E no que diz respeito à ansiedade e esse tipo de coisa, sim, fui diagnosticado com isso. […] Nossos avós não tinham esses termos para descrever essas coisas, sabes? […] Eles podem ter passado por coisas semelhantes, mas simplesmente tiveram de passar por isso.
É isso que é. A vida é vida e a vida chega até nós de maneiras diferentes, e cabe a cada um prestar atenção ao que está acontecendo.
André 3000 – entrevista de Rodney Carmichael, in https://www.opb.org/
A tendência para me imergir em música ambiente e jazz experimental cresceu nos últimos anos. Sempre gostei, mas atualmente é uma terapia diária, que me permite níveis de concentração elevados, purificar o meu espírito para escrever e criar, uma espécie de água que limpa todas as dobras do cérebro, estimulando-o gentilmente, levando-me para estados e atmosferas férteis, pouco convencionais, enquanto me permite manter uma sensação de asseio emocional.
Não acho que o André 3000 tenha tido a intenção de fazer um álbum que seja uma referência à paz, ou uma crítica direta ao que quer que seja.
Ele justifica «NEW BLUE SUN», com questões de desenvolvimento pessoal, de idade, de independência e exploração criativa. De estado e momento artístico.
A mensagem está no facto de ele o ter feito. Isso cristaliza uma tendência com tempo, espaço e contexto.
Alguém com o alcance global, a fama, o talento, o poder comercial dele, decidir fazer um álbum de jazz ambiental e espiritual, evocando Alice Coltrane, Pharaoh Sanders, Sun Ra entre outros, é uma mensagem poderosíssima. Porque desconstrói a expectativa para a transformar em esperança.
A mensagem é que é sempre possível uma outra visão do mundo, é sempre possível que o poder da criação desequilibre a balança e nos afaste do condicionado, do conformado, do medo.
Sim, é brilhante em termos promocionais, mas isso aqui não é relevante, porque, neste caso, estamos na presença do marketing que resulta da verdade das coisas e não de construções conceptuais e ficcionais. Não foi feito para parecer assim, foi sentido assim.
E é a verdade, num mundo tecnicamente falso, que nos reenquadra com a razão da nossa existência.
Este desejo de paz, esta fuga para uma espécie de interstício da vida, de alienação consciente, de controlo respiratório e emocional, é uma das principais preocupações desta sociedade aparentemente evoluída.
Sempre existiu guerra. O que não existia de forma tão acentuada era esta enorme pressão e angústia existencial no contexto da sociedade ocidental, esta doença mental alargada de que todos sofremos e que o fenómeno da guerra expõe como ferimento mortal.
Seria ótimo pensarmos que, no ilusório ciclo do devir cósmico, o fenómeno da existência de guerra e dos danos que ela provoca nos levaria mais depressa à paz.
A verdade é que parte do mundo sempre viveu assim. África, Ásia, América do Sul, América Central, e todos os subúrbios das cidades do chamado mundo ocidental, esses mundos internos em estado de VUCA permanente desde que nascem até que morrem, e que existem vizinhos aos nossos bairros estáveis. Claro que aqui, embora neste estado de inferioridade económica e social, o caos não transborda permanentemente porque os mecanismos de repressão «suave» e de potencial de esperança existem e ainda são eficazes.
Há quem pense até que agora sim, no exemplo de Israel e da Palestina, é que a solução dos dois estados vai para a frente, porque, depois disto, não pode permanecer a vontade do horror.
Louvo os otimistas, sempre, mas há quem se ria deles.
Este deslocamento para o vácuo, para a irrelevância existencial, para o maniqueísmo político e social é o alimento de quem vende armas.
Como é que é possível que este assunto não seja discutido, perante evidência incontornável que a mãe de todas as indústrias manipula o mundo como quer e quando quer?
Como é possível que essas pessoas e corporações nunca sejam mediatizadas, e que, em vez disso, o espaço mediático fique ocupado com discussões inconsequentes sobre o lado que tem razão, com as manifestações, resoluções e com as guerras culturais?
Porque esse é o terreno mais fértil para quem lucra do conflito – o simulacro de que existe razão no meio da guerra e que existem lados. No meu ponto de vista, o lado é apenas um – é o de quem vende armas. O resto é povo, e o povo não quer guerra.
Há oito anos que os gastos dos estados com a indústria da guerra sobem consecutivamente atingindo em 2022 a quantia de 2,24 biliões de dólares, o que em americano dá trilions.
As guerras e outros períodos de conflito normalmente aumentam a incerteza política, mas a volatilidade das ações dos EUA é 33 % inferior ao habitual em tais tempos. […] A guerra […] torna a rentabilidade futura de um vasto leque de empresas mais previsível e, portanto, menos volátil. […] Estes efeitos não se limitam ao mercado dos EUA: os gastos mais elevados com a defesa dos EUA estão associados a mercados acionistas mundiais menos voláteis – in Volatilidade das ações e o quebra-cabeça da guerra (NBER Working Paper 29837)
Aquilo que aguenta a sociedade ocidental é o sentido de esperança, a idealização de que ser é possível, e ser alguém melhor, uma conquista ao alcance de todos.
O que se verifica é que existe a tendência para que estes ciclos de guerra associados a períodos de grande crise económica sejam cada vez mais curtos.
A necessidade de disfarçar e fingir que todos queremos a paz, por parte dos dirigentes políticos, foi outra vez substituída pela agressiva e aleatória deriva dos «uns contra os outros», ajudada pelo facto de a desinformação ocupar agora o lugar central na operação de controlo de massas, cada vez mais desinteressadas do fenómeno da manipulação, embora possuam atualmente mais informação do que alguma vez possuíram.
Será que quem vende armas acredita mesmo, do ponto de vista da estratégia industrial, que o mundo pode existir em estado permanente de desesperança, e pressionar cada vez mais estes ciclos ao ponto da sua própria extinção? Ou são apenas alguns que puxam a corda durante algum tempo, para que depois outros colegas bélicos mais moderados na questão da vida e da morte, convençam os outros de que é preciso intervalos para que as pessoas possam ir comprar cerveja?
Ainda bem que o André não acredita.
- https://www.newyorker.com/culture/listening-booth/andre-3000-disrupts-our-sense-of-time
https://www.opb.org/article/2023/11/15/andre-3000-interview-album-new-blue-sun
- https://www.opendemocracy.net/en/arms-industry-shareholder-capitalism-perfect-war-syria-iraq-ukraine
- https://www.opendemocracy.net/en/military-corporations-survey-wealth-profits-war-damage-death
- https://www.visionofhumanity.org/world-become-peaceful-since-wwi/
- https://www.visionofhumanity.org/economic-impact-of-violence/
-Sobre o Pedro Pires-
Pedro Pires é escritor-criativo há 28 anos. Fundador da Poets & Painters, publicou em 2022, o livro “Os pés não têm céu” e, em 2024, o livro “Cosmogonia da Identidade”.