As questões de género estão na ordem do dia, e bem, mas não se encontra facilmente quem se proponha a falar sobre masculinidades e as suas formas de afirmação. No plural, porque a performatividade de género depende do contexto geográfico, cultural e socioeconómico. O que significa ser homem para um jovem negro de 15 anos, pobre e de um bairro social? Ou melhor, como é que esse jovem pode afirmar a sua masculinidade? Utilizam-se adjetivos como tóxico e frágil, mas sendo o acesso a recursos para a afirmação um demarcador, essas atribuições podem não fazer sentido em todos os contextos. Os atos considerados expressão de uma masculinidade tóxica podem ser, afinal, mecanismos de defesa e sobrevivência num ecossistema sensível. Seja o recurso à violência ou o materialismo excessivo.
Em Entre Mim e o Mundo, Ta-Nehisi Coates relata a sua adolescência nas ruas de Baltimore dos anos 90 e o fator do medo constante. Medo de ser uma presa fácil dos seus pares. E o medo que tinha de causar aos outros para que não fosse uma vítima, mesmo que isso se virasse contra si, caso alguém se sentisse desafiado por essa postura. “Not being violent enough could cost me my body. Being too violent could cost me my body. We could not get out.” No fundo, é o dilema de ser emasculado, segundo os códigos dos lugares onde se vive, ou ser acusado de hipermasculinidade pela sociedade.
Outro caminho para a afirmação da masculinidade de jovens negros é o do materialismo. Baco, Exu do Blues, no tema Autoestima do seu criticamente aclamado QVVJFA, diz: “Diamantes nas correntes pra ofuscar nossa dor/ Cravejamos o sorriso, não vão entender essa dor/ Pago dez mil nesse ténis, tô pisando na dor/ Essa roupa é cara, foda-se, compra/ Quero esconder minha dor/ Esse carro é caro, foda-se, compra/ Eu quero fugir da minha dor.” O sucesso é um medidor de masculinidade em qualquer contexto, mas em alguns meios só há uma representação do mesmo através da acumulação de bens. Veste-se a pele de bem-sucedido para se ser intocável. Não é mais do que a réplica da sociedade, em que os mais poderosos são intocáveis. Passa-se de um tabuleiro de xadrez para um de damas, mas o objetivo é o mesmo: o poder, a qualquer custo.
Um dos álbuns de Hip-Hop mais vendidos de sempre é o Get Rich Or Die Tryin’, do 50 Cent. O título fala por si e reflete a mentalidade comum dos meios urbanos em que crescem jovens negros, seja nos Estados Unidos, Brasil ou Portugal. A linguagem dos carros rápidos, dinheiro fácil e, muitas vezes, vidas curtas. Uma linguagem que substitui os valores que construíram comunidades por uma nova rede de códigos morais que apelam ao “cada um por si”. Códigos de honra que justificam a violência que leva a mortes sem sentido e vinganças. Estes jovens não estão a ignorar os padrões morais das sociedades em que vivem para atingir o sucesso – pelo contrário, estão a segui-lo com rigor. Não há melhor representação do individualismo pregado por neoliberais do que o encontramos na afirmação da masculinidade em contextos periféricos.
A cultura de hustle como valor indissociável do ser Homem não é difundida apenas através de códigos de rua ou letras de rap. Há uma nova geração que tem contacto com ela por meio de influenciadores digitais. Gurus de podcasts que propagam a obtenção e ostentação de bens materiais como símbolo de masculinidade. Não seria um problema se o público que consome esses conteúdos tivesse capacidade para discernir um discurso motivador de um destrutivo. Esses criadores de conteúdos digitais equiparam a pobreza a falhanços pessoais, sem filtro para o público bastante juvenil que os assiste. Para evitar esse insucesso precoce, há adolescentes dispostos a fazer tudo. Essa disposição ilimitada para jovens em contextos periféricos pode significar perder a liberdade ou a vida.
Agora, com Portugal prestes a entrar numa crise, é preciso desafiar essa doutrina de que a afirmação da masculinidade e o valor pessoal são definidos puramente pela acumulação de bens e dinheiro. O amor pela família e a comunidade e a dedicação a causas valiosas têm de tomar esse lugar. No entanto, é preciso ter sensibilidade para entender o que motiva estes jovens e o contexto em que vivem. A ambição de estabilidade financeira é um objetivo saudável, mesmo que a meta final seja a segurança perante a afirmação dos outros. O que não é saudável é a validação de qualquer meio para atingir esse fim. Mesmo que cheguem a posições de poder legítimas e legais, deve haver a preocupação de não se estar a evitar um traficante de drogas implacável para criar um sociopata bem-sucedido. Para isso, é preciso desafiar os valores adjacentes à masculinidade nestes contextos.
Os jovens da periferia podem não estar interessados em lições de moral de pessoas em posições mais confortáveis, mas querem saber como podem chegar a essas posições. Mais importante, precisam de aprender a lidar com as falhas e entendê-las como sendo parte do processo. Não só das falhas no caminho para um objetivo maior, mas também as do quotidiano. Essas que muitas vezes ditam a insegurança perante a afirmação dos outros.
-Sobre Airton Cesar Monteiro-
Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano, licenciado em Relações Internacionais (não praticante) e convicto agitador social. Dedicado a escrever sobre mudanças sociais, cultura e o que mais lhe apetecer.