“A soldado levou-me para revistar as minhas coisas ordenou que abrisse a minha mala.
Eu faço o que ela quer!
E das profundezas da mala emana o meu coração e a minha canção”
Markwan Makhoul
Numa rara reportagem sobre o genocídio em Gaza na RTP3 há dias, falaram do Gaza Birds Singing – GBS (O canto dos pássaros de Gaza), um grupo musical formado por crianças deslocadas. Cerca de 600 estudantes tinham estado a aprender música, a tocar instrumentos e a atuar em vários campos de refugiados de Gaza contra a morte. Juntamente com outros colegas, este projecto foi criado por Ahmed Muin Abu Amsha, professor de música e coordenador regional do Conservatório Nacional de Música Edward Said de Gaza, depois de ter sido deslocado 12 vezes, carregando ele e a sua família os instrumentos musicais às costas, como se estivessem a repetir as palavras de uma das canções do músico palestiniano Ahmad Qabor:
Não conheço nenhum sol, a não ser o da música. وأنا ما بعرف من الشمس إلا شمس الأغاني
O grupo Gaza Birds Singing (GBS) teima em tornar-se pássaros cantando sob o sol da música, fazendo voar cordas longe da sombra da ocupação. Apesar do barulho constante dos drones, entre um bombardeamento e outro, mesmo no meio das tendas, e precisamente antes da morte, a sua música palestiniana impregna-se nos tímpanos de um mundo que esqueceu que tem ouvidos perguntando-lhe: mais uma? encore? Apaga para nós os gritos da guerra que invadem os nossos pequenos e grandes ecrãs, colocando no seu lugar uma canção livre, deixando-nos num embalo de melodias feitas esperança.
Mas o que pode a esperança trautear quando está com fome? Numa manhã recente, liguei o som de uma rede social para ouvir a música destes pássaros de Gaza na tentativa de alimentar o meu alento, mas o fôlego permaneceu faminto. Ouvi silêncio, interrompido apenas pelo som constante de drones e pelas caras débeis agarradas aos seus instrumentos nada saciados: “Hoje não vamos tocar, não vamos cantar e não vamos realizar eventos artísticos. O nosso povo em Gaza vai dormir com fome, sem pão, sem farinha, sem esperança. Hoje, a música está em silêncio, para respeitar o som da fome e do grito pela dignidade.” Estava demasiado alto o seu silêncio.
Beshara Doumani inicia o seu artigo “A Song from Haifa (uma canção de Haifa)” escrevendo as letras de uma cantiga desta sua cidade de origem que os homens cantavam antes de serem expulsos de lá em 1948 – na mesma altura que cantoras como Mary Akkawi ganhavam fama especialmente através do serviço de radiodifusão da Palestina que existia na altura. As letras e a melodia desta canção de Haifa estão perfeitamente gravadas na memória de Doumani, apesar de ele não saber de onde vieram nem como as aprendeu. Como se estas músicas palestinianas tivessem nascido nele desde que abriu os olhos para a vida. Como se o povo palestiniano herdasse as canções, da mesma forma que herdamos a memória da catástrofe palestiniana de 1948, a Nakba. As gerações que vieram depois desta data nasceram já com o trauma, mas também com a música, como se fossem criadas já na resistência. Com as chaves que as famílias palestinianas guardaram até ao regresso, fixaram também as músicas, sabendo que a voz desafinada, vai estar afinadíssima um dia ao cantar uma Palestina livre.
Na reportagem, mencionada acima, aparece no final um vídeo de arquivo mostrando a orquestra de Gaza a tocar na belíssima costa da cidade. A orquestra fazia parte do Conservatório Nacional de Música Edward Said. Na altura em que o vídeo foi filmado a orquestra era composta por 21 raparigas e 19 rapazes jovens, que por causa do bloqueio sobre a Faixa quase nunca tinham sido autorizados participar em orquestras nacionais. Hoje, o edifício e a escola da Orquestra de Gaza encontram-se completamente destruídos e toda a costa de Gaza foi obliterada pelos ataques aéreos israelitas. Provavelmente muitos dos seus membros também já partiram. Alarguei os meus olhos, e ampliei os meus ouvidos enquanto a sua música passava na televisão, imaginando estes jovens a tocar naquele mesmo momento, ao vivo, à beira de um mar que não fosse prisão, num intervalo feito sonho, apontando os seus instrumentos contra a morte e dizendo: vida. Palestina vida. Fechei os olhos, desliguei a televisão, imaginando o povo palestiniano a viver como se fosse música. Reabri-os, observando um genocídio.