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Haris Pašović: “Não acredito que a arte deva estar desligada da realidade”

Entrevista ao encenador bósnio, a propósito da primeira edição do festival Nem Deal of Artes and Democracy, em Aveiro.

Texto de Sofia Craveiro

Fotografia cedida pela Câmara Municipal de Aveiro.

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É um dos mais reconhecidos encenadores de teatro da Europa de Leste e tem a seu cargo a curadoria da primeira edição do New Deal of Arts and Democracy. Trata-se de um festival que pretende “abordar o papel das artes na construção de uma Europa livre, participativa e inclusiva” e que vai decorrer em Aveiro, de 14 a 16 de junho.

Ao longo da sua carreira, o encenador bósnio recebeu vários prémios e distinções. A sua obra é vasta e foca sobretudo temáticas relacionadas com desigualdades e injustiças sociais.

Quando Sarajevo foi cercada, durante a Guerra da Bósnia, Pašović regressou à sua cidade natal e manteve-se culturalmente ativo, nomeadamente através da encenação de peças e da organização do primeiro Festival de Cinema de Sarajevo, que teve por tema “Além do Fim do Mundo”. Foi nessa altura que produziu o lendário “À Espera de Godot”, encenado por Susan Sontag. Foi também autor de várias peças, documentários e ensaios, como “Divine Uncertainty and Fall of Nationalism”, que abriu a série televisiva “The Great War”, da BBC.

A sua peça “The World of Possibilities”, coproduzida por quatro instituições da Bósnia e Herzegovina, Croácia, Montenegro e Sérvia, que aborda o quotidiano das pessoas com deficiência, é um dos destaques do New Deal of Arts and Democracy.

Em entrevista ao Gerador - feita ainda antes das eleições europeias - Haris Pašović falou sobre o festival em Aveiro, mas também do futuro da arte e como esta se pode relacionar com a democracia, nomeadamente através da denúncia de injustiças. “Não me considero ativista, mas acho que qualquer artista deveria ter essa consciência social”, afirma.

As mudanças no mundo artístico, provocadas pela tecnologia e o impacto que estas podem ter na apreciação que o público faz dos produtos culturais também foi um dos temas em destaque.

Antes de mais, pode explicar a razão da escolha deste nome para o festival?

[O festival chama-se] New Deal of Arts and Democracy. Sabe, desde há um tempo para cá, talvez mais de um ano ou algo do género, O José Pina [coordenador da Aveiro Capital Portuguesa da Cultura] e eu falávamos de algo que pudéssemos fazer juntos, que incluiria tanto trabalhos artísticos, como discussões e ideias acerca de como o mundo artístico atual pode contribuir para a democracia e vice-versa.

Em Sarajevo, sou diretor artístico de uma companhia chamada East West Center. E temos o festival, que se chama Sarajevo Fest, que é sobre artes e democracia. Então esse foi mais ou menos o ponto de partida. Eu estava a falar sobre isso, [a dizer] que precisamos de uma nova maneira de vincular artes e democracia. E então tivemos a ideia de chamar [o festival] de New Deal of Arts and Democracy, o que significa que tudo é novo no mundo de hoje.

Tudo é novo atualmente, quando comparado com o século passado ou com as décadas passadas. A democracia está realmente a mudar, mas a arte também. E o que é que a democracia pode aprender com as artes? O que é que as artes podem aprender com a democracia? Será que a democracia de hoje é mais parecida com a visão artística do mundo? Ou é mais, digamos… tradicional, mais conservadora, mais antiquada, mais autoritária? Portanto, estas são as questões que gostaríamos de começar a explorar. Nós não achamos que conseguiremos responder a todas elas em três dias, mas achamos que é um bom ponto [de partida], sobretudo tendo em conta o aniversário da Revolução Portuguesa, para abrir esta discussão.

Porque motivo diz que tudo é novo hoje? Já vimos no passado este tipo de movimentos extremistas, conservadores... Já os vimos antes. Porque afirma que tudo é novo agora?

Eu acho que a internet, as redes sociais, a interferência em [questões políticas], as fake news, a inteligência artificial, a tecnologia mudou muito o cenário. Então a democracia já não é tão simples como era antes. É mais complexa, mais complicada. E nós testemunhámos, no passado recente, que muitas vezes houve interferência no processo democrático, seja por influência de Estados estrangeiros ou de algumas agências, serviços secretos de inteligência ou entidades privadas. Às vezes eles interferiram nas eleições, outras interferiram em campanhas eleitorais e assim por diante. Então, nesse sentido, certamente há algo de completamente novo quando se trata do processo democrático.

Além disso, a divisão tradicional entre esquerda e direita, na política, não é tão simples como [era] antes, porque agora temos todos os tipos de combinações e não é fácil dizer que algo é completamente à direita, ou completamente à esquerda. As coisas são mais fluídas e as combinações são múltiplas, não apenas nos conjuntos de valores tradicionais…

De certa forma, o Papa, por vezes, é mais liberal do que alguns socialistas, ou democratas. Isso é algo inesperado, que requer atenção especial.

Mencionou o papel da tecnologia. Quer isto dizer que, neste contexto, também considera que a tecnologia deve estar ligada às artes e à cultura?

Pois é… O mundo artístico está a mudar tanto, que eu acho que, em menos de uma década, alguns media tradicionais vão desaparecer. Acho que, por exemplo, os filmes e a televisão tradicional serão completamente substituídos por criações de IA [Inteligência Artificial]. Porque a IA está a desenvolver-se tão rapidamente que, certamente, em 10 anos, será mais fácil e barato fazer um filme enquanto estamos sentados em casa a tomar café. Ter um grande set, com muitos atores, muitos locais [de filmagem] e assim por diante, deixa de ser necessário, mas isso também significa que muitos dos empregos artísticos desaparecerão.

Depois, nas artes visuais, no design, na música, a IA estará cada vez mais presente e será usada, ora [numa lógica] de cocriação com as pessoas, ora, talvez, de forma independente.

Então, sim. Acho que a tecnologia não é apenas parte integrante do mundo artístico atualmente, mas talvez seja mesmo uma parte principal dele.

Mas isso não significa que a arte estará condenada à repetição? Porque a IA baseia-se em criações anteriores, criações humanas feitas no passado…

Se me disser que, principalmente em filmes, a IA será a entidade que mais cria, isso significa que não haverá criações reais. Significa que, certamente, mudará o gosto do público. Acho que os artistas têm que lutar agora para prevenir [isso] e proteger a criatividade.

Acho que em algumas áreas, como o teatro e a dança, a criação humana estará mais presente. Em alguma escrita…talvez. Temos que ver o que vai acontecer. Na minha opinião, o melhor caminho será encontrar uma forma criativa de conviver, de cocriar com a inteligência artificial, mas o que mais temo, é que a quantidade dos produtos feitos artificialmente seja tão grande e tão fácil de alcançar, que mude o gosto do público.

Você pode dizer que o frango da aldeia, feito pela nossa avó, é melhor do que o Kentucky Fried Chicken. Mas se as pessoas estão habituadas ao Kentucky Fried Chicken, elas vão preferi-lo. Quer dizer, não importa que saibamos e possamos provar que o frango da nossa avó é melhor, mais saudável e mais saboroso e assim por diante, porque o Kentucky Fried Chicken é todo um conceito e é isso que as pessoas procuram.

É disso que eu tenho medo, que tenhamos criado artificialmente obras de arte que serão uma espécie de fast food, mas mais apreciadas pelo público do que criações reais.

Então talvez a arte criada por humanos se torne uma espécie de luxo, que apenas apela a uma elite…

Pode ser um luxo ou pode ser algo completamente underground, que só lunáticos gostam. [Pode ser] o tipo de coisa em que dizemos: “eu tenho um vizinho muito estranho, ele realmente aprecia uma obra de arte criada por humanos”.

Então, é nesse sentido que, neste festival em Aveiro, irá abordar a questão da “consciência cultural europeia”, conforme anunciado nas informações oficiais?

Sim. Bem, gostaríamos de conversar e perceber se existe algo como “a cultura europeia”... Eu gostaria que houvesse, mas é uma discussão que deveríamos ter porque…

Nós os dois podemos falar sobre esse assunto, apesar de não nos conhecermos, de termos diferentes países de origem, e assim por diante, mas somos capazes de nos entender [mutuamente]. Acho que enquanto houver conversas sobre isso,  então existe essa consciência europeia sobre isso, mas se as eleições para o Parlamento Europeu mudarem isso…

Talvez tenhamos um Parlamento Europeu mais de extrema-direita e o que isso trará não sabemos. Portanto, tudo é bastante incerto e eu defendo sempre uma abordagem mais ousada, mais vigorosa e robusta quando se trata de preservar a ideologia liberal e as liberdades. Nós, de certa forma, assumimos que as coisas serão sempre como são agora. Não acho que esteja garantido que todas essas liberdades permaneçam imutáveis, nomeadamente a, liberdade cultural e a liberdade artística.

Acha que podem ser limitadas?

A liberdade de expressão, a liberdade individual, a liberdade cultural, artística… já existem algumas restrições, não é? Estamos em guerra e, na guerra, algumas pessoas, políticos ou militares, muitas vezes pensam que tudo deve ser focado apenas na guerra. Talvez esteja recordada que, no início deste conflito com a Rússia, os artistas russos foram cancelados. Agora já não é tão mau, mas ainda está presente. Isso é complexo. Não é fácil dizer sim ou não. Mais uma vez, estamos a assistir a isso com artistas israelitas.

É por isso que não nos podemos desligar dos assuntos atuais. Neste momento, a realidade é que há duas guerras. Uma está na Europa e a outra está muito próxima, fisicamente, da Europa, que tem também muitas conexões com Israel e Palestina.

Então, sim, quer dizer… Certamente que isso é limitador. As políticas de extrema-direita e os assuntos [geopolíticos] atuais já estão a afetar as liberdades artísticas.

Então diria que, atualmente, toda a arte é política?

Não, não é, mas o contexto é político. De repente, se você decidir fazer, sei lá… um conto de fadas no teatro, por exemplo. A menos que seja para crianças, é uma afirmação [política]. Não precisa de mencionar nenhuma guerra, não precisa de mencionar nenhum problema, não precisa de mencionar nada. Isso já é uma declaração [política]. A vida é tão politizada que, se apresentar a Branca de Neve, alguém dirá que ela não é feminista o suficiente, que os anões são homossexuais… Todas essas questões vão aparecer. Embora a intenção não fosse criar nenhuma controvérsia política, o contexto é tão carregado, que cada peça se torna também política.

De que forma vai trabalhar esse tipo de reflexão no festival? Através de peças, performances, mas também debates?

Essa é a ideia. Ter abordagens diferentes. Tal como estamos aqui a colocar todas essas questões, algumas delas vão ser colocadas  [no festival] através do trabalho artístico. Por exemplo, Anthony Joseph é um grande artista, poeta e músico, e seu trabalho é tão expressivo quando se trata de raça, quando se trata de liberdade... Isso certamente vai inspirar o público a pensar em muitas questões relacionadas com o que ele estará a cantar e falar.

O meu espetáculo, “The World of Possibilities”, é sobre a vida de pessoas com deficiência e suas famílias e terapeutas. É sobre amor, empatia e solidariedade, mas ao mesmo tempo sobre discriminação, sobre as categorias das pessoas mais frágeis na sociedade. Uma sociedade é tão forte quanto o são as pessoas mais frágeis. Isso também tem algum tipo de eco político, embora a história não seja política.

Peça, "The World of Possibilities". Fotografia cedida pela Câmara Municipal de Aveiro.

‘A Noite’, de Saramago, é claramente política. Contextualizada no mundo de hoje, é muito sobre uma das últimas revoluções europeias, o legado da revolução, mas também legado do fascismo em Portugal, e fala diretamente sobre liberdade de imprensa e liberdade de expressão.

Também mostraremos um filme-documentário, [teremos] uma conversa sobre o legado pós-colonial que já tivemos em Bruxelas, com o Presidente da Câmara Municipal de Aveiro [José Ribau Esteves]. Alguns artistas de diferentes partes da Europa reuniram-se para esta série chamada Take Five, que fala da Europa e da arte. Esse filme será também exibido. E haverá alguns passeios por Aveiro, [organizados] com o museu [local] para visitar os locais que foram significativos para a Revolução Portuguesa.

Acho que é um programa muito diverso, que será abordado de diferentes ângulos. E é igualmente interessante para o público mais jovem e o público mais velho. Queríamos fazer um programa que atraísse a todos.

Tudo isso também tem relação com o seu trabalho no passado, visto que sempre se focou em temas relacionados com desigualdades e justiça social. É algo que também vê como relevante para Portugal neste momento?

Eu acho que sim. Penso que estas são questões universais. São questões europeias por excelência. Não me considero ativista, mas acho que qualquer artista deveria ter essa consciência social.

E, como eu dizia, o artista deve dar voz a quem não tem. Somos figuras públicas, temos acesso aos meios de comunicação, ao público, e devemos falar em nome das pessoas que não têm acesso, que não têm voz na esfera pública. Nesse sentido, eu acho que ter empatia e solidariedade faz parte do discurso artístico. Não acredito que a arte deva estar desligada da realidade. 

Acho que Portugal tem muitas coisas para mostrar à Europa, para ensinar à Europa. Portugal é um país muito criativo, carregado de mudanças históricas e de História que nem sempre foi fácil. Seja para os portugueses ou para os ocupados pelos portugueses, nem sempre foi fácil.

Mas acho que estas dinâmicas a que assistimos hoje, em Portugal, podem ser muito elucidativas para o resto da Europa. Por outro lado, Portugal tem sido muito instrutivo. Está um pouco no limite da Europa... então talvez o acesso físico torne Portugal um pouco distante de outros países. É por isso que este tipo de internacionalização deve ser… é sempre bom, acho eu. Quer dizer, eu sei que Portugal está aberto aos internacionais, mas é sempre bom ver quando há oportunidade, intercâmbio. 


*
O festival New Deal of Arts and Democracy integra a programação de Aveiro 2024 – Capital Portuguesa da Cultura, cuja curadoria é resultado de uma colaboração entre Teatro Aveirense e Haris Pašović, que tem agora a sua primeira experiência profissional em Portugal.

O evento, que decorre entre 14 e 16 de junho, conta com um concerto de Anthony Joseph - que apresentará um espetáculo entre jazz, spoken word, funk, calipso e outras geografias sonoras - , o espetáculo “A Noite”, de José Saramago, pelo Grupo de Teatro de Jornalistas do Norte e um debate com o Presidente da Câmara Municipal de Aveiro, José Ribau Esteves, sobre o futuro da Europa, no rescaldo das eleições europeias.

Os bilhetes estão disponíveis nos locais habituais.

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