Nos últimos anos habituámo-nos a falar, cada vez mais, de artistas portugueses que nos têm dado obras que, não só cruzam de forma exímia diferentes linguagens sonoras, como ajudam a expandir o próprio entendimento que fazemos desse panorama. A essa força incessante de criação devemos juntar o nome de Daniel Bernardes, pianista e compositor que tem vindo a confirmar a sua proeminência como um dos artistas mais talentosos da sua geração.
De forma “omnipresente”, a sua obra discográfica, iniciada em 2013 com Nascem da Terra, tem estabelecido uma ligação harmoniosa entre o jazz e a música clássica, com enfoque no “cânone do piano clássico” que motivou a sua paixão. Já este ano, e depois do aclamado Liturgy of the Birds, de 2019, e de se ter aventurado igualmente na composição de bandas sonoras cinematográficas, o músico de Alcobaça regressa com um novo disco, Crossfade Ensemble, editado esta sexta-feira, dia 11 de dezembro.
Em entrevista ao Gerador, Daniel Bernardes fala-nos um pouco acerca do processo de criação deste novo disco, que não seria possível sem a participação de Hugo Assunção (trombone), João Barradas (acordeão), Sérgio Carolino (tuba), Jeffery Davis (vibrafone), Mário Dinis Marques (saxofone soprano) e Ricardo Toscano (saxofone alto e clarinete). Por outro lado, a conversa serve de mote a uma reflexão sobre a nova comunidade de músicos que têm vindo a mudar o difícil contexto de quem se dedica profissionalmente à música em Portugal.
O disco Crossfade Ensemble, editado em vinil pela plataforma Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP), será apresentado esta sexta-feira, dia 11 de dezembro, às 19 horas, no Cine-Teatro de Alcobaça.
Gerador (G.) – Neste disco estabeleces de forma harmoniosa a ligação entre o jazz e a música erudita — onde te aproximas até da chamada música de câmara —, aspeto que, de resto, tem marcado as tuas criações. A esse nível, este disco completa um processo de criação e de aproximação entre as duas linguagens ou é apenas mais um passo do teu percurso?
Daniel Bernardes (D. B.) – Acho que todos os discos são passos no nosso percurso, uma cristalização daquilo que pensamos e sentimos sobre a música, nós próprios e o mundo. A questão de mistura das linguagens tem sido algo omnipresente na minha forma de estar na música embora neste disco tenha feito questão de me distanciar de um contexto mais jazzístico — como em Nascem da Terra e Liturgy of the Birds— abdicando de uma secção rítmica tradicional com a bateria e contrabaixo.
G. – Segundo referiste, este trabalho reúne composições escritas entre 2011 e 2016. Como é que foi retornar a esse material depois de tantos anos? Esse olhar deu-te uma nova perspetiva?
D. B. – Absolutamente. Como disse, um disco é um registo do mundo naquele momento e faz parte do nosso crescimento musical a capacidade de olhar para trás e descobrir aspetos que podemos melhorar. Há, contudo, uma relação que é preciso ponderar muito bem: o aperfeiçoamento que podemos dar à música versus a motivação para a voltar a tocar. Para mim é superimportante o primeiro contacto com a música, o primeiro ensaio, o primeiro concerto, acabam por ser os momentos com maior espontaneidade e contornei um pouco essa questão neste disco reunindo um elenco de músicos que me inspiram e estimulam e que me obrigaram a reescrever a música para encaixar nesta formação e nestes músicos em especial. Desse ponto de vista, eram peças que já existiam mas que, de repente, se tornaram noutra coisa nova e fresca.
G. – Não obstante, parece-nos um disco mais íntimo e introspetivo do que o teu anterior, Liturgy of the Birds, que foi composto de raiz. Como descreverias este trabalho da sua génese até ao seu resultado final?
D. B. – Sim, Liturgy of the Birds foi escrito tendo em conta as técnicas de composição de Olivier Messiaen, a quem o disco é dedicado. Existe, por isso, uma apropriação da forma de escrever e uma influência estética de Messiaen naquela música. A música para este disco foi sendo escrita ao longo dos anos, para diferentes solistas e situações, e o processo de rearranjar esta música para lhe dar uma uniformização é semelhante à organização de textos que um cronista de jornal reúne para um livro de crónicas.
G. – No início de 2020 mencionaste, em entrevista, que este disco já estava pronto ainda que não estivessem reunidas todas as condições para o seu lançamento. O que aconteceu entretanto para teres chegado à conclusão de que devia ser lançado agora?
D. B. – É-me muito mais fácil lidar com a parte artística de um disco do que com a parte da produção executiva. Quando acabo de escrever a música para um disco já estou exausto, depois tenho de aprender a música para o gravar e depois de o gravar o processo até existir o disco físico ainda está no seu princípio. Ainda estávamos no processo de misturas quando comecei o trabalho em Liturgy of the Birds, que surgiu de um esboço que me deixou cheio de entusiasmo, partilhei esse esboço com o Miquel Bernat e lancei-lhe o desafio para colaborarmos e, de repente, Liturgy of the Brids cresceu como uma bola de neve — gravação, concertos, reviews internacionais fantásticas, etc. No meio desse processo, percebi que queria aproveitar o momentum criado por Liturgy of the Birds e não queria lançar Crossfade Ensemble sem a devida pompa e circunstância, pelo que optei por lançá-lo no ano seguinte. Entretanto, encontrei a editora certa, o MPMP, que me desafiou a partir para a edição em formato vinil e que encontrou o design maravilhoso que temos! Acho que foi uma decisão acertada!
G. – O disco vai ser lançado através da plataforma Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP). Já destacaste o corpo de trabalho abrangente que têm desenvolvido, mas porque consideraste que esta plataforma se conjugava bem com o teu disco?
D. B. – Em primeiro lugar, porque sou admirador do trabalho deles, para além da amizade que nutro, sobretudo pelo seu editor principal, o Edward Ayres de Abreu, de quem fui colega na ESML. Depois, porque sempre acreditei na consistência dos catálogos das grandes editoras, quando pensas nas grandes editoras de jazz ou de clássico o seu selo garante um disco que reflete uma certa linha estética e qualitativa. A ECM acaba por ser um exemplo paradigmático do que digo: design fantástico, som incrível e música extraordinária seja no jazz ou na música contemporânea. O MPMP tem, quanto a mim, essa força de catálogo, têm um design muito forte e cuidado, e têm um catálogo vasto com música antiga até à música dos dias de hoje no contexto da música erudita. Imaginei sempre este disco num catálogo de uma editora de música erudita, mais do que numa editora de jazz. A Clean Feed é a melhor editora de jazz em Portugal e uma das melhores do mundo, mas este disco não se encaixa na sua linha estética, pela sua natureza mais próxima da música de câmara.
G. – Este movimento tem-se debruçado sobre um lado arquivístico da música portuguesa – num país onde continua a não existir um arquivo nacional do som – mas também na divulgação de jovens artistas portugueses. Em que medida é que consideras importante que exista este tipo de trabalho?
D. B. – Tendo em conta que vivemos num meio musical subdesenvolvido, quando olhamos para o que se passa nos principais países europeus, a que se junta uma autodepreciação muito portuguesa, acho que qualquer movimento que sirva para preservar e divulgar a música portuguesa — antiga e contemporânea — no jazz e na música erudita, é de louvar e é com grande orgulho que vejo a minha obra integrada neste catálogo.
G. – Regressando ao Crossfade Ensemble: inicias o disco com um tema em memória de Bernardo Sassetti. É quase incontornável a influência que este músico tem em qualquer pianista português, quase como que herdando uma pressão de estar ao nível do seu legado. Qual é a tua relação com o seu trabalho e de que forma é que o seu reportório te inspira?
D. B. – Tenho uma relação difícil com a música do Bernardo na medida em que a sua morte fez-me perceber que a música podia doer. Passei dias da minha vida a ouvir os discos do Bernardo, tenho um caderno antigo onde, ao longo de dias, fui transcrevendo o “Sonho dos Outros” e o “Reflexos” do disco Nocturno, enfim… transcrevi nota por nota, li os seus textos, absorvi as suas entrevistas e foi uma das referências mais marcantes para mim. É ainda muito doloroso para mim ouvir a sua música, o que é paradoxal, pois ensino-a na Escola de Jazz do Hot Club, e é sempre com um misto de admiração infinita e dor nostálgica que ouço os seus discos ou toco os seus temas. Não há muitos génios por aí, foi pena termos perdido um de forma tão precoce.
G. – Que outros compositores e artistas é que influenciam estes temas e, já agora, os teus restantes trabalhos?
D. B. – Tive uma formação musical muito rica no Orfeão de Leiria com professores que me mostraram as suas paixões pelo jazz, a improvisação, a música contemporânea e, claro, o cânone do piano clássico. Daí que a postura mais confortável para mim seja mesmo a de tentar mesclar estes universos todos e, em vez de me focar nas coisas que separam estas linguagens, procuro focar-me nos aspetos que as aproximam. Assim sendo, posso destacar alguns músicos que me fascinam em algumas áreas, mas sabendo que me vou esquecer de outros tantos… Bach é uma referência incontornável; Beethoven — num verão comecei a ler a sonata “Waldstein” e estive 15 horas ao piano em êxtase puro; Brahms — os seus Intermezzi op117, os concertos para piano, os trios tão bem tocados pela Maria João Pires, as Baladas op.10 pelo Michelangeli. No jazz, para além do Bernardo que já referimos, o Mário Laginha e o João Paulo Esteves da Silva com quem estudei durante anos. O Keith Jarrett é uma inspiração constante, sobretudo no que toca ao ecletismo musical, o pensamento harmónico do Bill Evans devia ser obrigatório por lei! Mais recentemente o Craig Taborn tira-me do sério. Na música contemporânea, a orquestração do Boulez arrasa comigo, até mesmo na célebre 3ª sonata para piano, a sua capacidade de evocar diferentes cores no piano faz dele um verdadeiro herdeiro de Maurice Ravel. Stockhausen tem obras que são marcos: “Gruppen”, “Kontakte”, “Kontra-Punkte”, “Momente”, etc. Tive a felicidade de o conhecer por ocasião dos seus cursos em Kürten que frequentei. Messiaen, claro, Prokofiev, Alban Berg — o mais romântico dos três — Bartók e, claro, Ligeti por todas as razões e mais algumas.
G. – Neste disco reúnes um conjunto de extraordinários músicos e já disseste que optaste por ir logo para o processo de gravação, saltando uma parte de ensaios, colocando-os numa posição de descoberta in loco dos próprios temas. Consegues-nos explicar melhor o porquê de teres optado por esta abordagem? Havia alguma maldade à la John Coltrane, como em Giant Steps, ou era objetivo conceptual de aproveitar ao máximo a reatividade e espontaneidade dos restantes músicos?
D. B. – Nada de maldade, até porque lhes enviei as partituras com muita antecedência! É apenas a projeção da forma como eu pessoalmente gosto de me relacionar com a música. Costumo dizer por graça: adorava que criassem a amnésia seletiva para poder apagar alguns discos e filmes da minha memória e poder experimentá-los novamente pela primeira vez. Julgo que esse entusiasmo inicial, no primeiro contacto com a música e com os músicos com quem se vai trabalhar produz a música mais rica em termos de espontaneidade e encanto, pelo menos é o que sinto, e prefiro uma interpretação inspirada — mesmo que não tão perfeita do ponto de vista técnico — a uma interpretação completamente controlada e sem surpresa, o risco faz-nos tocar melhor e de forma mais interessante.
G. – Por outro lado, na suíte Imagens da Minha Terra, dividida em três andamentos – Noite, Escola e Mosteiro – abordas memórias de Alcobaça, onde nasceste e cresceste. No teu processo criativo, esse trabalho de ligação afetiva e imagética é importante?
D. B. – Não. Acredito na música pela música, as imagens, ou narrativas a que posso aludir numa peça servem apenas para guiar um pouco o processo de composição, por vezes sirvo-me dessas muletas criativas, se quiseres, mas primeiro está o som na sua forma mais visceral e abstrata.
G. – Entre discos, dedicaste algum do teu tempo à criação de bandas sonoras, nomeadamente para o novo filme de João Botelho, O ano da morte de Ricardo Reis, assim como para a série televisiva, A Espia. Como foi trabalhar nestes projetos e de que forma é que diferem do teu processo artístico mais convencional?
D. B. – A primeira diferença é brutal: a última palavra deixa de ser minha! Aconteceu na série A Espia experimentarmos coisas — acelerar a música, alterar acordes, texturas — coisas que não tenho problema nenhum em explorar, talvez por ser improvisador, e parece-me que para muitos compositores isso seria uma violação artística profunda. Para mim, não é. Acho que o desafio, quando trabalhas com um realizador, é conseguir ler a sua visão artística e proporcionar-lhe a música que ele ache adequada para aquelas imagens. Os pianistas e os compositores em geral vivem na antítese desta realidade, os pianistas tocam sozinhos e quando se apresentam é como solistas à frente de uma orquestra que os acompanha e os compositores trabalham sozinhos e são donos e senhores do universo musical que criam.Para mim, é muito refrescante trabalhar desta outra forma e estabelecer um diálogo artístico com outra pessoa.Já no projeto “Rondó da Carpideira” exploramos um pouco a ligação entre a música e o vídeo em tempo real.
G. – Como olhas para a comunidade de músicos nacionais que, nos últimos anos, se tem reunido à volta do jazz e trazido à luz tantas obras novas?
D. B. – Com muita felicidade. Acho que cada músico que toca cria públicos novos e o sinal disso mesmo é o número crescente de festivais de jazz por todo o país. Há muitos anos, quando vim para Lisboa, dizia-se que o jazz era música de músicos para músicos e é bom verificar que não é verdade, temos é de chegar às pessoas e expô-las a esta música.
G. – Sentes que há um fenómeno semelhante a acontecer na música clássica e erudita em Portugal?
D. B. – Sim, sinto que nunca como nos dias de hoje exportamos tantos músicos para as principais orquestras mundiais, estas estão recheadas de músicos nacionais com lugares de solista um pouco por todo o mundo e em orquestras de referência. Isso significa que estamos a abandonar o paradigma de ter um solista — como a Maria João Pires — por século para conseguirmos ter músicos de referência mundial com mais frequência: casos como o Abel Pereira da trompa, o Sérgio Carolino na tuba, o João Barradas no acordeão, entre outros. É um sinal de que o nosso sistema de ensino — apesar de tão mal tratado ao longo das últimas décadas — tem conseguido ultrapassar os desafios de um país com um mapa cultural demasiado centralizado e ainda a lutar com orçamentos culturais parcos e muito aquém do que se passa no resto da Europa e do Mundo.