Com o aproximar do prazo de entrega desta crónica, torna-se mais difícil escolher a dor a exorcizar desta vez. Sem pretender auto-centrar demasiado o presente texto, vou falar sobre uma experiência com a qual muitas pessoas se poderão identificar - a da minha fulgurante entrada no mercado de trabalho e a sua evolução até ao presente.
Quando acabei a faculdade, pronto para ir agarrar o meu futuro, com a pica e vigor em máximos históricos, corria o ano de 2008. Eu ganhava a vida entre dar aulas de música numa escola primária e uns modestos concertos que iam aparecendo. No ano seguinte, o país apresentava o quinto maior défice da zona Euro. Nuvens negras no horizonte, estávamos lixados e, a cada telejornal, parecia que estávamos amarrados a um barco a afundar.
Eu aproveitei o privilégio de conseguir sair (com grande apoio e sacrifício familiar) e fui novamente estudar, para fora. Fui também para tentar arranjar sustento futuro num país mais disponível financeiramente, sedento de agarrar todas as oportunidades que se apresentassem no caminho. Dediquei-me a estudar como nunca tinha feito na vida, saí-me bem, fui trabalhar como técnico de som, mal pago, mas com contracto.
Ao fim de quatro anos senti o romântico (essencial) chamamento para voltar para Portugal, acreditando que havia aqui ainda muito por fazer e querendo também contribuir para construir (ou reconstruir) o meu país. No meu caso, em forma de canções e música que ia fazendo, em nome próprio ou em colaboração com inúmeros artistas - aquele lirismo delicioso dos 27.
Em 2011 a troika entrou em Portugal. Em 2013 eu resolvo voltar, contrariando conselhos sábios e bem-intencionados, para me assumir profissionalmente como músico. Muitos outros voltaram (e continuam a voltar) porque sonharam construir um futuro aqui, nas suas áreas de actividade, porque é cá que estão as famílias, os amigos e o coração. É casa. Passados mais de dez anos desde que voltei, muita coisa aconteceu. Foi a vez de o meu irmão emigrar, também ele à procura de se safar, e agora temos de planear melhor a vida familiar, já não dá para aquela rotina do dia-a-dia. É só uma história banal, igual à de tantos outros e, felizmente, sem contornos espectacularmente dramáticos.
Em 2019 o governo lançou o “Programa Regressar”, que atribui benefícios fiscais a emigrantes que resolvam regressar. Infelizmente voltei demasiado cedo, não fui a tempo de ver excluídos da minha tributação “50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresarias e profissionais dos sujeitos passivos, até ao montante de 250 000,00 €.” Voltei demasiado cedo, mas também não podia adiar a minha vida. Fiz muita coisa entretanto, com os clássicos altos e baixos. Hoje tenho 38 anos e, apesar de estatisticamente até poder estar acima da nossa miserável média de pobreza, sinto-me francamente precário. Sou um verdadeiro trabalhador independente a recibos verdes precário. Agora debatem-se benefícios fiscais para jovens até aos 35 anos e eu, que voltei cedo demais para ser convocado de volta ao país, sou agora velho demais para poder aliviar a corda da minha garganta no que toca ao equilíbrio entre a minha vida e as contribuições para o Estado. Atenção, claro que eu acho essencial e positivo que se tomem medidas para incentivar emigrantes a regressar e que os jovens tenham condições especiais para ingressar no mercado de trabalho e terem uma experiência mais agradável que a minha. Também acho óptimo que tenham isenção de IMT quando quiserem comprar uma casa para viver. Mas adorava que o governo não se esquecesse daqueles que têm 25 na cabeça, mas acima de 35 no corpo. Sinto-me permanentemente adiado e cada vez mais expulso da minha própria vida. Era interessante que se falasse de recibos verdes de uma vez por todas, que não aparecessem pagamentos por conta a meio do ano (adiantando impostos ao Estado que só terei de pagar no ano seguinte, com cálculo baseado no ano anterior (!!!)) e que, por exemplo, a Segurança Social não nos expropriasse de parte do nosso cachê, com a psicadélica contribuição para o estatuto do profissional da cultura, mesmo quando não estamos inscritos — porque os apoios sociais devem vir dos fundos da própria segurança social e não de uma sociedade de artistas precários e seu mealheiro mágico, uma vez que pagamos segurança social. Já escrevi uma crónica inteira aqui sobre o assunto, mas agora que me voltei a lembrar, e já que me irritei, porque não voltar a bater nesta ideia absurda?
Pagar impostos é algo que não me chateia por princípio, sou um defensor do Estado-Social e isso, infelizmente, não nasce nas árvores. Mas é inegável que existe um fosso fiscal demasiado grande entre entre trabalhadores independente a recibos verdes e um trabalhador dependente, um funcionário público, um nómada digital, um emigrante regressado, um investidor estrangeiro ou um jovem de 34 anos. Tive cartão-jovem, devia ter feito interrail. Não há sindicato, não há férias - há desemprego temporário. E mesmo nessas alturas em que escolhemos descansar, é melhor levar o computador porque temos de pensar em novos projectos ou ideias para garantir o trabalho do próximo ano. Uma espécie de CEO sem capital.
Pagamos a segurança social por inteiro, adiantamos impostos e ainda contribuímos para um fundo de caridade que o Ministério da Cultura inventou - em vez de ser a Segurança Social a cumprir a função e dar condições básicas aos profissionais mais precários. Em vez disso damos borlas fiscais a em sede de IRC e, no caso do IRS, muito questionável no caso dos ordenados mais elevados no faixa etária sub-35. Portanto, um jovem de 35 anos que ganhe muito mais do que eu, vai ter uma borla fiscal e insenção de IMT, criando uma vantagem clara de uma geração em relação à outra, meramente baseada na questão da idade. Concordo completamente com dar facilidades aos jovens, mas a minha geração também está com dificuldades em sobreviver e gostávamos de existir uma vez na vida.