Estou em Génova; cheguei há vinte dias e vou cá ficar durante cinco meses.
Gosto da cidade, mas muitos não concordam comigo - dizem que é suja, é perigosa, é portuária - em suma, dizem que lhe falta a estética italiana que vêem nos reels do instagram.
Mas se lhe falta é porque Génova é uma cidade onde o desagradável salta à vista. Aliás, há uma rua, ou melhor, várias ruas - localizadas no centro da cidade - em que em cada esquina se vê alguém a oferecer serviços sexuais; pouco iluminadas, com um intenso cheiro a mijo e repletas de homens, chateiam aqueles que por elas passam: assim fica difícil continuar a romantizar a vida italiana.
Esta romantização é em si o resultado de uma série de escolhas políticas baseadas no ditado longe da vista longe do coração; e a regulação da prostituição não foi exceção.
Desde logo em 1860, com o Regulamento Cavour, sob a pretensão de salvaguardar a saúde pública, foram tomadas medidas que limitavam a prostituição “to places appropriately concealed from the eyes of the right-thinking bourgeoisie1”: as case di tolleranza (casas de tolerância).
Nelas, reinava o controlo estatal: a lei dispunha que as prostitutas deviam registar-se na polícia, ser sujeitas a exames médicos semanas e ainda que “a polícia (...) tinha de ser informada se uma mulher quisesse abandonar a prostituição”2. A lei dispunha também que as próprias case di tolleranza não podiam “ser construídas perto de edifícios destinados ao culto ou à educação e, geralmente, situavam-se em zonas específicas da cidade3”.
Assim, nesta época, a descriminalização da prostituição (dentro das case di toleranza) não tinha como objetivo melhorar as condições em que esta operava, antes ocorria “because prostitution was considered necessary. This claim was based (...) on a shared understanding of masculinity. Male sexuality, it was argued, had to be satisfied in the name of physical and mental equilibrium. Prostitution thus existed in response to men’s sexual needs4”.
Só em 1958 com a Lei Merlin se procurou pela primeira vez acautelar os trabalhadores sexuais e não os seus clientes. Porém, ainda que esta legislação (ainda hoje em vigor) tenha posto fim ao controlo estatal, terminado com as case di tolleranza e proibido o lenicídio - sendo a prostituição independente legal mas não regulamentada -, os ideais do Regulamento Cavour não deixaram Itália, antes retomaram lugar na agenda política durante os últimos anos.
Por detrás das várias propostas apresentadas para modernizar a Lei Merlin, quer de reabertura das case di tolleranza (como a defendida pelo partido Lega per Salvini Premier), quer de criminalização da prostituição de rua (como a defendida pelo projeto de lei Crafagna), quer de atribuição aos municípios do poder para adotar medidas que punam os trabalhadores sexuais e os seus clientes (como impunha o Pacchetto di Sicurezza lançado pelo Conselho de Ministros italiano em 2009), encontramos a mesma base: uma tentativa de esconder a prostituição considerando-a, ao mesmo tempo, a culpa de todos os males e um mal necessário em si.
Vemo-lo, por exemplo, no discurso do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi: “Nós temos de limpar as ruas [das prostitutas]. Tal como muitos italianos, já não suporto sentir vergonha quando ando na rua com os meus filhos. (...) Talvez tenhamos de voltar a abrir as casas fechadas [case di tolleranza] e regularizar [a prostituição], veremos. Entretanto, também para controlar essas raparigas - muitas das quais se encontram em condições análogas à escravatura - teremos em breve de iniciar uma luta extremamente rigorosa contra os criminosos que as dominam, e tornaremos as ruas novamente adequadas para que as famílias as possam percorrer”.
Pior, vemo-lo no discurso do ex-deputado Antonio Razzi “Toda a gente vai lá, é inútil que se escondam, quem diz que não vai às prostitutas está a mentir. Se tivéssemos as casas fechadas, haveria mais receitas para o Estado e, depois, nas casas fechadas, o homem alivia-se e, quando vai para casa, deita-se calmamente e não discute com a mulher, a amante ou a amiga. (...) O que eu digo é matemático! As casas fechadas ajudariam a diminuir a violência contra as mulheres!”
Há uns meses tive de escrever um trabalho sobre a regulação da prostituição na Europa no século XIX. Na altura, fiquei perplexa com o quão arcaicas eram as leis e o quão arcaicos eram os motivos por detrás delas - lembro-me de pensar ainda bem que já não é assim; hoje, saber que há quem defenda a sua reaplicação deixa-me sem palavras. O que mais me espanta são os discursos; como é possível dizer-se tantas barbaridades sensacionalistas?
Estou aqui há meia hora e não sei o que escrever.
Por vezes Génova mete-me medo, é ríspida. Mas é melhor meter medo que estar escondida.
Como não sabia como concluir este texto vou copiar a conclusão do meu trabalho; ainda se justifica:
Podemos concluir que a história da prostituição na Europa (em Itália) reflecte um quadro social em que a liberdade e a autonomia das mulheres estavam subordinadas aos desejos masculinos e às expectativas da sociedade. As leis eram feitas para os homens - as prostitutas estavam apenas no meio da equação: pois, "As long as she remains the slave of man and the victim of prejudice, as long as she is refused training in a profession, as long as she is deprived of her civil rights, there can be no moral law for her5".
Floran Tristan escreveu-o em 1842.
Adiciono uma entrevista a Pia Covre:
- Azara, Liliosa. “Prostitution in Italy: the Merlin law and biological predetermination”. Women’s History Review. 2020. ↩︎
- Acri, Maria Cristina. “La Donna Prostituta tra Devianza e Pericolosità”. La Rivista. 2010. ↩︎
- Acri, Maria Cristina. “La Donna Prostituta tra Devianza e Pericolosità”. La Rivista. 2010. ↩︎
- RIPA, Yannick.“Prostitution (19th-21st centuries)”. Encyclopédie d'histoire numérique de l'Europe [online], ISSN 2677-6588, published on 22/06/20, https://ehne.fr/en/node/12445. Last accessed 30 April 2023. ↩︎
- Flora, Tristan. The London journal of Flora Tristan, or, The aristocracy and the working class of England. 1842. ↩︎