É raro acordar e não ouvir uma nova notícia sobre a imigração em Portugal; estamos obcecados com o tema. Torna-se, por isso, cada vez mais necessário fazer a questão que a tantos assusta: o que tem a imigração de tão extraordinário? Ou, por outras palavras, como é que a imigração — um fenómeno milenar, praticado por milhares de pessoas (entre elas, eu) — continua a ser tratada fora da esfera do que é ordinário? Sobretudo quando outros temas, como a crise da habitação — esses sim, verdadeiramente urgentes — continuam a ser postos de lado.
Compreender o porquê requer um pequeno passo atrás, até à criação da União Europeia. Poderíamos dar um passo maior até ao período colonial mas não há tempo para isso. Foquemo-nos, então, no nascimento da famosa livre circulação de pessoas e bens e na necessidade de criar o cidadão da União Europeia.
A criação desta cidadania não foi fácil nem imediata; a sua existência implica a identificação de uma identidade comum a vários e diferentes povos capaz de justificar a sua união. O que é curioso, e a esta crónica interessa, é que esta identidade não foi construída através da identificação daquilo que nos une; foi antes construída através da identificação do outro e daquilo que nos diferencia desse outro.
Este processo, chamado “otherness”, é o processo discursivo pelo qual um grupo dominante (o Nós) define e distingue um Outro grupo, por meio da estigmatização de uma diferença real ou imaginada. Ou seja, identificando as características do não-cidadão Europeu (todo aquele que nasceu fora das fronteiras da União), tornou-se possível identificar o cidadão Europeu (aquele que nasceu dentro delas). Podemos mesmo dizer que não há maior forma de união que a identificação de um inimigo comum, diferente do Nós. Compreendendo este processo podemos compreender também a razão pela qual cidadãos Europeus que vivem num país diferente do qual nasceram são raramente percebidos como imigrantes; afinal, como pode ser imigrante aquele que faz parte do nosso grupo?
Portugal, uma das fronteiras da União Europeia, teve e continua a ter um papel essencial neste processo: o de usar medidas extraordinárias para impedir a entrada dos ditos intrusos. Entre estas medidas está o uso da força policial para vigiar quem entra e quem sai.
Desde 1974, as autoridades responsáveis pela migração em Portugal estiveram ligadas à polícia. Com a entrada de Portugal na União Europeia, esta ligação intensificou-se e, no mesmo ano, foi criado o SEF. A sua criação foi justificada como uma urgente e necessária medida para combater o terrorismo e o crime organizado, tanto a nível nacional como europeu. A criação do SEF perpetuou, assim, a narrativa de que 1. o imigrante não-Europeu não faz parte do nós e 2. é perigoso, é criminoso: vem atacar-nos. Ao ponto em que os imigrantes tinham de ir à esquadra da polícia para renovar os seus documentos.
Em 2023, o surgimento da AIMA foi uma surpresa, pois afirmou a passagem das funções administrativas do SEF para uma autoridade não policial e, mais importante, desenhou uma linha que separava a palavra “imigrante” da palavra “crime”. Por exemplo, enquanto os relatórios do SEF incluíam dados sobre prevenção de crimes e tráfico humano, os relatórios da AIMA omitem qualquer referência a criminalidade. Em 2025, contudo, a realidade política
não é a mesma de há dois anos. Antes pelo contrário: a nova lei da nacionalidade foi aprovada, um mini-SEF foi criado, discute-se no Parlamento a proibição de uso de roupas destinadas a ocultar o rosto em espaços públicos.
Este é o culminar de mais de dezenas de anos de uma política anti-migratória, discriminatória e racista Europeia, e por essa mesma razão vemos o mesmo acontecer em Portugal, Itália, Países Baixo, Alemanha, Polônia: os mesmo discursos, as mesmas justificações, o mesmo atear de fogo por toda a Europa; pode parecer coincidência, mas não o é.
Este texto serve de muito pouco no meio de tanto ódio — um ódio enraizado —, mas espero que sirva para o pouco que me leva a escrevê-lo: fazer-vos, leitores, parar para questionar (por um minuto apenas) porque razão a imigração não é vista como parte da esfera das coisas ordinárias, porque estamos tão obcecados com algo tão banal. Atenção: factualmente a imigração faz parte do ordinário, politicamente é que não. Será que os imigrantes são, de facto, perigosos? Ou será que assumimos que o são porque há décadas assistimos a discursos e práticas políticas que o afirmam?
A resposta está nos milhares de estudos e relatórios já feitos sobre o assunto, e está até nas palavras do próprio diretor da PJ: não há ligação entre imigrantes e criminalidade.
Estamos tão preocupados há anos e anos em identificar e salientar o que nos distingue que parece que nem temos capacidade para identificar o que nos une, e nem queremos tentar perceber. Estamos a usar as palavras de forma errada: o “nós” não devia ser usado para excluir.
Contra a separação e, repito, o ódio enraizado só nos resta a pergunta; não podemos comer tudo aquilo que nos dão a comer. Felizmente ou infelizmente — não sei — a política não existe ao lado dos factos, e torna-se cada vez mais urgente perceber o que é verdadeiramente extraordinário e aquilo que é feito extraordinário porque dá jeito a quem governa.