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Opinião de Raquel Botelho Rodrigues

A que horas chegas a casa?

Muito se tem falado sobre o problema das casas, sobretudo, em Lisboa, dos valores, sejam…

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Muito se tem falado sobre o problema das casas, sobretudo, em Lisboa, dos valores, sejam de compra ou arrendamento, que fazem pessoas de trinta e tal anos dizer: “Quando for grande, vou ter uma casa”. Parece que um direito básico se tornou um luxo.

Cada idade pede um tempo e cada tempo pede um lugar. Mas sinto que a ordem se inverteu e que o lugar perdeu o tempo. Excluindo a minoria que acaba a faculdade e acorda com uma chave de casa debaixo da almofada, colocada, durante a noite, pela fada dos pais, ou quem, dentro da hierarquia das profissões, desempenha uma actividade que se encontra no topo, estamos na geração dos quartos alugados ad eternum.

O que, numa determinada fase, pode ser saudável e importante na descoberta de si e do mundo, caso os coabitantes se entendam como uma comunidade, passado uma ou mais décadas, se não for uma escolha livre, é sintoma de um esforço devorado pelo destino, que é escolha de outros. Como se pode colher o fruto do trabalho, num quarto sem jardim?

Desdobramo-nos em mil tarefas, mas o quarto não se desdobra.

Na verdade, o corredor da casa é uma espécie de preparação da rua. Por vezes, cruzamo-nos, a meio da noite, com alguém que nunca soubemos o nome. É um espaço de ninguém que, na ingenuidade de muitos que chegam, será transitório, porque, dali a uns anos, a dedicação, o mérito e o emprego, os virão buscar. A mudança é, por vezes, para outros quartos, à procura de rendas mais baratas. Em oito anos, vivi em oito casas, em duas das quais éramos sete pessoas. Por isso mesmo, prefiro chamar-lhes hostels. São espaços aeroportos ou paragens de autocarro. Espaços para se esperar um lugar, para se partir. As coisas dizem-no. Existem para o acaso, para quem vier.

As casas podem também ser uma forma do estrangeiro. Quando utilizamos a expressão “voltar a casa”, evocamos a imaterialidade a partir da matéria. Mesmo que digamos que a casa é alguém, uma praia ou um estado, não deixamos de os trazer para dentro desta palavra. O verdadeiro lugar da casa é o de dentro. Há muitas outras experiências da construção onde se habita que nos colocam no lugar de fora. Porém, é lamentável quando são as condições de um país que o fazem, quando, para além do descontrolo do preço das rendas e das vendas, que obrigam famílias a viver num quarto, se constroem habitações sociais, caixotes de pessoas com janelas minúsculas, sem varandas, porque os mais pobres sempre souberam viver na sombra e com pouco ar. E a beleza é um direito de castas.

Se queremos investir em saúde mental, tratemos das casas. Na verdade, não há melhor imagem para o pensamento do que elas. As casas são espaços afectivos. Por isso, quem não vive nelas é um “sem-abrigo”. Poderíamos chamar-lhe “sem-cólo”. Gaston Bachelard, na obra Poética do Espaço, refere-se à casa como o nosso universo primário, comparando-a a um ventre materno. A intimidade precisa dela. Um sem-abrigo está sempre visível, exposto em quase todas as dimensões, nunca se recolhe. Uma sociedade que o impulsione, diz-nos que há quem não tenha lugar nela. É curioso o facto de muitas pessoas que ficam desalojadas procurarem colocar as suas caixas de cartão e mantas perto daquela que foi a sua casa, muitas vezes, a de infância. Quando não são da cidade onde estão, dormem nas estações de comboio, como podemos notar quando passamos pelo Oriente e Santa Apolónia nocturnos. Por aquela linha passa o que pode levar, o que parte e o que chega. O que se procura talvez seja adormecer perto da memória de uma raiz. Se a casa é o lugar do sono e do sonho, não é difícil perceber que, roubando a casa, se rouba o vínculo com a vida, se chega ao fundo, se leva alguém ao fundo.

Repare-se que a natureza fala das casas, que outros animais, como, por exemplo, as andorinhas, que compõem o ninho com saliva e moldam-no com o peito, se cumprem com a própria construção.

Embora nem sempre, a protecção física, no sentido mais primário, inaugura um espaço seguro para a livre expressão de si, uma espécie de nudez. Na invisibilidade, a revelação. Há uma porta onde deixamos os papéis que vestimos pela manhã, e que têm o seu peso. O corpo entra, e ilumina-se uma outra região de si, mais sincera. Por isso, descalça-se e despe-se. Ainda que o dia não tenha acabado, a chegada é já descanso.

Mas, quando se aluga um quarto, ficam três terços de mundo. Estamos perante o olhar de outros e comportamo-nos como tal. Mesmo que não saíamos dele, não há o espaço que o grito, ou o choro, ou mesmo uma conversa íntima, pedem. Qual o lugar do segredo, então?

Podemos contar a nossa história pelas casas, ou mesmo o dia, pela forma como nelas entramos. São uma espécie de calendário interior. Quando o tempo passa por nós, passa por elas. Uma casa viva é uma casa que muda, como um corpo. E, como um corpo, tem um cheiro. Quando convidamos alguém para vir a nossa casa, estamos a dizer “aproxima-te”, “conhece-me”. A forma como estamos em casa uns dos outros e umas das outras, talvez seja uma biografia das relações.

Todavia, as casas-hostels não são para a expansão, têm restrições de circulação. Contêm os gestos. Na sua impessoalidade, não há encontro nem partilha. Não sabem absolutamente nada sobre nós. São o espelho do que não está. Assim, como se regressa?

Neste contexto de pandemia, é importante pensar em quem vive em quartos interiores, em quem não teve forma de sair dos quartos alugados, nas famílias que, numa divisão, concentram toda a casa. Simultaneamente, com a ajuda das redes sociais, há que reflectir sobre consciência social dos cidadãos e cidadãs, que tiveram a oportunidade de se deslocar até à herdade ou casa de praia, e, num momento, tão frágil, inclusive psicologicamente, romantizaram a quarentena, expondo a desigualdade e o privilégio.

*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Raquel Botelho Rodrigues-

Para a Raquel, a biografia não é o curriculum. A escrita da vida é algo que ainda procura ler e tem a certeza de que este “ainda” será para sempre. Por motivos de força maior, porque nos temos de estar sempre a definir, diz-nos que trabalha na equipa editorial do Gerador.

Texto de Raquel Botelho Rodrigues
Fotografia de David Cachopo

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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