Já não se pode dizer nada. A frase, que está a concorrer com grande avanço ao lugar de inépcia da década, não é propriamente nova. As queixinhas de que não há liberdade de expressão, agora toda a gente se ofende com tudo ou não se pode brincar com ninguém são feitas há anos por trolls nas redes sociais, sempre lamentando a ditadura do politicamente correto, cientes que a linguagem é apenas mais uma das subtilezas que dá continuidade à subjugação das minorias. Exercida de forma verbal, física, social e económica, a violência é sistémica e estrutural.
Na década de 1970, surgiu um movimento político de esquerda nos Estados Unidos. O seu objetivo era de empoderar minorias – mulheres e pessoas negras, homossexuais, transexuais ou com deficiência – através de uma reflexão sobre o que dizemos, como as palavras podem ser uma arma se usadas de forma agressiva e hostil. Retirando do vocabulário expressões socialmente aceites, mas, claramente, nocivas para aqueles grupos, a alteração da linguagem, politicamente correto, bom senso ou apenas boa educação, como preferirem, seria mais um passo para transformar outras atitudes discriminatórias.
O movimento foi mais longe ao defender, segundo o Dicionário Conciso de Política da Universidade de Oxford, o multiculturalismo nas universidades americanas, promovendo discursos e comportamentos anti sexistas e antirracistas, mudanças nos currículos que enfatizassem o papel de mulheres, pessoas não brancas e homossexuais na história e na cultura e, ainda, atacando a dominação da cultura ocidental por homens brancos europeus mortos.
Neste movimento do politicamente correto, as minorias consciencializam-se que a mudança da linguagem está intrinsecamente relacionada à sua luta de classes. Não é possível erradicar expressões racistas, homofóbicas, xenófobas ou misóginas sem erradicar o racismo, a homofobia, a xenofobia ou a misoginia.
Assim o disse Paulina Chiziane, vencedora do Prémio Camões 2021, que defendeu a “descolonização” dos dicionários portugueses. A escritora moçambicana afirmou que a palavra catinga, por exemplo, está definida como “que vem como cheiro nauseabundo característico da raça negra” e sublinhou a necessidade de uma “limpeza na língua portuguesa para não perpetuar a suposta inferioridade das pessoas negras”. As palavras importam. E “têm poder. Sobretudo quando são usadas contra nós”, afirmou a escritora luso-guineense Gisela Casimiro, para quem o uso ou não de uma palavra “é, realmente, uma escolha e devemos compreender o seu efeito e a sua História”.
Djamila Ribeiro adverte que ser antirracista é uma prática urgente e que exige a todos ser quotidiana. No seu livro Pequeno manual antirracista, a filósofa brasileira explica que o primeiro impulso das pessoas é “recusar enfaticamente a hipótese de ter um comportamento racista” porque não manifestam abertamente hostilidade para com pessoas negras e nem têm, tampouco, intenção de o fazer.
Então, sem pretensão de ferir, rebaixar ou desprezar pessoas negras, como conseguimos fazê-lo? Perpetuando palavras e expressões que ferem, rebaixam e desprezam, “porque a linguagem é carregada de valores sociais”. Ela é negra, mas é bonita; não sou racista, até tenho um amigo que é negro; trabalho como um preto.
Escreve Djamila Ribeiro que, na check list para se ser antirracista, além de estar atenta às minhas atitudes, à minha linguagem e ciente dos meus privilégios enquanto mulher branca, tenho que ter uma postura incómoda e resignar-me com os comentários nas minhas costas (e, muitas vezes, na minha cara): já não se pode dizer nada, ofende-se com tudo, era só uma brincadeira. Levo esta tarefa de ser chata muito a sério. A riqueza da língua portuguesa, dizem que uma das mais belas do mundo, permite que nos expressemos sem ferir, assim o queiramos. E porque, se há quem se expresse, divirta, converse, sem ostracizar o outro porque reivindica que as palavras carregam consigo a História de oprimidos e opressores, existe um movimento de contramão, de direita e conservador ou, pior, de extrema-direita, que lamenta que já não há liberdade de expressão e “faz birra” porque já não se pode dizer nada.
Nos últimos anos, a extrema-direita tem ascendido meteoricamente um pouco por todo o mundo. Sob a alçada da liberdade de expressão, de serem politicamente incorretos, estes políticos têm promovido agendas abertamente racistas, xenófobas e misóginas.
O politicamente incorreto recorre, em última instância, ao fundamentalismo, às vezes religioso, às vezes económico, mas sempre intimidatório. Veja-se a promessa de Javier Milei de “dar uma biqueirada no cu aos queques incompetentes, corruptos e parasitas que nunca trabalharam nem fizeram nada de útil na vida”. Ao Papa Francisco, chamou de “imbecil que promove o comunismo”. Aos jornalistas apelidou de “cretinos” e “deturpadores” que têm, quase sempre, “problemas de compreensão” por serem “burros”.
Em sintonia com o presidente argentino, André Ventura, no debate com Pedro Nuno Santos, insultou-o de frouxo, e a Luís Montenegro, de idiota útil. Ao CDS apelidou de “direita mariquinhas”. O seu partido (Chega) tem sido bastante vocal sobre a teoria da grande substituição, nascida nos Estados Unidos e que viajou com rapidez para o velho continente, baseada num suposto plano da “esquerda de iphone" para substituir os caucasianos na Europa por minorias. Esta xenofobia do Chega vem, pelo menos, desde 2017, altura em que André Ventura escreveu no Facebook “Pode ser polémico e politicamente incorreto, mas não vou deixar de o dizer: é fundamental reduzir drasticamente a presença e a dimensão das comunidades islâmicas dentro da União Europeia. Não é só uma questão de segurança, mas de sobrevivência da nossa democracia.”
André Ventura escuda-se no politicamente incorreto para fazer uma declaração criminosa. A xenofobia é uma expressão de violência cuja crença é a de que estrangeiros têm culturas inferiores e com potencial de ameaçar a integridade de um país. Por outro lado, faz-se a sobrevalorização da cultura nacional promovendo a desconfiança, a antipatia, às vezes o medo, chegando até ao total sentimento de aversão pelos imigrantes. Depois de mais de um milhão de votos, corremos todos o risco que as palavras de André Ventura saiam das caixas de comentários diretamente para as ruas, em forma de violência verbal, física ou psicológica.
Ora, se chegou até aqui e sentiu vontade de dar uma palmadinha nas suas costas (brancas, obviamente) por não ser racista, hold your horses. O racismo pratica-se também por inércia, que, ultimamente, altera a perceção coletiva da nossa realidade enquanto comunidade. Assim o afirmou Desmond Tutu, Prémio Nobel da Paz, que na sua luta contra o Apartheid cunhou a célebre frase: “se ficarmos neutros perante uma injustiça, escolhemos o lado do opressor”. A inação gera consequências terríveis, pois “se um elefante pisa a cauda de um rato e dizemos que somos neutros, o rato não apreciará a nossa neutralidade”.
Não sejamos hoje o elefante. Amanhã poderemos ser o rato.