A 7 de agosto celebrou-se dois anos da lei 38/2018. Esta lei dá o direito à autodeterminação da identidade de género, expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa, em Portugal. Talvez se lembrem desta lei como a “lei das casas de banho”[1] porque também dava diretrizes às escolas sobre como proceder para que crianças e jovens trans pudessem utilizar casas de banho e balneários nas escolas de acordo com a sua identidade. A polémica gerada acabou por, em muitos casos, simplificar o objetivo do despacho que pretende dar a possibilidade a muitas pessoas de viver o dia a dia de acordo com quem são, protegendo-as face à discriminação e violência baseadas na sua identidade ou expressão de género e teve muito pouco que ver com casas de banho.
A maior parte das pessoas identifica-se com o género que lhes é atribuído à nascença, ou seja, identificam-se com os papéis e construções sociais que existem consoante o sexo que lhes é atribuído quando nascem. Porque é que digo que é atribuído? Na generalidade, o sexo e o género são naturalizados enquanto binários, pénis/vagina, menino/menina, homem/mulher. Quando uma pessoa engravida e vai a consultas médicas, depois de alguns meses ouve do médico a pergunta: “quer saber o sexo do bebé?” É através do que o médico vê no ecrã pixelizado a duas cores, enquanto faz um ultrassom, que se determina a característica “sexo” que não só se assume que será coincidente com o género da criança, como irá definir o nome, as características esperadas, cores preferidas, brinquedos que a família alargada vai comprar, potenciais profissões, ou seja, o papel que aquela criança irá ter na sociedade e que a irá acompanhar pela vida inteira.
O que acontece quando a criança não se identifica com o género que lhe é atribuído à nascença? O que acontece se uma criança diz aos adultos que não é do género que os pais, a família, a sociedade dizem que ela tem de ser? Qual é o papel dos adultos?
Apesar de sermos um país com avanços legislativos em matéria de questões relacionadas com orientação sexual e identidade de género[2] e sermos também apontados como um país onde há pouca violência física por motivos de orientação sexual e identidade de género segundo a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA)[3], sabemos que a necessidade de apoiar pessoas e crianças LGBTI+ continua. Em Portugal, a Casa Qui e a Casa Arco Iris[4] acompanham e apoiam centenas de pessoas e jovens LGBTI+. Além disso, continuamos a ver casos de violência e bullying a ser registados anualmente pela ILGA Portugal e pela rede ex aequo.[5]
O estudo Diversity and Childhood[6] transformar atitudes face à diversidade de género na infância no contexto europeu, coordenado em Portugal por Ana Cristina Santos e Mafalda Esteves do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, financiado pela União Europeia, reúne um grupo de cientistas de nove países europeus no combate à discriminação e violência a que muitas crianças e jovens que não se identificam com o género que é esperado são alvo. Vemos que, como afirma Ana Cristina Santos, «É evidente a falta de recursos, sobretudo de formação e informação, por parte de profissionais envolvidos na implementação da Lei de Autodeterminação [Lei nº38/2018, de 7 de agosto, regulamentada em 2019], o que gera obstáculos à igualdade de tratamento desta população em áreas como a educação, saúde, intervenção familiar, media e espaço público e comunitário». Mais alarmante ainda, acrescenta, «é a total ausência de questões LGBTI+ na formação académica e curricular de grande parte destes profissionais, com mais de metade a admitir nunca ter feito, posteriormente, uma atualização de conhecimentos ou uma formação específica para o trabalho com crianças e jovens LGBTI+».
Com leis, mas sem a implementação das mesmas, sem os adultos que acompanham crianças no seu dia a dia saberem mais sobre estas crianças e como apoiá-las, o risco de discriminação e violência mantém-se e é muitas vezes reforçado pelos adultos que deveriam proteger e potenciar o crescimento de todas as crianças.
Temos de fazer um caminho contínuo para construir uma sociedade afirmativa que celebre a diferença e que seja segura para todas as pessoas, mas principalmente para as nossas crianças.
[1] https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/isto-nao-e-um-despacho-de-casas-de-banho-11227863.html
[2]https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2020/06/OECD-LGBTI-2020-OverTheRainBow-TheRoadToLGBTIInclusion-Full-report.pdf
[3]https://www.publico.pt/2020/05/14/sociedade/noticia/portugal-pais-ue-menos-pessoas-lgbti-sofrer-agressao-fisica-sexual-1916448
[4] http://www.casa-qui.pt/ e https://www.associacaoplanoi.org/casa-arco-iris/
[5] https://www.rea.pt/observatorio-de-educacao/
[6] https://ces.uc.pt/pt/investigacao/projetos-de-investigacao/projetos-financiados/diversity-childhood
-Sobre Alexa Santos-
Alexa Santos é formada em Serviço Social pela Universidade Católica de Lisboa, em Portugal, e Mestre em Género, Sexualidade e Teoria Queer pela Universidade de Leeds no Reino Unido. Trabalha em Serviço Social há mais de dez anos e é ativista pelos direitos de pessoas LGBTQIA+ e feminista anti-racista fazendo parte da direção do Instituto da Mulher Negra em Portugal e da associação pelos direitos das lésbicas, Clube Safo. Mais recentemente, integrou o projeto de investigação no Centro de Estudos da Universidade de Coimbra, Diversity and Childhood: transformar atitudes face à diversidade de género na infância no contexto europeu coordenado por Ana Cristina Santos e Mafalda Esteves.