Texto por Gaya de Medeiros e Leonor Wellenkamp Carretas
Leonor Wellenkamp Carretas e Gaya de Medeiros escrevem, depois de verem “Enciclopédia da Vida Sexual”, Pedro Gil, no dia 07/06/2025 no Centro Cultural Vila Flor, Guimarães. Gaya de Medeiros escreve sem Negrito. Leonor W. Carretas escreve a Negrito.
Vou começar com perguntas ligeirinhas e, por sinal, adoro essa palavra aqui em Portugal… ligeirinhas. Bom, o que te fez rir durante o espetáculo?
Lembro-me de a certa altura dar uma gargalhada. Não me lembro porquê. Acho que me ria sempre um pouco por dentro quando a personagem do Pedro dizia “gatinha”.
Um “gatinha” assumidamente canastrão também chacoalha qualquer coisa né?
Se você só tivesse 300 caracteres para falar com o encenador, o que você escolheria dizer?
Acho legítimo não se explicarem escolhas artísticas. O que achas de existirem conversas pós-espectáculo em que os artistas fazem perguntas ao público?
Boa, adoro essa ideia. E o que você tem medo de criticar nesse espetáculo?
Tenho medo de falar do que não compreendo bem. Talvez da farsa nos corpos. Será uma amplificação das nossas máscaras? Do mais risível de nós?
E tu, Gaya, qual é a primeira coisa que te lembras do espetáculo?
Camisa branca e o timbre da voz off… era forte e macia.
Também me lembro das bandejas de biscoitos e folhados do espetáculo, todos assumidamente colados às bandejas, e fico com vontade de te perguntar: qual o peso de uma peça de teatro?
O que conseguirmos comer. Há alguma coisa que não tenhas engolido?
Acho que não engoli a primeira cena. Não exatamente a cena mas a opção de dizerem as coisas olhando para o público e voltar a si olharem no silêncio. O texto era muito picadinho. Fiquei só distraída com essa dinâmica até conseguir me habituar.
E qual foi o teu momento preferido?
É quando o avô faz só um gesto com a mão para responder a uma questão mas já não me lembro o que estava sendo dito. Então deixo o meu segundo momento, que é quando o Mário entra pelado com muito pelo pubiano. Achei bem retro.
Bom, sem marotices, gosto da parte quem a voz off diz:
“Eu sou a história… eu não vou acabar. Vocês é que não têm tempo”
Pá… é o velho clichê mas toca, né? Acho que pensar em amor e em tempo faz lembrar que as pessoas que amamos tem o alarme programado e quando ele tocar, elas vão precisar ir.
(pausa)
O que você levaria com você daquele espetáculo?
Um gato de loiça. Não posso ter gatos porque a minha irmã Beatriz (que há-de ter sempre as minhas chaves-de-casa) é alérgica. Sempre me imaginei velhinha numa casa cheia deles. O que é para ti uma família?
Das coisas mais gostosas do espetáculo é o momento em que alguém apresenta as pessoas que moram na casa como os vários pais e mães da criança. Nesse momento sonhei que família era aquilo.
Posso estar a parafrasear mas julgo que a certa altura a personagem do Pedro diz: “o amor é trabalho”. Como é que te relacionas com esta ideia?
Tenho dificuldade de pensar que o amor é para todas as pessoas.
Talvez o amor seja o grande trabalho do nosso amigo narciso… outro dia estava no aeroporto e vi um casal. Ela e ele tinham uns óculos de armação dourada, uns ténis confortáveis, umas roupas meio hippie, cabelos cacheados e loiros, olhos claros, eram brancos…
Ao olhar para essa cena (e tantas outras) não consigo ver o amor como algo sublime, superior aos outros afetos, elevado… e tenho percebido que o amor é mais autorreferencial do que eu imaginava.
Fico nesse dilema entre perceber o amor entre o reflexo e a projeção. Talvez o amor mais real possa ser o trabalho do Narciso a lidar “com aquilo que não é espelho” (para dar uma piscada de olho ao Caetano Veloso).
Leonor, você acha que o espetáculo se posiciona? O discurso é mais monogâmico ou tende mais ao poliamor? Afinal de contas, estamos rindo do quê?
Existe o cuidado de não fechar o espetáculo, de não dar uma resolução ao problema. Sinto até que todas as propostas são impossíveis. Não há boas maneiras de amar.
O amor acontece meio torto às vezes né?
Na rua do Freixo, aqui no Porto, havia uma moradia devoluta onde vivia uma matilha. Uma vez, ao descer a rua, vi um dos cães a coçar com os dentes o pêlo do outro, com força, para lhe matar as pulgas. O pulguento aceitou a coça. Nunca tinha visto cães cuidarem-se assim. Lembrei-me de quando era pequenina e apanhava piolhos (se uma de nós apanhasse, apanhávamos todas). A minha mãe e a minha avó passavam-nos algodão com vinagre quente pelos fios de cabelo para nos tirar as lêndeas. Eu detestava o cheiro e o tempo que tinha de passar sentada no tampo da sanita ou num banco na casa de banho, à beira da janela (para que a luz ajudasse a tarefa) mas tenho saudades desse amor. Não do que me davam; do que eu estava disposta a receber.
Acho que nos estamos a rir disto. (Uma possível relação entre a comédia e o amor: a capacidade de nos expormos ao ridículo.)
E nos rirmos disso sem prejuízo para nenhuma das partes.
Tava aqui a pensar e a Letrux tem uma música que fala:
“Se organizar direito, todo mundo chora
Se organizar direito, todo mundo cansa
Mas nem todo mundo transa
Nem todo mundo goza
Nem todo mundo chora”
Se a gente organizar direito, será que todos os cães se coçam?
Talvez, se não nos mentirmos. (“todos os cães merecem o céu”)
A Dora não conseguiu organizar direito na peça...até onde é possível organizar, de forma tão racional e metódica? Dá para organizar o desejo?
A certa altura a Dora tem um ataque de pânico, como se o corpo lhe gritasse o que ela não quer ver. O corpo tem entendimento próprio. Ela não consegue organizar porque se mente. Não é só o medo do que o outro vê, é o medo de nos vermos. A traição que os outros sentem é por isto. Foi-lhes retirada a escolha porque ela não se permitiu mostrar. Organizar talvez seja ver melhor. Mas já falaste de Narciso. Relativamente à força que nos impele aos outros, é possível escaparmos dos nossos corpos?
Ver melhor, ver junto…
Sobre o amor, enquanto essa coisa que avassala o corpo, sempre me recordo do poema da Luiza Romão:
II.
são infindáveis as comparações entre fogo e desejo
amor que arde sem se ver e coisa e tal
poeminhas em chamas e coisa e tal
com doze anos toninha já manuseia extintores
com trinta e dois o ex-namorado de lana
embebedou-a em gasolina
alguns disseram crime passional
e coisa e tal
Ao ler esse poema, penso:
e se nossas imagens e as metáforas de amor fossem uma árvore ao invés do fogo?
uma floresta seria um poliamor? o cupido seria um passarinho que canta enquanto caga em quem está lá embaixo?
o amor demoraria tempo para crescer e ganharia raízes profundas. E lá por baixo se comunicaria com outros amores, pacificamente.
o amor não sufocaria, liberaria oxigênio.
Na mesma teria sempre umas plantas parasitas ao redor mas talvez fosse possível uma simbiose qualquer.
O fogo é quase monofásico: existe ou não, e dura muito pouco tempo em suas versões mínimas como a brasa ou a faísca.. demanda muito: ou você dá todo o oxigênio que ele precisa ou nada feito.
Outro dia ouvi dizer que precisamos reflorestar os afetos… voltar a plantar árvores nos lugares devastados pelo fogo.
Roubo-te uma pergunta que me ias fazer. “A personagem da Arinto fica muito seduzida quando o personagem do Pedro lhe diz que cairia de cabeça no Eros dela. Você sente que a peça pensa ou tenta repensar o erotismo?”
Eu já ouvi que erotismo é aquilo que mexe com nossa pulsão de vida. Tudo aquilo que te chama (foguinho de novo), te convoca o desejo. O que consegue “implicar” alguém a pulsar vida. Aí fico a pensar: repensa o erotismo de quem? Talvez muitas pessoas repensem os limites do desejo e do que convoca o desejo delas através dessa peça. Eu precisava de um pouquinho mais hahaha
E agora? Como terminamos essa palhaçada?
Lá em cima você tinha anotado uma frase da música da Letrux
(que entretanto tirei)
“Todo corpo tem água,
Lágrima, suor e porra.”
O que acha de terminar com líquidos? Geralmente, tudo acaba um pouco por aí.
Acho que é chover no molhado.