No seu portentoso ensaio sobre as origens do totalitarismo, a filósofa Hannah Arendt apresenta uma caracterização deste conceito, distinguindo o regime totalitário de outros regimes, como o regime autoritário ou o regime tirânico. Tendo algumas semelhanças com os outros regimes agora citados, o regime totalitário apresenta especificidades que Arendt identifica com clareza. Enquanto um regime autoritário é organizado de forma piramidal, num regime totalitário o chefe, indisputado, está no centro de uma série de círculos concêntricos onde se inclui num nível mais próximo deste a sua clique e as forças repressivas, alargando-se estes círculos até se chegar à base popular de apoio do regime.
Mas há ainda outros aspetos-chave do totalitarismo que são relevantes no presente. Para vingar, este regime necessita de muita gente e desorganizada. Segundo a autora, “os movimentos totalitários são organizações de massas de indivíduos atomizados e isolados”. Uma vez instituído, o regime totalitário precisa de assegurar a sua manutenção e preservação. E como o faz? Segundo Arendt, não permitindo qualquer livre iniciativa ou qualquer atividade que não seja totalmente previsível. E, “uma vez chegado ao poder, [o totalitarismo] substitui invariavelmente todos os verdadeiros talentos, sejam quais forem as suas simpatias políticas, pelos iluminados e imbecis a quem a falta de inteligência e de criatividade é a melhor garantia de lealdade”.
Pode parecer exagerado falar de totalitarismo (pelo menos em Portugal) nos dias que correm, sobretudo quando comparado com os regimes que levaram Arendt a desenvolver a sua tese. Mas o risco é sempre real – nem os nossos antepassados eram mais imbecis que nós, nem a história nunca se arrisca a repetir. Igualmente assustadoras são as condições necessárias ao totalitarismo e como estas se mantêm uma realidade. Não serão “as massas de indivíduos atomizados e isolados” uma realidade no presente? Não serão até uma realidade mais vincada hoje que na época de Arendt? A isto acrescenta uma outra passagem do livro da filósofa alemã que ressoará hoje como uma possível realidade do presente: o totalitarismo é “internacional na sua organização, universal na sua visão ideológica e planetário nas suas aspirações politicas”.
Portugal tem dos mais baixos índices europeus de participação cívica. Significa isto que os portugueses estão entre os europeus que menos militam em partidos políticos ou outro tipo de organização, como sindicatos, ONGs, associações ou outro tipo de grupo. Em paralelo, o nosso país é também caracterizado por baixíssimos índices de confiança interpessoal. Se é certo que correlação não é casualidade, não é preciso ser muito imaginativo para imaginar que estes dois indicadores estão relacionados. Temos assim massas de indivíduos despolitizados, sem participação cívica e sem confiança entre si.
Haverá um grande conjunto de razões para estes indicadores, do pouco tempo disponível para atividades extra laborais a razões históricas. Mas mais do que as razões, importa pensar em como melhorar esses indicadores e, assim, reduzir as possibilidades de um regime totalitário se instituir. Desde logo, é essencial garantir mais tempo livre para todos, com as condições que permitam a participação cívica verdadeiramente livre. Mas é preciso mais. É preciso apostar, como escreve Catarina Neves, na promoção da “amizade cívica” e na sua relação com as ideias de reciprocidade.
Para uma republicana aristotélica como era Hannah Arendt, a participação na vida da polis era, antes de mais, a verdadeira maneira de ser livre. Talvez essa participação seja também uma garantia de liberdade conjunta.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.