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Maria Caetano Vilalobos: “Acho que nunca escrevi poesia que não tivesse uma parte biográfica”

A grande vencedora do concurso “Declamar Abril 2024” falou com o Gerador sobre os primeiros contactos com a poesia, a relação do artista com as suas criações e o “verdadeiro” significado de competição.

Texto de Débora Cruz

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As áreas de expressão artística a que se dedica são múltiplas, mas talvez seja através da declamação de poesia que Maria Caetano Vilalobos é mais conhecida. Foi em 2020 que declamou pela primeira vez em idade adulta, no entanto, o primeiro contacto que teve com estrofes e versos deu-se muito mais cedo, quando ainda era criança. É ao avô que atribui a responsabilidade de ter apanhado o “bichinho da poesia” tão nova e a sua influência foi fundamental em todo o percurso da artista.

Para além de se dedicar à poesia, Maria Caetano Vilalobos é também professora de Expressão Dramática, atriz e encenadora e, apesar dos horários apertados, ainda consegue encontrar tempo para a música e a escrita. Este ano lançou três singles, o seu primeiro livro, intitulado Mulher, Posso e Mando, e desenvolveu um espetáculo com o mesmo nome.

Admite que a necessidade de criar, as longas horas de trabalho e as múltiplas responsabilidades podem tornar-se difíceis de gerir. Essa é uma das razões que a fazem traçar uma distinção entre a “Maria artista” e a “Maria pessoa”, para tentar “salvaguardar um bocadinho o lado humano que não depende de produzir.” Ainda assim, a influência que as duas Marias exercem entre si é evidente. 

Para a poetisa, a declamação e a palavra falada estão a tornar-se formas de expressão artística cada vez mais democratizadas. “Se há coisa que tenho sentido é que há uma força cada vez maior de pessoas que querem usar a palavra, que querem ter voz e que criam esse espaço através da poesia e da spoken word [palavra falada]”, confessa.

Este ano foi a grande vencedora do Portugal Slam e do concurso Declamar Abril, promovido pela Câmara Municipal de Almada, este ano em parceria com o Gerador. Em entrevista, Maria Caetano Vilalobos fala-nos sobre os primeiros contactos com versos, a relação do artista com as suas criações, as potencialidades da poesia e o “verdadeiro” significado de competição.

Atuação de Maria Caetano Vilalobos no Declamar Abril 2024.

O teu avô escrevia fados e os teus pais escrevem poesia. Foram eles que possibilitaram o teu primeiro contacto com esta forma de expressão artística?

Sim, eu sempre tive contacto com poesia e com literatura em geral através dos meus pais. Mas foi mais o meu avô que me deixou o bichinho da poesia, sobretudo porque se sentava para me ensinar coisas mais técnicas sobre o fado, em específico, ou sobre como escrever para o fado. Explicava-me por que é que os versos dele tinham um certo número de sílabas, ou por que é que tinham um certo número de versos por estrofe, como é que [a letra] cabia na melodia. Isso interessava-me: perceber como é que se escrevia para se dizer, ou para se cantar, neste caso, e acabou por me contagiar um bocadinho.

Que idade tinhas quando começaste a ter esse interesse?

Foi na passagem dos cinco para os seis [anos], não consigo precisar exatamente. Já vivia no Alentejo — fui para o Alentejo um bocadinho antes dos cinco anos —, e foi nesse primeiro ano e meio. Logo na primária meti-me em concursos de poesia, também estimulada pela minha professora da primária, e entrei no jornal de um projeto escolar e depois no jornal da terra. Para o meu avô, isso era o orgulho absoluto, porque é a terra dele. [Esse orgulho] foi-me motivando cada vez mais, porque aos olhos dele parecia que eu estava a ser uma estrela.

O primeiro evento em que declamaste poesia foi o Poemacto, em 2020…

Foi o primeiro evento em que declamei poesia como adulta. Como adolescente tinha essa vontade de [participar em] coisas mais escolares ou extracurriculares, mas depois houve ali um momento em que parei de partilhar a minha poesia. Entrei no curso de teatro e tentei juntar os poemas mais à parte teatral. Partilhava os meus poemas de uma forma mais camuflada: se fazia um texto ou um exercício de teatro tentava ir colocando [um verso meu] aqui e ali, mas tinha a minha coragem um bocadinho diminuída nesse sentido.

O que aconteceu em 2020 para que tivesses de novo coragem para declamar os teus poemas?

Foi o falecimento do meu avô. Ele faleceu em 2019 e bateu-me a chapada de realidade que, como adulta, eu não tinha partilhado com ele nenhum poema. O receio de falhar ou de me tornar uma adulta menos capaz do que a adolescente com potencial ou do que a criança “prodígio” — não o digo com presunção —, fez com que acabasse por me fechar numa conchinha. Quando ele partiu, percebi que o tempo não espera por termos coragem: ou é ou é.

A tua relação com a poesia intensificou-se desde 2020?

Sim, sem dúvida. Acho que durante o confinamento a relação comigo própria intensificou-se. Acho que foi geral: sentimos todos um bocadinho isto, para o bem e para o mal. Foi bom, porque os eventos de poesia continuaram online e continuei a integrar esses eventos e a conhecer pessoas que depois conheci pessoalmente. 

Desafiei-me a fazer coisas que escapavam ao meu preconceito para comigo mesma, coisas para as quais eu achava que não tinha jeito, sei lá: aulas de canto ou workshops de atuação em frente à câmera. Eu achava que era mais atriz de teatro e que havia coisas que não eram para mim, e a pandemia permitiu-me largar esses auto-preconceitos. Decidi aprender o mais possível, escrever o mais possível. Acho que acabei por aproveitar esse momento para aprofundar conhecimento sobre mim antes de me voltar a lançar aos eventos presenciais.

Dedicas-te a várias áreas: escreves e declamas poemas, és professora, publicaste um livro, já fizeste um espetáculo, lançaste música. Como é que é fazes esta conciliação?

Não sei se tenho uma resposta para essa pergunta [risos]. Antes respondia de uma forma muito romântica: ‘Eu tento dividir os meus minutos por 60’. Mas agora sinto que é mais uma sensação circense e de malabarismo. Adoro dar aulas e tenho 11 turmas, e por adorar dar aulas e adorar os meus alunos, quero entregar-me o melhor possível. Às vezes é desafiante ter espetáculos à noite ou não ter fins de semana, porque estou em eventos e na segunda-feira lá estou eu de manhã. Por isso, faço muitas listas, muitos EXCEL, muitas tabelas, tenho muitos post-it e quadros brancos, uso o Doodle e o Calendário do Google, faço tudo o que posso para me organizar.

Gosto muito daquilo que faço e sinto-me privilegiada, apesar do cansaço e de estar neste dilema de como gerir coisas que adoro fazer. Só que a verdade é que a frase: ‘Quem corre por gosto não cansa’ é uma mentira que nos contam cedo. Acho que agora estou a aprender a dizer não — mesmo que sejam projetos que me interessam muito — e a dar prioridade às minhas pessoas. Isso tem-me ajudado a conseguir manter-me nos dois mundos: o meu mundo pessoal e familiar e o mundo profissional.

Numa entrevista fizeste a distinção entre a “Maria artista” e a “Maria pessoa”. Como é a relação entre as duas?

As duas Marias são muito semelhantes. Eu aprendi tarde — acho eu — a distinguir o que é o universo pessoal e profissional, até porque, na verdade, quando se escreve poesia ou quando se faz teatro e pomos as nossas próprias vulnerabilidades e questões internas no trabalho, essa divisão entre o público e tu parece diluída.

Quando digo “Maria artista” ou “Maria pessoa” tem que ver também com esta capacidade de dividir águas e perceber que adoro aquilo que faço, adoro estar em espetáculos, em tour, adoro dar aulas, adoro isso. Mas se estou há vinte dias sem uma folga, se calhar a “Maria pessoa” está a ficar para trás. 

Tento salvaguardar um bocadinho o lado humano que não depende de produzir. Ser artista e ter de comer parecem duas coisas um bocadinho incompatíveis às vezes. Quero criar, quero ajudar, quero contribuir, quero fazer teatro com a comunidade, quero dar aulas, quero escrever, quero ir às vigílias e manifestações, quero fazer parte, quero fazer o que puder, mas às vezes é demasiado e a “Maria pessoa” também precisa de colo, ou de escuta, de parar, ou de fechar a janela e não ouvir o mundo lá fora. 

Acho que a “Maria artista” tem muita coisa a dizer, mas a “Maria pessoa” tem dúvidas. Assumir que porque disse algo num poema, aquilo é a minha certeza absoluta também é perigoso. Quanto mais alcance, mais tenho de ter cautela com isso e não passar a ideia de que tenho certezas absolutas. Também [é importante] não ceder à pressão de ter sempre alguma coisa a dizer, mesmo que não saiba muito bem o quê.

Mas já disseste acreditar que um poema tem quase sempre algo de biográfico. É a “Maria pessoa” que vai buscar temas para a “Maria artista” os transformar em arte?

Estou a gostar da divisão [risos]. Sobre os meus poemas em específico, até hoje acho que não escrevi nada que não tivesse uma parte biográfica. Dentro da assunção de que o poeta é um fingidor, acredito que é possível escrever sobre uma coisa que não sentes, como é óbvio, mas eu não sou essa pessoa. Tenho algumas dificuldades em ser a professora que não fala da sua vida ou que não deixa transparecer para os alunos aquilo que sou realmente. 

Acho que tudo aquilo que vivo acaba por transparecer naquilo que eu crio e eu também não faço um grande esforço para isso não ser assim. Se a minha arte estiver a ser criada na base de eu me defender e de não deixar transparecer aquilo que sou e o que eu acho também não me faz grande sentido. Porquê eu, então? Por que não outra pessoa qualquer? Se eu sinto algo sobre “isto” vou pegar nisso, porque é a única coisa de que tenho certeza que é única: é a minha perspetiva, mesmo que seja comum à tua, é o que tenho mais de meu, é a forma como eu sinto ou vejo as coisas. 

Como pessoa, considero-me bastante sensível, como artista também, e não faço questão de criar uma fronteira entre isso. Agora, claro que me perguntam: ‘Este poema: isto aconteceu contigo?’. Às vezes sim, às vezes é um acumular de coisas que aconteceram comigo ou com outras pessoas que chegaram até mim.

A declamação e a palavra falada estão a tornar-se formas de expressão artística cada vez mais democratizadas?

Fotografia cortesia de Maria Caetano Vilalobos.

Acho que sim, sem dúvida. Aliás, se há coisa que tenho sentido é que há uma força cada vez maior de pessoas que querem usar a palavra, que querem ter voz e que criam esse espaço através da poesia e da spoken word [palavra falada]. Já desde 2021 que participo em competições de slam poetry — aliás, este ano tornei-me campeã nacional — e o que eu sinto é que cada vez que estamos em “competições” — estou a fazer aspas com os dedos, porque, apesar de ser uma competição, sinto que, pelo menos aqui em Portugal, é tudo muito desportivo e puxamos uns pelos outros — o que se encontra nesses lugares de aparente competição é uma cooperação enorme e uma cumplicidade grande, porque são pessoas que sentem que podem fazer a diferença. Às vezes, um verso pode fazer a diferença na vida de alguém.

No mês passado estive dez dias em Berlim, em dez eventos diferentes, e eles têm uma amplitude enorme em termos de eventos de slam poetry. Em Portugal, a nossa plataforma, a Portugal Slam, também tem feito um trabalho maravilhoso com uma equipa pequena e depende de criarmos mais eventos regionais. Dentro da spoken word, a slam poetry também alavanca essa possibilidade. O Poemacto é um exemplo de um espaço que está aberto e que tem open mics: há muitos eventos de poesia que criam esse espaço livre para que a pessoa sinta que pode tirar os poemas da gaveta e que pode ter voz.

Há uma onda enorme de pessoas com algo para dizer, porque o mundo está caótico e em situações de guerra a poesia é uma arma pacífica necessária. O que tenho sentido é que, independentemente da língua, o que sentes é indescritível e é superior a isso, são pessoas que passam uma energia de mudança ou de vontade de apaziguar, de apelar à empatia, à cooperação.

Este ano venceste o Declamar Abril com o tema Mulher Posso e Mando. Como é que foi declamar este trabalho no contexto específico das celebrações do 25 de Abril? 

Celebramos 50 anos de Abril num ano de eleições com os resultados que tivemos… A manifestação linda que existiu no dia 25 foi uma lufada de fé num quotidiano tenso. Eu lancei o meu livro em maio, mas em abril já sabia como é que ele era, já sabia que ele ia nascer, e quando me candidatei ao Declamar Abril foi exatamente com o mesmo impulso com que escrevi este livro. 

Há muitas pessoas que me perguntam o porquê do título, Mulher Posso e Mando, e acho que acaba por se traçar aqui uma coisa de divisão, como se eu quisesse mandar em alguém. No fundo, tem só que ver com mandar na minha própria liberdade, no meu próprio espaço, na minha própria decisão e no meu próprio corpo. Quis que o livro nascesse neste ano — não só porque são os meus 30 [anos] e isso é uma data importante para mim —, mas porque são os 50 anos de Abril. Eu candidatei-me ao concurso, porque acho que tudo aquilo que nós possamos dizer neste momento é uma celebração dos 50 anos de Abril, numa realidade mundial de atentado à democracia.

A única coisa que me faz sentido é continuar, em verso, a apelar ao voto, à democracia, a estarmos atentos e a dar a mão em vez de deixarmos que a “competição” nos cegue do verdadeiro propósito da mesma, que é criar espaço para estarmos ali juntos a falar do mesmo. Não é tanto sobre quem leva o prémio para casa: é sobre todas as pessoas que enviaram contributos poéticos sobre Abril, a liberdade, a democracia, sobre cidadania.

Para mim foi uma honra ser a vencedora do concurso Declamar Abril, assim como é agora uma honra ser campeã nacional de Slam Poetry, porque tem a mesma lógica. É uma competição que tem um propósito de juntar, não de separar águas, de caminhar juntos por um propósito maior que é continuarmos todos a ter a possibilidade de criar, de falar, de dizer, termos espaço.

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