Logo após as eleições europeias de Junho, aventurei-me numa breve análise aos resultados da nova composição do Parlamento Europeu. Hoje, decorridos que estão três meses, já é conhecida a composição dos lugares de topo das três principais instituições europeias, resultado de um acordo político entre as três maiores forças políticas democráticas europeias.
Numa primeira leitura, após os primeiros 100 dias de novo Parlamento, há dois factos que se confirmam. O primeiro, é uma viragem acentuada à direita, com o centro-direita confortavelmente amparado por uma extrema-direita reconfigurada e apostada em apresentar-se como parceiro fiável e moderado. O segundo, é o reforço dos poderes da Presidente da Comissão Europeia e a centralização da ação executiva na influência crescente de Ursula von der Leyen.
O primeiro e mais evidente resultado desta nova reconfiguração politica dá-se em matéria de migrações. Numa recente reunião com vários chefes de governo, auto-definidos como parceiros de pensamento semelhante (like-minded partners), von der Leyen dedicou-se a explorar a possibilidade de estabelecer acordos com países terceiros para a recolocação de migrantes ou refugiados que chegam ou cheguem à Europa. Em suma, como replicar o modelo já em vigor em Itália, adotado por Meloni, a toda a União Europeia.
Se não causa espanto o apoio declarado da direita europeia a esta solução ignóbil, é penoso assistir ao apoio de partidos de centro-esquerda ou a sua abertura à discussão da sua eventual aplicação. É o caso dos sociais-democratas dinamarqueses, anfitriões da primeira reunião com von der Leyen, e o caso dos trabalhistas britânicos, cujo líder e novo Primeiro-ministro manifestou muito interesse nesta solução durante uma visita oficial a Roma e à líder do governo italiano.
Ora, quando se esbatem as fronteiras entre os partidos do centro, da esquerda e da direita, abre-se o espaço para a perda de confiança dos seus eleitorados e cria-se a oportunidade para o crescimento dos movimentos e partidos populistas. Quando a esta incapacidade de distinção entre ambos os lados se junta uma excessiva proximidade de políticas na economia, a crise de afirmação dos partidos tradicionais do centro acentua-se.
As afirmações dos projetos políticos da esquerda, sobretudo da social-democracia, precisam, acima de tudo, de clareza. É preciso uma visão, um projeto de sociedade agregador, que mobilize as pessoas em torno de uma alternativa que seja popular, ao invés de populista.
Para que o centro-esquerda se consiga voltar a afirmar como a real alternativa política, social, económica e, até, cultural, precisa de se saber afirmar em torno de três ideias fundamentais: a liberdade individual, a segurança e a esperança.
Pode a esquerda contrariar a perceção de que tem apenas uma visão coletivista, de igualdade de resultados, que a todos equipara? Numa época de triunfo do individualismo, creio que a resposta tem de ser afirmativa. A visão de sociedade da esquerda tem de assentar na ideia de que cada pessoa tem direito a procurar, a conquistar e a alcançar a sua plena realização individual. E que esta realização não é incompatível ou contrária à definição de objetivos comuns e coletivos. Pelo contrário. A plena afirmação individual pode, e deve, ser feita na elevação e no cumprimento da soma das diferentes individualidades. Ao contrário da visão egoísta de Ayn Rand, podemos definir uma visão comum, um sentido para a comunidade, que permita que, em liberdade, cada pessoa possa contribuir para a sua afirmação individual e dos outros.
Perante a indefinição temporal deste longo período de transição em que nos encontramos – da transição digital e climática ou energética – a perceção do porvir reveste-se de uma forte incerteza. Este confronto com a incerteza no futuro – pela indefinição relativa ao mundo do trabalho ou à ansiedade climática, por exemplo – são um dos principais catalisadores para o crescimento dos populismos, que se apresentam ao eleitorado com fórmulas simplistas e remédios de aparente fácil aplicação. A resposta tem de ser de reafirmação da segurança na estabilidade e na confiança no futuro, com mecanismos que não coloquem em perigo os direitos adquiridos. A transição tem de ser ancorada em sólidos instrumentos financeiros que ofereçam uma almofada de segurança ao esforço exigido aos trabalhadores para a sua adaptação. A segurança perante o confronto com um tempo de mudança acelerado é fundamental para criar uma perceção de estabilidade.
Por último, é crucial reavivar a ideia de esperança. O fim da história, de Fukuyama, não se concretizou nos moldes em que ele a definiu. Porém, o fim do bloco comunista, no início dos anos ’90, levou à afirmação do modelo neoliberal como hegemónico, em praticamente todo o mundo, e sobretudo no Norte global. Daqui resulta, também, a responsabilidade do centro-esquerda europeu, que abraçou esta doutrina económica como a dominante e se entreteve, nas últimas décadas, a propor meros paliativos que mitiguem os efeitos das políticas neoliberais. O regresso ao futuro tem de ter por base a aposta num modelo de estado social que assente na melhoria sustentada da qualidade de vida das pessoas, que assegure uma redistribuição equitativa da riqueza, sem pobreza na base e com limitação da acumulação de riqueza no topo, e na criação das condições para uma forte base social de negociação dos direitos laborais, em particular através de sindicatos fortes e acordos coletivos de trabalho.