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No universo de Vasco Wellenkamp, onde todos os gestos são registos da vida

Num longo texto datado de 1996, publicado na Colóquio/Artes, revista da Fundação Calouste Gulbenkian, o…

Texto de Redação

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Num longo texto datado de 1996, publicado na Colóquio/Artes, revista da Fundação Calouste Gulbenkian, o bailarino Miguel Lyzarro (falecido nesse ano) escreve: “Na produção coreográfica nacional, o ballet de Wellenkamp impõe-se como obra ímpar. Uma obra feita ostinato de emoção lírica. Os seus pretextos são coisas especificamente portuguesas na sua aparência - coisas como fados e tristezas, separações, estranhezas, guitarras e até saudades. Coisas como o verso de Álvaro de Campos que inspirou O Fluir do Encontro Casual em 1974: "Dos que hão sempre de ficar estranhos..."”.

Falar de Vasco Wellenkamp é falar desse estranho que há-de sempre ficar; é falar de um criador cuja importância para o panorama da dança portuguesa resulta da obra, e do homem por detrás dessa obra. Um lugar onde o movimento é expresso sob formas poéticas, na qual os bailarinos assumem um papel decisivo de interpretação. E esse trabalho continua. Vasco mantém-se como um braço extensível dos bailarinos que com ele continuam a aprender. E já lá vão 60 anos.

O percurso de um pioneiro

Vasco Wellenkamp nasceu em 1942 e aos dezoito anos de  idade (em 1960), inicia os seus estudos de dança com Margarida de Abreu e Femando Lima, no Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, sendo que, oito anos mais tarde, ingressa no Grupo Gulbenkian de Bailado (mais tarde conhecido como Ballet Gulbenkian). Mas o desejo de se abrir a outros lugares e movimentos era mais forte. 

É daí que se explica o facto de, com apenas 30 anos, numa súbita mudança de rumo face à sua carreira de intérprete, tenha partido para Nova Iorque onde, na qualidade de bolseiro do Ministério da Educação, realiza durante dois anos um estágio na Martha Graham Dance School of Contemporary Dance, frequenta um curso de composição coreográfica com Merce Cunningham e trabalha com Valentine Pereyaslavec no Arnerican Ballet Theatre.

Após o seu regresso, marcado desde logo pelas suas primeiras criações para o Ballet Gulbenkian, Vasco inicia a mais longa prestação de um autor coreográfico de repertório junto de uma companhia portuguesa, onde cria mais de meia centena de bailados.com uma estética que rapidamente produz clássicos instantâneos.

Na qualidade de coreógrafo principal, professor e ensaiador, Vasco aperfeiçoa estruturas como o dueto e o solo, que marcam as suas criações com um tom de “emoção lírica”, o que lhe confere grande ambivalência e abertura. «A "boa educação" que atravessa a maior parte dos bailados de Wellenkamp é a de uma atitude que não duvida, não questiona, não rompe, não escandaliza, mas que antes se protagoniza na sugestão de um sentir que, sendo antigo, é sempre novo», salienta Miguel Lyzarro no texto da Colóquio. 

Vasco Wellenkamp no escritório da CPBC, em fevereiro de 2020

Ao trabalhar com bailarinos como Graça Barroso (sua companheira na dança e na vida) - que o irá acompanhar mais tarde noutros rumos da sua carreira - ou Ger Thomas, Wellenkamp mantém uma influência considerável, sobretudo pela forma como desenvolve a relação coreógrafo-bailarino: “o elemento essencial para Wellenkamp é o próprio intérprete. Com este, o trabalho de criação nunca é de mimetismo (o coreógrafo não entra no estúdio para impor algo já definido), antes o de uma pesquisa conjunta no sentido da concretização de uma ideia já pressentida pelo autor, porém ainda não concretizada. Este método implica uma total disponibilidade por parte do intérprete”, escreve Miguel Lyzarro.

Benvindo Fonseca é um desses bailarinos-intérpretes que se cruza no seu caminho, algures nos anos 80. “Quando eu fui ver o ensaio do “Outono” do Vasco Wellenkamp, e já não me lembro qual era o outro bailado do Jiri Kylian, não queria acreditar no que estava a ver. Naquele auditório, com aqueles bailarinos, com aquela qualidade. Eu não quis acreditar que em Portugal houvesse uma companhia com aquela qualidade”.

Ao Gerador, Benvindo conta como Vasco foi importante na sua decisão de ir para o Ballet Gulbenkian, aquando de um convite por parte de Jorge Salavisa para integrar a companhia como solista. “Na Gulbenkian, tive os melhores coreógrafos do mundo, ainda por cima a coreografarem para mim, num país em que tinha as melhores condições do mundo, e a ir a todo o lado com salas cheias”, realça, sublinhando o destaque internacional que naquela altura tinham, nomeadamente em salas internacionais, e onde não perdia a oportunidade de ir atuar “muito por causa dos solos que o Vasco fazia”.

Efetivamente o percurso de Wellenkamp é indissociável dos bailarinos que ajudou a formar mas as mesma regra se aplica para aqueles que, não tendo trabalhado diretamente, sentiram a sua influência no panorama da dança em Portugal. Rui Horta, ao falar da preponderência do Ballet Gulbenkian como companhia de repertório que foi trazendo novas linguagens para o seio da dança portuguesa, relembra o nome de Wellenkamp: “foi um pioneiro da dança moderna, com uma linguagem e um lirismo extraordinário, com um domínio do corpo e do grupo e do trabalho de composição maravilhoso, tendo o seu lugar na dança portuguesa incontornável”.

O escritório e o estúdio da CPBC estão em Marvila, em Lisboa

No mesmo ano em que o texto de Miguel Lyzarro é publicado na Colóquio, Vasco Wellenkamp termina o seu percurso ligado ao Ballet Gulbenkian, mas nem por isso o seu trabalho estava terminado. Logo em 1998, o coreógrafo cria a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), juntamente com a bailarina Graça Barroso, e onde continua a sua linha criativa – através de gestos e composições que já lhe são características. Uma vez mais, a sintonia entre Vasco e Graça leva-os no caminho da dança.  Há quem diga que juntos, Vasco e Graça, conseguiram uma sintonia sem igual.

A CPBC é uma das companhias de repertório cujo percurso passa por um trabalho de criação aberto a diferentes coreógrafos. Não obstante, é impossível dissociar-se do movimento criado pelo seu fundador. “A intenção era a de formar uma companhia que seguisse os mesmos padrões no sentido da qualidade da linguagem do Ballet Gulbenkian, e de poder também ter coreógrafos convidados”, explica-nos Wellenkamp numa entrevista concedida já este ano ao Gerador. 

Miguel Ramalho foi um dos bailarinos que integraram a CPBC. Foi lá que ganhou o ímpeto de criador, tendo já desenvolvido as suas primeiras peças coreográficas. Além disso, Miguel assume hoje a posição de bailarino principal da Companhia Nacional de Bailado (CNB). Numa entrevista que deu ao Gerador no início deste ano, o jovem destacou a forma como Wellenkamp o tornou mais livre e espontâneo enquanto intérprete, marcando profundamente os primeiros passos da sua carreira.

“Devo dizer que o impacto que o Vasco teve na minha carreira é tão grande que ainda hoje se mantém. Mesmo a nível pessoal, acho que foi porque ele plantou a semente certa, no sítio certo. O Vasco trouxe-me para a CPBC era eu um miúdo, com cinco por cento do desenvolvimento que tenho hoje em dia. Ele viu alguma coisa em mim. Destruiu, primeiro, tudo aquilo que tinha de vício da escola – porque na escola ensinam-nos as bases, mas de forma muito sedimentada, e é muito difícil o bailarino sair disso para obter um movimento mais livre. Ele retirou esses vícios e fez de mim bailarino. Eu na altura não conseguia compreender a forma dele trabalhar. Era muito novo. Até que três meses depois, a minha evolução foi tão grande que dei por mim a pensar naquilo que tinha acontecido. Ele é um bocadinho aquele professor silencioso. Trabalha de uma forma tão dura, tão rígida, que até parece, numa fase, que não sabemos dançar. E, de um dia para o outro, a qualidade brota – e ainda hoje não sei muito bem explicar como”.

Tal como Lyzarro, também Miguel destaca a forma como Wellenkamp aborda os seus bailarinos, que não assumem o papel de meros executantes. «O Vasco não é um coreógrafo que diz: “Isto é assim, faz assim.” É um coreógrafo que espera e que bloqueia imensamente quando um bailarino não responde ao início do que propõe». Foi a partir desse momento, conta Miguel, que se despoletou a vontade de ser também criador. “Ele deixou em mim essa vontade de ser criador. Porque um coreógrafo não cria nada sem o bailarino, a sua visão é completada por ele. Esse amor pela criação nasceu já quando era muito jovem, e com a carreira que fiz tive oportunidade de ter as plataformas certas para começar a explorar essa dimensão”, sintetiza.

Um gesto que perdura no tempo, uma marca para as novas gerações

Ao longo de seis décadas, a influência de Wellenkamp é extensível a grande parte dos coreógrafos que se foram afirmando no contexto da dança portuguesa. Se não foram intérpretes numa das suas criações, já estiveram no lado da plateia e deixaram a sala com uma memória para a vida — seja pelo sentimento em AmarAmália ou pelo magnetismo de O Prelúdio à Sesta de um Fauno.

No ano que marca o centenário de Amália, figura incontornável da música portuguesa e musa de diversos criadores, AmarAmália seria novamente apresentado no palco da Gulbenkian. Antes de se saber que teria de ser adiado, Benvindo Fonseca falava sobre este regresso do bailado originalmente criado em 1994 com um brilho no olhar que se seguiu de “é [um bailado] tão bonito”. Podíamos confirmar: dias antes, no estúdio da CPBC, assistíamos aos ensaios de “Gaivota” e “Barco Negro”, com os nossos corpos imóveis a acompanhar apenas com os olhos os corpos em movimento, à nossa frente. 

Também no ano do centenário de Amália, Wellenkamp seria o coreógrafo convidado da Escola de Dança do Conservatório Nacional. José Luís Vieira, o diretor artístico da escola, faz questão que o coreógrafo, que considera “um génio da dança em Portugal”, seja presença habitual na escola e plante algumas sementes, tal como fez com Miguel Ramalho há anos atrás. Essa relação de proximidade com o trabalho de Vasco reflete-se na ausência de hesitação quando perguntámos a Pedro Silveira, Inês Gomes e Rita Ferreira, finalistas, e Martinho Santos, aluno do oitavo ano, quem são as suas referências. 

No caso de Rita, a relação vem de trás: “o Vasco Wellenkamp é uma das razões pelas quais eu continuei cá no Conservatório. Eu fui ver o Será que é uma estrela?, na celebração dos 40 anos do Ballet Gulbenkian, e foi a primeira vez que eu chorei de felicidade a ver um espetáculo. Marcou-me imenso enquanto bailarina e enquanto pessoa.”

Aos 78 anos, Vasco Wellenkamp conta-nos que já equaciona a sua retirada, mas não estamos certos disso. Na CPBC continua todos os dias a segurar os braços dos seus bailarinos como se de uma queda se tratasse. Ali respira-se dança, fala-se numa linguagem muito própria - a sua -  que continua a passar de geração em geração. 

Texto de Carolina Franco e Ricardo Ramos Gonçalves
Fotografias de David Cachopo

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