Tento lembrar-me que a extrema direita é perita em desviar o nosso olhar. Hesito antes de escrever sobre o projecto de lei que visa proibir a ocultação do rosto em espaços público. Uma proposta que diz principalmente respeito à burqa (que cobre o rosto inteiro) e ao niqab (que deixa apenas os olhos descobertos), alegando que nenhum símbolo religioso deve ser privilegiado ou permitido no espaço público. Abordar este tema significa envolver-me na discussão que eles querem que nos envolvamos. Virar a cara longe do que realmente se passa no país e no mundo, focando-nos num problema inexistente, especialmente quando as estimativas indicam que a proporção de mulheres que utilizam burqa na Europa é inferior a um número que merece uma lei ou até um comentário.
Deliberadamente, caio na armadilha, fazendo contas, pesquisando argumentos e falhando em calar-me perante os “especialistas” que apelam à “salvação” das mulheres da sua própria cultura, mulheres em relação às quais se sentem “superiores” e das quais têm “pena”, como se Portugal tivesse encerrado por completo o capítulo da opressão das mulheres e de outras identidades sexuais e de género. “Especialistas” que “nunca concordaram com a extrema-direita” exceto, claro, “desta vez”.
Não me parece que os partidos de direita que votaram favoravelmente esta lei estejam realmente interessados em promover igualdade de género ou direitos das mulheres de forma universal. Em vez disso, instrumentalizam as mulheres muçulmanas, retratando-as como “oprimidas”, para legitimar políticas racistas, anti-imigrantes e nacionalistas. Argumentar que o país precisa de “proteger” mulheres muçulmanas é, na prática, um pretexto para restringir a imigração ou estigmatizar as comunidades imigrantes. No seu livro In the Name of Women's Rights: The Rise of Femonationalism (Em nome dos direitos das mulheres: a ascensão do feminacionalismo), Sara R. Farris descreve as estratégias de grupos nacionalistas de extrema direita que utilizam a igualdade de género para justificar as suas políticas racistas e servir interesses próprios, incluindo económicos, cunhando estas práticas de “Femonacionalismo”. Esta retórica de defesa dos direitos das mulheres é frequentemente utilizada para justificar políticas xenófobas e anti-imigração.
Pergunto-me: quantas das pessoas que se sentiriam bem a salvar as mulheres muçulmanas da burqa estariam dispostas a apoiar uma redistribuição da riqueza, contribuindo do seu próprio bolso para garantir que mulheres imigrantes não fossem empurradas para fora do seu país? Quantas se comprometeriam com a solidariedade transnacional para proteger mulheres em zonas de guerra? Não é fácil mobilizar ondas de solidariedade a não ser quando, como observa a teórica Gayatri Chakravorty Spivak, se trata de “homens brancos a salvar mulheres de pele escura de homens de pele escura”.
Não ouvimos essas vozes defender, por exemplo, o direito das mulheres palestinianas à segurança contra os bombardeamentos israelitas, pedindo sanções contra o governo que lhes retira os direitos básicos, sexuais e reprodutivos, ou protestando contra a conivência do governo português que abre os seus portos e aeroportos a navios e aviões de guerra cúmplices de genocídio.
Hesito ao escrever a palavra “burqa”, sobretudo porque desde o dia 7 de outubro não tenho escrito nada a não ser “P-a-l-e-s-t-i-n-a”. Não a soletrar neste momento significa fazer o mesmo que o mundo inteiro: colocar um pedaço de pano à frente do campo de extermínio enquanto o genocídio continua. Persistem as demolições sistemáticas de casas palestinianas numa tentativa de apagar este povo. Persistem os aprisionamentos dos palestinianos em massa, como se Israel estivesse a recuperar aqueles libertados através do acordo. Continua a restrição da entrada de ajuda em Gaza, a luta à procura de água potável, e a busca de comida e abrigo seguro nunca cessou. O Knesset israelita aprova o projeto de lei de anexação da Cisjordânia, um passo que pode ser tão grave, ou mais, do que o genocídio em Gaza. O eco da palavra “paz” pronunciada por um tirano que dita regras ao mundo acompanha a cada morte ocorrida após o “cessar-fogo” que ainda não teve lugar. Não haverá também um pedaço de pano que cubra o rosto do mundo sem vergonha?
Revisita a minha memória a história da palestiniana Shifa’a Al-Hindi, obrigada a tirar à força a sua burqa por um soldado israelita. Resistiu, cuspiu-lhe na cara. O soldado atingiu-a na cabeça. Shifa’a perdeu a visão. Poucos dias depois, Shifa’a apareceu num canal televisivo internacional sem cobrir o rosto, defendendo, mais uma vez, a sua liberdade. Não se tratava de esconder ou não a cara, mas do facto de ser o colonizador que a obrigava a não fazer. Como quem repete as palavras de Frantz Fanon: “Essa mulher, que vê sem ser vista, frustra o colonizador. Não há reciprocidade. Ela não se submete, não se oferece, mas opõe-se ao colonizador com o poder secreto do seu olhar.”