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Opinião de Leonor Rosas

É doutoranda em Antropologia no ICS onde estuda colonialismo, memória e cidade. É licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH. Fez um mestrado em Antropologia na mesma faculdade. É deputada na AM de Lisboa pelo Bloco de Esquerda. Marxista e feminista.

Estado daquilo que é violento

Nas gargantas soltas de hoje, Leonor Rosas fala-nos, a propósito do 25 de novembro (a versão que importa), das muitas violências sofridas pelas mulheres e da forma como estas as podem unir; e também da raiva da realidade da convivência com homens numa sociedade patriarcal.

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Ainda há poucos dias celebrámos o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres. Recentemente, comecei a preferir os plurais: Dia das Mulheres; Violências contra as Mulheres. Nos dias que antecedem e se seguem a este dia, as estatísticas e novos estudos sobre estas violências multiplicam-se: mais mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica, aumento do número de violações (a esmagadora maioria cometidas por um homem contra uma mulher e existindo uma relação de intimidade prévia entre os dois), barreiras crescentes no acesso ao aborto, que obrigam a que as mulheres portuguesas atravessem a fronteira para terminar uma gravidez, e uma enxurrada assustadora de conteúdo misógino nas redes sociais do qual incessantemente se alimenta a geração mais jovem. 

Para lá das violências esmagadoras, que nos entregam manchetes assombrosas – às quais a sociedade parece reagir com crescente indiferença –, penso e escrevo sobre aquelas que encontro nos pequenos recantos da vida. Ora, violência (vi·o·lên·ci·a), “Estado daquilo que é violento”, responde-me o Priberam quando procuro esta palavra sobre a qual nos debruçamos. Esta definição, que surge como primeira, adequa-se perfeitamente ao que quero escrever. O estado constante, a temperatura desconfortável à qual nos habituamos, um enjoo de movimento que não conseguimos evitar. 

Abrir o Instagram para ser bombardeada com vídeos de rapazes pubescentes e homens assustadores que dizem que as mulheres não devem votar, que não são racionais e não têm estabilidade emocional, que não deveriam trabalhar nem ter contas bancárias, que, se engordarem ou ficarem com um corpo diferente depois de uma gravidez, deveriam ser abandonadas pelos seus companheiros. Às vezes, rio-me do absurdo; outras vezes, limito-me a revirar os olhos. Porque é que me habituei a ver isto? 

Estar numa mesa cheia de homens: todos falam uns por cima dos outros; se alguma vez quiseres entrar neste mundo, tens de aprender a interromper, a falar mais alto. Ninguém vai pedir a tua opinião; tens de a agarrar como um homem, e às vezes achas que fazer isso é miserável e sentes-te culpada, mas, outras vezes, achas que estás a conseguir invadir um mundo que não foi feito para ti. 

Ir para casa à noite de cabeça baixa – a minha mãe ensinou-me a não fazer contacto visual com homens estranhos na rua –, talvez tenha de telefonar a alguém. Há dias tive de mudar de caminho porque um homem insistia numa aproximação sexual. Chorei muito quando cheguei a casa e perguntei-me ainda se a culpa teria sido minha porque lhe respondi de forma demasiado violenta logo na primeira troca. 

Estar habituada a viver e a conhecer todo o tipo de histórias escandalosas das nossas amigas. Homens que insultam, que gritam mais alto, que maltratam, que querem mulheres que sejam um espelho das suas opiniões e ideias, que nos dizem que somos malucas, que insistem demasiado depois do primeiro “não”, que fogem às suas responsabilidades emocionais ou que usam os corpos das mulheres como se fossem uma mercadoria descartável. Rimos e dizemos que é assim. 

Depois, a vida continua. O estado daquilo que é violento continua. No seu brilhante ensaio sobre o julgamento do caso Pelicot (o caso do homem que violou e convidou homens a violar a sua mulher durante anos), a filósofa Manon Garcia reflete de forma ácida sobre a raiva que acarreta conhecer os meandros destas violências: 

“A raiva. Tenho vontade de gritar o tempo todo. Estou no aeroporto. Dois homens, na casa dos cinquenta, bebem um café. (...) Será que violam mulheres enquanto elas dormem? E aquele, o cinquentão inconspícuo? E o mais jovem? Como saber? Como viver em segurança? Onde? (...) Observo estes homens, na rua, no metro. E aquele, achas que se excita com miúdas mortas? E aquele? (...) És paranóica. Não, não és paranóica, conheces os números, é pior ainda.” (Viver com homens, 2025)

Há muitas violências, contra muitas mulheres diferentes, com as gradações que pertencem a cada uma de nós e aos diferentes grupos, classes e comunidades em que nos inserimos. Quanto mais me ponho a pensar no que é uma mulher ou o que nos define enquanto mulheres, mais me sinto atraída por esta conclusão: é ser um sujeito político transformador que, se identificando como mulher, vive sob as imposições e violências patriarcais e machistas. Não me sinto atraída por essencialismos esotéricos sobre aptidões das mulheres para os sentimentalismos ou para as espiritualidades ou, muito menos, para explicações biológicas e preconceituosas. Ser mulher é o que quisermos, da forma que quisermos. Talvez, um dia, ultrapassada a violência patriarcal, ser mulher possa não significar quase nada, ou nada disto. Neste momento, sê-lo é partilhar um espartilho comum do qual, me parece, só nos libertaremos todas de uma vez e nunca à custa umas das outras. Do estado da violência, passaremos ao estado da emancipação. 

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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