ideias e novos desafios.

Roberto Falanga, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Este especialista aproveita para explicar que há cada vez mais interesses nos vários modelos de participação cívica por causa da “crescente desconfiança do eleitorado”. “Qualquer inovação não pode e não deve remediar apenas as falhas da democracia representativa, mas, sim, deve alimentar o potencial democrático com novas ideias e novos desafios”, ressalva, declarando que por isso mesmo é importante a inclusão de grupos marginalizados e afastados do debate públicos nos vários mecanismos já referidos.

Já de olhos nos demais países europeus, Roberto Falanga destaca como exemplos a ter como referência a Irlanda, “onde um exercício de democracia deliberativa à escala nacional permitiu ab-rogar a lei contra a aborto e instituir o casamento entre pessoas do mesmo sexo”, a Itália, onde há movimentos sociais a “desenvolver um debate muito útil e interessante sobre a gestão dos bens comuns”, e a Grécia, onde a participação espontânea à escala de bairro “tem vindo a complementar a ação do Estado em muitos aspetos, desde a entrega de bens básicos até à integração de migrantes.”

Vale a pena fomentar a participação?

Havendo vontade de aumentar a participação, há, pois, caminhos múltiplos para o conseguir, notam os especialistas ouvidos pelo Gerador. Mesmo num país com níveis elevados de abstenção – nas últimas eleições legislativas, a taxa ficou pouco abaixo dos 49 %. Mas nem todos concordam com a necessidade de aumentar o peso dos cidadãos nas decisões do país. 

“Quem privilegia exclusivamente um modelo de democracia representativo considerará que a função das eleições é permitir a seleção de decisores que se encarregam de tomar eles próprios as decisões e encarará como contraproducente o esforço de aumentar a participação direta dos cidadãos nas tomadas de decisão. Mas, nas últimas décadas, têm ganhado importância modelos alternativos de conceber a democracia, que advogam que ela se deve assemelhar mais às suas origens gregas, onde o espetro de participação dos cidadãos comuns na vida coletivamente era marcadamente mais largo”, esclarece João Cancela.

Já Roberto Falanga vai mais longe, dizendo que a participação é o alimento necessário para melhorar a democracia. “Seria uma aberração viver numa democracia que silencia a participação”, remata.

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