Vamos mudar de casa e eu sei que, em parte, mudamos para ficar longe daquilo que nos magoou. Mas por mais que os ame — aliás, por os amar tanto — não sou capaz de deixar as nossas memórias à mercê de serem reconstruídas por outros, por quem ocupar o que é hoje o nosso lugar.
É estranho empacotarmo-nos e sairmos; desfazer uns móveis, deitar outros fora e, um pouco como nos filmes, enfiar as caixas no carro, colocar as mãos nas ancas e vê-lo afastar-se. Mais estranho é acreditarmos que indo para outro lugar nos libertamos.
As memórias estavam presas nas paredes da casa. E agora, como as guardo? Eu não sou capaz de as manter todas, à tona, dentro de mim. É demasiada informação, é demasiado pesado, é demasiada responsabilidade. Por vezes penso em cosê-las a um cordel e arrastá-las como as crianças fazem com os brinquedos, mas o ato de coser é tão delicado que temo fazer da agulha faca. Mesmo o ato de escrever é tão delicado que temo fazer do lápis faca.
Para ser sincera, nem sei se nos consigo escrever. Não foram poucas as vezes que o tentei fazer e falhei; por falta de honestidade, de maturidade, por medo de não ser justa — maioritariamente, por esquecimento. Já faz tanto tempo que afasto os pensamentos “maus” que hoje tenho de fazer um grande esforço para me lembrar daquilo que me dói.
Se algo me dói ou doeu ou sei que doerá ponho-o imediatamente de lado e prossigo a vida, tapando-a com um véu de “razão”. Estou habituada a dizer-me tudo é temporário e a racionalizar as situações até elas se tornarem meros conceito abstrato exteriores a mim. Faço-me de observadora e, se só observo, aquela que vejo não sou eu. É como se nada realmente me tocasse.
Acredito ter este mecanismo, em parte, para tentar fugir ao estereótipo da mulher-ultra-emocional (para não ser vista à sua imagem); quanto menos sinto e menos demonstro sentir, mais adulta ou até mesmo menos mulher penso ser, como se as emoções me tornassem fraca. São várias as inverdades desfeministas que, um pouco ao acaso, ao analisar-me, acabo por dar conta viverem em mim. Por exemplo, também sou habitada pelo mito da “família perfeita”, e daí a sensação que admitir a nossa imperfeição familiar é atirar-nos para o calabouço.
Uma vez a minha mãe perguntou-me se achava que as outras famílias também sofriam. Eu respondi-lhe que sim; ainda não conheci uma família que não sofresse. Ela não se convenceu, disse-me que não conhecia histórias como a nossa. Penso que desconhece porque é mais difícil para os pais partilharem o que vai dentro de casa do que é para os filhos — talvez tenham mais vergonha, se considerem mais responsáveis; não é fácil dizer que falhámos a perfeição. Como resultado, sentem-se muito sós pensando serem os únicos imperfeitos.
Não é fácil ser pai nem mãe nem filha. Há tantos fatores por detrás destas relações. No nosso caso, acho que a dificuldade é não ter a quem apontar o dedo. Não só porque, amando-nos tanto, culpar o outro implicaria um grande ódio, como porque, estando tão misturados uns nos outros, o dedo apontado faria ricochete para nós próprios, e assumir tamanha culpa é insuportável.
Acho que, havendo culpa, ela é dos papéis que nos impingimos. Supusemos que ser pai significava uma coisa e ser mãe outra e ser filha outra e depois, quando agimos de desacordo com esses papéis, desfizemos o frágil equilíbrio do acordo familiar. Porque os impingimos não sei, sendo eles tão difíceis de manter. Imaginámos os pais fortes, impossíveis de abalar e, ao serem abalados, colocámos nos filhos o dever de os segurar. Imaginámos os filhos estáveis e obedientes, seguindo o “tradicional caminho da vida” e, quando ganharam o seu próprio passo, colocámos nos pais o dever de os endireitar. Mas os pais não são fortes nem os filhos são os espelhos dos pais. Talvez a solução seja deixarmos a responsabilidade de lado. Pergunto-me se existe amor sem responsabilidade.
Talvez não exista, mas a forma como vemos a responsabilidade tem de ser diferente; ela deve ser conjunta e não individual. A nossa falha foi termos dividido as responsabilidades entre os vários membros, de acordo com a sua posição hierárquica, até serem tão pesadas que precisámos de sair delas. A mais pesada é a de “resolvermo-nos”, fazermo-nos uma família “normal”.
Vejo-a em todos nós. Todos tentamos resolver-nos e depois erramos e vivemos presos nessa tentativa, tão presos que, cansados, impomos a responsabilidade a outro. Andamos há anos a passar a batata quente sem nunca, verdadeiramente, a desapegarmos de nós.
Desmantelar estereótipos, mesmo que formas de poder que nos condicionam e magoam, não é fácil. Esquecer a família como retratada pela sociedade implica renunciar a anos de exaustão em que tentámos recriar-nos à sua imagem. A vontade de nos resolvermos é baseada nesse estereótipo; e se calhar, no final de tudo, não precisamos de ser resolvidos. Se calhar nós já somos aquilo que uma família é suposto ser. As famílias também sofrem e não há mal nisso. Essa é a chave, por mais difícil que seja aceitá-la.
É difícil aceitá-la porque, então, não há nada a fazer, e pensar assim pode até retirar-nos a esperança de um dia melhor em que tudo seja fácil. De repente, não há culpas a distribuir, não há um objetivo. Mas será mais fácil, eu prometo, quando deixarmos de prosseguir a perfeição e recebermos a dor e lidarmos com ela estando emocionalmente abertos e aceitando que correr mal não quer dizer que sejamos maus.
Não há amor maior que o amor que tenho à minha família e isso basta-me para saber que somos, à nossa maneira imperfeita, complicada e feliz, a família ideal.
Noa Brighenti, aos 22 anos, navega entre duas dimensões distintas: o seu percurso académico no mundo jurídico e o seu envolvimento em várias equipas e projectos artísticos e culturais.
Aluna finalista na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pós-graduada em Direito da Igualdade, dedica-se a explorar a influência recíproca entre estas duas dimensões e o seu impacto coletivo na sociedade. Nos seus tempos livres, coleciona gatos e perguntas, passeia, pinta e lê. Gosta de escrever, é a sua linguagem.