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REPORTAGEM
 DEMOCRACIA 

A batalha das mulheres nas guerras do século XX: desafios de uma memória fragmentada

 

Texto de Isabel Cunha Marques e Ana Patrícia Silva
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Marina Mota
Produção de Martim Campos e Sara Fortes da Cunha
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Teresa Gomes e Inês Roque

08.07.2024

Nas duas grandes guerras mundiais, assim como na Guerra Colonial, a mobilização feminina no discurso governamental fundamentou-se na representação social dos sexos, acentuando a simbologia de um modelo de virilidade masculina e de abnegação feminina. Estes foram papéis que se estenderam ao longo do século XX. Neste artigo, tentamos perceber como esta mobilização feminina se organizou em alguns países do mundo. Esta é a quinta parte da série “A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra”.

Poucos dias após a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, a 9 de março de 1916, um grupo de mulheres pertencentes à aristocracia monárquica começou a ser notícia nos jornais do país. O conflito acabou por criar uma oportunidade para as mulheres, subvalorizadas até aí, se revelarem “úteis”, numa época em que delas pouco mais se esperava do que serem boas mães e exímias donas de casa. É em Feminae. Dicionário Contemporâneo, Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (2013), que uma equipa de investigadores dirigida por Zília Osório de Castro e João Esteves conta este episódio.

O grupo era formado pela marquesa de Castelo Melhor, a condessa de Penalva de Alva, Adelaide Coelho de Cunha – filha do fundador do Diário de Notícias –, Luisa de Almeida e Vasconcelos Cabral e Sophia de Carvalho Burnay de Jesus de Sousa Holstein de Ornelas. A elas juntou-se uma outra mulher, Jane Bensaúde, francesa casada com Alfredo Bensaúde, diretor do Instituto Superior Técnico de Lisboa, que teve influência no arranque do movimento, embora o seu nome não constasse na comissão organizadora.

Na altura, as mulheres elevaram capacidades que até então nunca lhes tinham sido reconhecidas, acabando por contribuir para o esforço de guerra. Esta “utilidade” foi uma realidade que se estendeu também por Portugal, de norte a sul do país, até ao final da Guerra Colonial.

 

As mulheres na Grande Guerra

 

Em Portugal, a importância das madrinhas de guerra foi tão grande, entre os anos 1914 a 1918, que mereceu uma entrada na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, iniciando a sua publicação em 1936. Nela podia ler-se que uma “madrinha de guerra” era a “Protetora de um militar em campanha”. Reconhecia que a sua designação surgiu durante a Primeira Guerra Mundial. Acrescentava ainda que “durante a nossa permanência na Flandres, senhoras de Portugal e do Brasil, francesas e inglesas, apadrinharam soldados nossos e tomaram a iniciativa de ofertas em comum para serem distribuídas pelos combatentes. A madrinha de guerra foi muitas vezes noiva ou esposa do afilhado”.

A secção feminina da Cruz Vermelha, presidida por Amélia Pitta e Cunha, e o Movimento Nacional Feminino, liderado por Cecília Supico Pinto, criado na sequência do rebentamento da guerra em Angola, viram nas instituições da Primeira República as suas raízes de base de apoio aos militares, embora se distanciassem da ideologia feminista que animava as mulheres da “Cruzada Portuguesa”.

Em Portugal, como em França, Inglaterra e Estados Unidos, assistiu-se a uma suspensão assumida das reivindicações feministas em resposta ao apelo de mobilização patriótica. Na sequência da declaração de guerra entre Portugal e a Alemanha, as mulheres, particularmente da Associação de Propaganda Feminista, envolvem-se intensamente na defesa da nação. E este é um dado importante, porque constituiu-se a Comissão Feminina “Pela Pátria” em 1914 e, em 1916, a “Cruzada das Mulheres Portuguesas”, organizações consideradas de interesse nacional, vocacionadas para o apoio aos soldados – através de donativos e de vestuário recolhido –, a assistência a afilhados de guerra, a reeducação dos soldados feridos fisicamente e a formação de enfermeiras de guerra.

Natividade Monteiro, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) na Universidade NOVA de Lisboa, no artigo “Mulheres Portuguesas em Tempo de Guerra (1914-1918)”, recorda que Ana de Castro Osório, dirigente da Associação de Propaganda Feminista, nunca aderiu ao pacifismo. Encarava a guerra como “a grande oportunidade para as mulheres mostrarem o seu valor, inteligência e capacidade de iniciativa na realização do trabalho ao serviço da Pátria e na construção de um futuro mais progressista, a fim de merecerem o reconhecimento social e político que há muito ambicionavam”.

A investigadora refere ainda que o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, dirigido por Adelaide Cabete, opôs-se inicialmente à guerra, mas por força das diretivas do International Council of Women, acabou por reconhecer imprópria a defesa do pacifismo.

Quando a guerra eclodiu, conforme a investigadora destaca no artigo “Mulheres Portuguesas em Tempo de Guerra (1914-1918)”, Maria Veleda, dirigente da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, ainda apelou à greve geral como meio de travar a barbárie do “imperialismo militarista, contrário aos valores da democracia, da liberdade, da paz e da igualdade dos povos, raças e sexos que há muito defendia”. Mas não tardou em ceder.

Nas cinco partes desta reportagem, o Gerador ouviu vários relatos na primeira pessoa. As madrinhas de guerra, as mulheres, os ex-combatentes e os especialistas dedicados ao tema do Colonialismo e do Pós-Colonialismo. Mas, se para perceber esta história de dentro para fora foi um processo longo e complexo, conhecer o fenómeno das madrinhas de guerra no contexto internacional, portuguesas ou de qualquer outra nacionalidade, tornou-se num beco sem saída. A dificuldade no acesso às histórias, aos registos documentais e até mesmo às organizações internacionais foi crescente ao longo desta investigação. Ainda assim, alguns dados restaram. Numa etapa seguinte apresentamos como estas mulheres estiverem presentes de diferentes modos, nas mais variadas conjunturas.

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Aerograma desktop – Madrinha
INGLATERRA SÉRVIA E RÚSSIA ALEMANHA ITÁLIA FRANÇA

INGLATERRA

Em 1917, o Women’s Army Auxiliary Corps, um corpo de exército feminino, reuniu 40 mil mulheres a prestarem serviço como mecânicas, condutoras, cozinheiras, datilógrafas, telefonistas e secretárias.

SÉRVIA E RÚSSIA

A Sérvia e a Rússia recrutaram as mulheres também para a frente de combate, destacando-se, respetivamente, a enfermeira-soldado Flora Sandes e a comandante dos Batalhões Femininos da Morte, Maria Bochkareva. Estes batalhões surgiram como suporte do governo provisório de Kerensky para impedir que os homens desertassem. Maria Bochkareva e Marina Yurlova já tinham combatido em batalhões masculinos.

ALEMANHA

A Alemanha cedo reconheceu o Nationaler Frauendienst, com funções de exército feminino a auxiliar na administração, assistência e aprovisionamento, com o apoio do Bund Deutscher Frauenvereine.

ITÁLIA

A Itália recusou a participação das mulheres na guerra, apesar do Comitato Nazionale Femminile per l’Intervento Italiano ter sugerido que se recrutassem todas as mulheres entre os 14 e os 48 anos. Ainda assim, elas mobilizaram-se para prestar todo o serviço necessário ao esforço de guerra.

FRANÇA

A França contou com o apoio do Conseil National des Femmes Françaises (Conselho Nacional das Mulheres Francesas) e da Union Française pour le Suffrage des Femmes (União Francesa para o Sufrágio Feminino) para o voluntariado feminino nos campos, nas fábricas, nos hospitais e na assistência.

La Famille du soldat [A Família do Soldado] foi a primeira associação a nascer em janeiro de 1915. Criada por Mlle de Lens, contou com o contributo de mediação de algumas pessoas de destaque e de publicidade gratuita no L’Écho de Paris, um jornal parisiense. O fluxo foi de tal forma elevado que não demorou muito até que surgisse a própria agência dedicada a cartas de soldados. O mesmo aconteceu com outros jornais como L’Homme enchaîné, La Croix, Le Journal, de tal forma que surgiu a publicação “Mon soldat” (“Meu Soldado”), fundada por Mme Bérard e apoiada pelo ministro da Guerra, Alexandre Millerand. Estas primeiras publicações eram altamente éticas e patrióticas.

Bibliografia:

“Mulheres portuguesas em tempo de guerra”, de Natividade Monteiro, 2016.
“África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial”, Margarida Calafate Ribeiro, 2004.
Amor em tempo de guerra: as ‘madrinhas de guerra’ no contexto de guerra colonial portuguesa (1961-1974), Fernando Martins, 2011.
Livro “Madrinhas de Guerra: a correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar”, 2020.

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INGLATERRA SÉRVIA E RÚSSIA ALEMANHA ITÁLIA FRANÇA

INGLATERRA

Em 1917, o Women’s Army Auxiliary Corps, um corpo de exército feminino, reuniu 40 mil mulheres a prestarem serviço como mecânicas, condutoras, cozinheiras, datilógrafas, telefonistas e secretárias.

SÉRVIA E RÚSSIA

A Sérvia e a Rússia recrutaram as mulheres também para a frente de combate, destacando-se, respetivamente, a enfermeira-soldado Flora Sandes e a comandante dos Batalhões Femininos da Morte, Maria Bochkareva. Estes batalhões surgiram como suporte do governo provisório de Kerensky para impedir que os homens desertassem. Maria Bochkareva e Marina Yurlova já tinham combatido em batalhões masculinos.

ALEMANHA

A Alemanha cedo reconheceu o Nationaler Frauendienst, com funções de exército feminino a auxiliar na administração, assistência e aprovisionamento, com o apoio do Bund Deutscher Frauenvereine.

ITÁLIA

A Itália recusou a participação das mulheres na guerra, apesar do Comitato Nazionale Femminile per l’Intervento Italiano ter sugerido que se recrutassem todas as mulheres entre os 14 e os 48 anos. Ainda assim, elas mobilizaram-se para prestar todo o serviço necessário ao esforço de guerra.

FRANÇA

A França contou com o apoio do Conseil National des Femmes Françaises (Conselho Nacional das Mulheres Francesas) e da Union Française pour le Suffrage des Femmes (União Francesa para o Sufrágio Feminino) para o voluntariado feminino nos campos, nas fábricas, nos hospitais e na assistência.

La Famille du soldat [A Família do Soldado] foi a primeira associação a nascer em janeiro de 1915. Criada por Mlle de Lens, contou com o contributo de mediação de algumas pessoas de destaque e de publicidade gratuita no L’Écho de Paris, um jornal parisiense. O fluxo foi de tal forma elevado que não demorou muito até que surgisse a própria agência dedicada a cartas de soldados. O mesmo aconteceu com outros jornais como L’Homme enchaîné, La Croix, Le Journal, de tal forma que surgiu a publicação “Mon soldat” (“Meu Soldado”), fundada por Mme Bérard e apoiada pelo ministro da Guerra, Alexandre Millerand. Estas primeiras publicações eram altamente éticas e patrióticas.

Bibliografia:

“Mulheres portuguesas em tempo de guerra”, de Natividade Monteiro, 2016.
“África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial”, Margarida Calafate Ribeiro, 2004.
Amor em tempo de guerra: as ‘madrinhas de guerra’ no contexto de guerra colonial portuguesa (1961-1974), Fernando Martins, 2011.
Livro “Madrinhas de Guerra: a correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar”, 2020.

 

Madrinhas de guerra: um fenómeno mundial?

 

A adesão das mulheres com os projetos belicistas dos governos nacionais, ao longo de quase um século, não foi unânime. Se, por um lado, houvesse quem legitimasse a guerra, por outro – uma minoria considerável –, mantinha-se dissonante da mesma apesar da censura e das perseguições. Exemplo disso foram os dois congressos que ocorreram na primavera de 1915: o Congresso Internacional pela Paz, realizado na cidade suíça de Berna pelas mulheres socialistas, lideradas por Clara Zetkin e Louise Saumoneau; e o I Congresso Internacional das Mulheres Pacifistas, realizado em Haia, nos países baixos, ao qual compareceram 1300 mulheres de países neutrais e beligerantes.

Nas duas grandes guerras mundiais, assim como na Guerra Colonial, a mobilização feminina no discurso governamental fundamentou-se na representação social dos sexos. Períodos em que se acentuou a simbologia de um modelo de virilidade masculina e de abnegação feminina, díade intrínseca à cultura e subculturas da guerra, tal como a historiadora Helena Neves veio a retratar no artigo científico “Amor em tempo de guerra: Guerra Colonial, a (in)comunicabilidade (im)possível”, publicado 30 anos depois do término da Guerra Colonial.

 

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A Madrinha

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Parte 6

31 de Julho

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