Liberto os olhos do grande ecrã, saio do auditório, atravesso o sábado e o domingo, aterro numa nova semana, salto de compromisso em encontro, mas, por mais voltas que dê, continuo e continuarei ligada àquela História.
“Uma memória em três atos”, do realizador moçambicano Inadelso Cossa, passou a habitar-me, deixando-me com um vazio a menos.
Nasci depois de tudo aquilo ter sido vivido, tal como o cineasta, e, também como ele, filiei-me numa busca que não acaba: de resgate de uma humanidade e identidade demonizada, usurpada, castrada, invisibilizada e silenciada por Portugal.
Não o ‘país das maravilhas descobertas’, e sim o país que roubou novos mundos ao mundo que escravizou e colonizou, e recusa reparar (n)esse passado, sistemática e criminosamente varrido para “Debaixo do tapete”.
Que Portugal é esse que se esconde e se encobre?
Faço a pergunta mais vezes do que gostaria, e, nessa busca incessante por respostas, encontro sempre novos entendimentos e questionamentos.
Daquele grande ecrã que se tatuou na minha pele, trago um Portugal colonial ainda por reconhecer, porém bem reconhecível nas lembranças de quem o viveu: um país racista, extractivista, assassino, e incapaz de assumir responsabilidades pelos seus crimes.
Qualquer semelhança do passado com a actualidade, será pura coincidência?
O questionamento é meu, mas poderia até ser o fio condutor para uma nova longa-metragem.
“Não me vejo a fazer um filme que não faça perguntas”, assinala o Inadelso, sempre com o foco apontado para novas interrogações.
O processo, partilhado no âmbito da programação do ciclo “Cinema e Descolonização”, que decorre até Junho no ISEG, deixa tantas fracturas expostas, quanto traumas por revelar.
“Há uma História que nos foi tirada, e que com o cinema tento resgatar”, adianta o realizador, firme em continuar a fazer da sétima arte o seu território de rebelião.
Nesta luta, o edifício colonial português vai sendo demolido, revelando uma estrutura de embustes.
Em “Uma memória em três atos”, percorremos vários: das ruínas do edifício Vila Algarve, em Maputo, antiga unidade de crimes da PIDE, aos relatos de indizíveis atrocidades do regime português, a fachada do “bom colonizador” facilmente cai por terra.
A derrocada estende-se ao longo de 64 minutos, em que aos três actos correspondem três núcleos de questionamentos. A começar por “O fantasma do colono”, seguido d’ “As memórias da violência”; e encerrado por “Entre as ruínas de uma memória”.
Do primeiro ao terceiro e último acto, Inadelso nunca pára de fazer perguntas.
Desde logo, questiona: como se representa a memória da violência?
Mais do que reproduzir imagens de arquivo que atestam a crueldade do regime colonial português, o cineasta dá-lhes contexto, com valiosos testemunhos de quem lutou pela Independência de Moçambique.
Revisito alguns dos depoimentos, agora também inscritos na minha memória, e volto a inspirar-me com as estratégias de luta que sempre fomos capazes de articular.
Imagine-se, por exemplo, um ‘engenho’ bíblico como força de mobilização revolucionária.
Reflicta-se também no poder do tanto que continua por denunciar. “As pessoas querem sempre dizer mais alguma coisa”, nota Inadelso, de volta ao momento em que partilhou com os protagonistas de “Uma memória em três atos”, o resultado da sua participação.
“Poderia dar mais uma longa”, acrescenta, peremptório: “Sinto que o filme não se calou”. Falemos!