Este texto sai um dia após a tomada de posse dos deputados da XVII legislatura. Pela primeira vez na história da nossa II República, a direita democrática e a extrema-direita, com um número recorde de deputados, somam mais de dois terços dos deputados, com todos os riscos que isso significa para a nossa democracia e para o nosso regime. Mudanças à Constituição ou nomeações para o Tribunal Constitucional podem agora dispensar votos da esquerda e passar pelos votos (e influência) da extrema-direita, dependendo do modo como o “não é não” de Luís Montenegro e da AD forem traduzidos. Esta é uma mudança profunda e da qual, com muita probabilidade, demoraremos muitos anos a dar a volta. À esquerda, este é o momento de resistir e reconstruir.
A ideia de resistência é apelativa, está na génese de muitos movimentos e partidos de esquerda e foi muitas vezes graças a longas e penosas resistências que a Liberdade foi conseguida. Num ponto crítico para a nossa democracia, é expectável que a resistência seja um dos elementos-chave da resposta no imediato. E os ataques serão muitos, não só na Assembleia da República, não só no poder autárquico, mas também nas ruas e nas escolas, onde é de temer um aumento da violência verbal e física. Um país dividido e em conflito consigo mesmo é parte do caldeirão que a extrema-direita necessita para medrar. Resistir a que isso aconteça é, portanto, essencial. Esta resistência far-se-á sob a bandeira do 25 de Abril; o Abril que nos trouxe a democracia e restabeleceu a República, assente na liberdade, na igualdade e na fraternidade. Cantaremos o Grândola, gritaremos Abril e falaremos de resistência. Mas não bastará.
Para mudar de ciclo temos também de ser capazes de recriar Portugal e recriar as formas de defender a Liberdade que respondam aos anseios dos mais velhos e às ambições dos mais novos. O caminho passará por muitas vias, mas há quatro pontos que me parecem essenciais. Desde logo, recriar laços comunitários, num país que tem dos mais baixos índices de confiança interpessoal; recriar laços entre todos, os portugueses a viver no país, os emigrantes e também os imigrantes. Porque apenas conhecendo o outro poderemos ter confiança e apenas tendo confiança poderemos acreditar nas instituições.
Em segundo lugar, ter a política e o Estado ao serviço das pessoas, tendo no centro de todas as políticas a necessidade de mais liberdade e mais igualdade. Isto passa por assegurar coisas básicas como o direito a um SNS gratuito e de qualidade, uma escola pública que serve efetivamente de elevador social, o direito à habitação a preço digno ou a mais que urgente transição ecológica. Como se consegue tudo isto? Com políticas fiscais mais justas, tributando as grandes fortunas, instituindo a tributação progressiva das heranças e combatendo, a nível nacional, europeu e global, a evasão e elisão fiscal. Mais igualdade para termos mais liberdade.
Em terceiro lugar, não ceder um milímetro na defesa dos direitos e garantias. Assumir que há direitos ou garantias que estão protegidos de qualquer ataque é um erro que se pagará caro. A solução não passa, como muitas vezes é dito, pelo retroceder na mensagem ou na veemência como ela é defendida. É precisamente o contrário: nos direitos essenciais é onde não devemos aceitar qualquer mudança de discurso e onde a resistência é mais fulcral.
Por fim, um quarto ponto que passa por recriar uma nova grande narrativa que mobilize o país na boa direção. Para isso, temos de ser capazes de, num ambicioso exercício, imaginar o país que podemos e queremos ter, para depois o concretizar. Um exercício coletivo que passe também por uma sociedade civil mais presente e ativa e pelos partidos políticos apresentando propostas verdadeiramente desafiadoras, para lá da mera gestão corrente. Uma grande narrativa que dê respostas no presente mas que aponte caminhos e pontos de chegada a médio e longo prazo. Uma História onde ninguém fica para trás, onde todos e todas cabem, onde a transição ecológica está no centro da ação. Sonhando com este Portugal melhor, seremos capazes de o construir. E essa será a melhor maneira de derrotar a extrema-direita.
Já não basta cantar o Grândola, mas vamos continuar a fazê-lo; e, entretanto, escreveremos novos hinos. A situação é crítica mas ainda vamos a tempo de dar a volta.