fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Shahd Wadi

A chuva de Jasmim

Nas Gargantas Soltas de hoje, Shahd Wadi inspira-se nas publicações do povo palestiniano livre para falar sobre a chuva de jasmim.

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

O meu texto é um povo. 

Não vou dizer. 

Só o nunca irá tirar a minha raiva após raiva do seu escavado oco extremamente vazio.

Não pronunciarei quantos são. Não declararei um número que, entretanto, mudou, que, entretanto, mudou, que, entretanto, mudou de pessoas que eternamente ficaram. Por serem palestinianas, para sempre desapareceram do lugar para onde fugiram. Morreram sem jantar. Na sua garganta, nem sequer um cuspo de água. Não irei torná-las, mais uma vez, num número exilado, agora para uma notícia de rodapé. 

Qual poema, pá! Não irei partilhar histórias de amor, de coragem e de resiliência.  Que se foda a resiliência. O meu ser já fui interrompido perante um termo, mas até as minhas palavras já foram exterminadas. 

O meu texto já foi eliminado.

O nó na minha garganta é agora uma vala comum: “De tanto carregar caixões dos meus amigos, meu ombro tornou-se cemitério.” Que verso aguentaria ao lado da pergunta: “pai, os mortos vão para o céu, o mesmo lugar de onde nos caem as bombas?”.

A cantiga já não é uma arma.

Nada irá desentupir a minha tanta fala que em se mim cala. Nunca conseguirei clamar de volta, aos ouvidos deliberadamente surdos, os gritos que ecoam no meu corpo estupidamente distante: “Esta cinza era uma vez o meu filho.”

Pausa. O meu texto é silêncio.

Até onde pode ir o fundo deste abismo? Não me vou pronunciar sobre os estilhaços das notícias que furam apenas alguns olhos.  Não vou empurrar os cadáveres da minha gente colher a colher nas bocas imundas, tentando comprovar que nós não nos sufocámos a nós. 

Ó mundo, estás aí?

O jornalista está a anunciar finalmente a chegada da única sobrevivente: “ninguém sabe quem é, nem ela própria.”

O meu texto é uma incógnita.

Não vou chamar mais ninguém para mostrar as tantas, tantas, tantas vidas que caíram nos meus dedos atados a um telemóvel. Não vou comprovar que realmente eram vidas, nem sequer humanas. 

Jamais serei filha de um refugiado palestiniano, apenas filha da puta.

Não vou descrever a foto da Eline, com um nome em si loiro, morta com o seu pequeno chapeau, nem sequer permitir de só pelos seus olhos azuis a verem: era mesmo uma menina. Não vou traduzir o testamento de Haya, a distribuição justa dos seus brinquedos e da poupança do seu mealheiro que desobedece a qualquer interpretação. O meu texto é um mealheiro. Zein encontrou o seu nos destroços da sua casa, mas agora nada serve comprar a cama para a qual poupava. Estará o menino sem nome ainda a escavando os escombros para encontrar a sua família? 

O meu texto são escombros sem nome.

Não vou. Não vou nem sequer esvaziar aqui os sacos literalmente cheios de restos de filhos, são apenas sacos e de plástico, cheios de lixo humano: nós.

O meu texto somos nós em sacos de plástico.

A minha voz ficou rouca de utilizar as maiúsculas nos termos ditos certos: Direito Internacional, Resoluções das Nações Unidas, Autodeterminação, mas a mim quem me determina? 

O amigo de Nour perdeu todos os seus amigos, “um bairro partiu-se.” O meu texto é um bairro. 

Encosto o meu ecrã ao ombro da Mariam enquanto chora “nem sequer pelo horror que se abateu sobre nós, mas pela negação de que nos esteja a acontecer.” Samaher não chorou como prometeu, “deixando escapar apenas duas pequenas lágrimas insistentes, para que a barragem não se rompa com os seus gemidos.” Sem chorar preveniu-se da morte, abdicando do direito de autora, colocando o seu romance para descarregar, que chega ao meu ecrã diretamente de Gaza. 

O meu texto é carregado e descarregado de Gaza.

Dois lados? Não, o coro da minha alma jamais vai repetir: prisão a céu aberto, apartheid, ocupado – ocupante, oprimido – opressor, Nakba, Naksa, 1948, 1967, 2023, mas porque raio este terramoto não abana ninguém?

Meu texto é um terramoto.

Porque falar dos sonhos de Farah se agora se resumem a um momento diário em que recebe a mensagem: “Estou ainda viva”. Qualquer chamada é uma potencial despedida, qualquer momento é um potencial momento, mesmo assim, num telefonema milagrosamente possível, entre um bombardeamento e outro, a mãe de Kawther não se esquece de ser mãe: “que é feito da tua menta, filha?”.

Fida Falaestin. Para ti Palestina,” disse o homem que poupou 40 anos para construir a casa que se tornou pó. Luz.

A minha língua já ficou paralisada, imaginando o estendal de Hiba. Um bairro inteiro exilou-se deixando a solidão num estendal longínquo na janela de uma vizinha. Hiba responde, estendendo toalhas, que muda de cor e posição todos os dias. A mulher da janela distante, faz o mesmo. Uma toalha, estou viva. Outra, estou de verde. Estou contigo. Estamos juntas. Resistirmos.

Prosa, o caraças! 

Sim, eu ouvi bem, ele disse: “Por cima dos escombros da minha casa, dormirei. Aqui permanecerei”. Mas aquele meu povo palestiniano não largou ainda a tal doença incurável chamada esperança?

O meu texto é incurável.

Enquanto lhe choviam rockets na cabeça, Eman dizia: “rezo para que chova jasmim”.

Com ela, irei sacudir os meus corpos mortos, levantar a minha bandeira e a minha dança. Um dia haverá chuva de jasmim.

O meu texto é chuva de jasmim.

Esta crónica foi inspirada pelas publicações do povo palestiniano livre. 

- Sobre Shahd Wadi -

Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010).  Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua. 

Texto de Shahd Wadi
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

19 Dezembro 2024

Que fome é esta?

12 Dezembro 2024

Israel will fuck you all

29 Novembro 2024

Tirar a cabeça da areia – parte II

21 Novembro 2024

(In)Suficiência do Direito Internacional e Segurança Humana

14 Novembro 2024

Nascimento

29 Outubro 2024

A solidão enquanto projeto, a mutualidade enquanto demanda

22 Outubro 2024

Não é complicado

15 Outubro 2024

Entre o Amor e a Rejeição: O Impacto da Família na Saúde Mental Negra LGBTQIA+

10 Outubro 2024

O México de Paul Leduc e arte polémica de “exergue – on documenta 14” no Doclisboa

8 Outubro 2024

Observatório: Sala de Aula

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Assessoria e Escrita de Comunicados de Imprensa

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

16 Dezembro 2024

Decrescer para evitar o colapso

O crescimento económico tem sido o mantra da economia global. Pensar em desenvolvimento e em prosperidade tem significado produzir mais e, consequentemente, consumir mais. No entanto, académicos e ativistas pugnam por uma mudança de paradigma.

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0