Num mundo em que ser vulnerável tende a ser, cada vez mais, um desafio complexo, a dança pode criar espaços de autenticidade, abrindo novas formas de sentir o corpo, mas também de viver as relações com o outro. Quem o diz é Katarina Lanier, 26 anos, que venceu a MNJC, na categoria de dança, com uma peça que convida o espectador a “explorar múltiplas facetas das interrogações da autora, as vulnerabilidades e a falsificação”.
Nascida no Carolina do Sul, nos Estado Unidos, Katarina Lanier saiu, primeiro, para estudar na a Suíça e, depois, em França. No verão de 2021, chegou Portugal, país a que chama casa atualmente. Isto ainda que reconheça dificuldades no meio artístico nacional e confesse que tem de ter trabalhos paralelos para pagar a renda.
Em entrevista ao Gerador, a dançarina, que também estudou artes visuais, conta o que significa a referida distinção, revela os seus planos para o futuro e expõe a sua linguagem artística. Explora ainda o seu passado, dos dias em que era aluna de ballet ao “gosto eclético” dos pais em termos musicais, e explica como decorre o seu processo artístico.
Gerador (G.) – Quando é que a arte, e mais especificamente a dança, entrou na tua vida? Quando eras criança, a arte já tinha um papel relevante para ti?
Katarina Lanier (K. L.) – Em criança, tive aulas de ballet para ter boa postura e graciosidade, mas, à medida que o tempo foi passando, fiz o meu próprio caminho e interessei-me mais pelas técnicas contemporâneas e modernas. Durante vários anos, estive muito concentrada na técnica Graham [estilo de dança criado por Martha Graham caracterizado por uma grande expressividade corporal] e interessada em treinar o meu corpo com bastante seriedade, ao mesmo tempo que estudava filosofia. Sempre tive também afinidade pelo movimento e composição visual. E cresci com os gostos ecléticos de música dos meus pais, como o jazz, o rock ex-jugoslavo e as divas, como Sade ou Prince.
G. – Acabaste por ir estudar para França, tendo, primeiro, tirado uma graduação em dança e, depois, um mestrado em artes visuais. Porque escolheste a França para fazer a tua formação e que bagagem trazes desses dias?
K. L. – Quando era jovem, estudei na Suíça, com o programa Rotary [programa de intercâmbio patrocinado pelos rotary clubs, que são redes de líderes do mundo dos negócios], e vivi com famílias de acolhimento. Frequentei essa escola durante um ano. Na altura, lembro-me de ter ido a Paris no meu aniversário para visitar um amigo da família e de ter sentido que era uma cidade onde podia aprender muitas coisas diferentes e conhecer pessoas diferentes sem ter de escolher um foco. Isso entusiasmou-me. Aprendi como funcionava o sistema público universitário, que oferece educação gratuita aos estudantes, e saltei de cabeça. Depois, com o passar do tempo, conheci cada vez mais artistas, aprendi sobre o sistema da escola de arte, e arrisquei. A dança é o meu núcleo, mas as artes visuais e o vídeo são onde sou capaz de brincar de uma forma mais alargada e adoro isso. O que fica comigo dos meus anos em França são as amizades e as relações muito fortes, que são como família e que me ensinaram, cada uma à sua maneira, sobre a vida, a cultura e as pessoas.
G. – Estudaste, portanto, não apenas dança, mas também artes visuais. Como é que hoje essas duas disciplinas se cruzam, tendo em conta que hoje não és apenas dançarina, mas também video maker?
K. L. – Como alguém cuja primeira experiência na criação de arte foi a composição de dança, a minha relação com a composição de corpos no tempo e no espaço é uma prática instintiva e intuitiva. Move-se através de mim sem manipulação concetual. Mas também senti-me presa, porque a dança contemporânea pode ser fechada sobre si mesma e tenho tido dificuldade em sentir-me livre como autora. Já o vídeo e as artes visuais também podem ser do corpo, mas pode-se estender o corpo através de uma câmara e de um projetor. Há muitas possibilidades diferentes de manipular o material que eu encontro para melhorar os conhecimentos e a prática da dança. A forma como imagino o meu estúdio de sonho é com uma metade do espaço destinada a ficar suja e desarrumada, e outra metade com um belo chão limpo, onde se pode mover e respirar bem.
G. – Aliás, como descreverias hoje o teu trabalho e a sua linguagem artística?
K. L. – Neste momento, estou a tentar perceber as formas como posso brincar com materiais externos, bem como com o meu próprio material interno. Como posso fazer um espectáculo com luzes e uma câmara, mas também como posso sentir o que se passa dentro de mim e trazer estas questões para o trabalho e para o processo. Como posso navegar entre as experiências internas e externas, e envolver-me com as questões emocionais, micro-políticas e estéticas que surgem. Estou interessada em procurar uma prática sustentável, que permita aos artistas trabalharem em conjunto durante períodos de tempo mais longos, construindo pouco a pouco diálogos através de diferentes meios e experiências.
G. – Mas como decorre o teu processo artístico? O que te inspira?
K. L. – O meu processo é, muitas vezes, guiado pela brincadeira. Onde reside o entusiasmo? Recentemente, inspirei-me muito no cinema e na televisão: as formas aparentemente supérfluas e comerciais destes meios podem abordar experiências emocionais e assuntos históricos muito sérios. Inspiro-me muito no enquadramento de uma história, de um corpo, e de um encontro. Hoje, a minha prática move-se muito livremente num jogo entre arquétipos da cultura pop e a experimentação mais radical.
G. – Como referiste, hoje os teus interesses são os processos colaborativos, mas também as possíveis relações entre a produção de imagem e a prática do corpo e os usos experimentais dos códigos sociais. De que modo é que estes últimos podem ser vistos e interpretados através de outras lentes por meio da dança?
K. L. – Penso que a prática da dança e do movimento tem o poder de abrir diferentes formas de sentir o mundo dentro do corpo individual e o modo como os corpos coletivos interagem entre si. Os nossos corpos decidem muito da nossa posição numa sociedade racista, sexista e capacitista. Penso que a dança não vai resolver isto de forma alguma, especialmente não a técnica de dança tradicional. Mas penso que aqueles que trabalham em práticas somáticas e na investigação do movimento, por exemplo, podem oferecer mudanças de perspectiva, a um nível micropolítico. E isto é tão importante como o financiamento estatal da arte, por exemplo. É a prática de observar, mover, e expandir a forma como se vive no corpo, no espaço, e no tempo.
G. – Venceste a MNJC na categoria de dança com a peça Call Me Three Times. Como a descreverias?
K. L. – Call Me Three Times é uma série de sonhos e desejos. Trata-se de querer estar no palco, lidar com o passado, e imaginar o futuro. Vive entre e através da dança, das artes visuais e da performance, e penso que é aí que reside a possibilidade de o público heteróclito se relacionar com o trabalho.
G. – O que significa para ti vencer a MNJC?
K. L. – Ganhar a MNJC foi inesperado, estando há pouco tempo em Portugal e ainda a compreender as dinâmicas culturais. Sinto-me muito sortuda por ter o meu trabalho reconhecido neste contexto. Vencer a MNJC possibilitou muitas conversas com pessoas que, de outra forma, não teriam conhecido. Isto, por si só, é muito poderoso.
G. – Li que Call Me Three Times é também um convite para que o espectador explore as tuas vulnerabilidades e até a ideia de falsificação. Que papel têm as vulnerabilidades, mas também a falsidade no mundo atual? Devemos todos pensar mais sobre essa dualidade?
K. L. – Estamos constantemente a inventar as nossas vidas através dos meios de comunicação, tais como o Tik Tok e o Instagram. Por vezes, estamos literalmente a mentir, e outras vezes estamos a expandir a história que realmente vivemos. Penso que é muito difícil ser vulnerável com estas tecnologias, porque corremos o risco de sermos dilacerados por políticas culturais de cancelamento e por uma sensação geral de hiper-estimulação. Por outro lado, há um poder nesta hiper-estimulação e nesta fabulação: estamos a desenvolver novas formas de partilhar questões sociais, histórias pessoais, e dinâmicas culturais. Todas as pessoas, penso que especialmente as mulheres jovens, são afetadas pela sua imagem, seja ela física ou digital, com a tecnologia contemporânea. Estamos agora presos a estas dualidades.
G. – E que papel deve ter a arte, nomeadamente a dança, no estímulo da reflexão sobre essa dualidade?
K. L. – O que é belo e o que também é difícil na dança é que se tem de viver e respirá-la. Não se pode usar acessórios como uma câmara ou um pincel para ilustrar o que se deseja. Tem de passar por ti, viver dentro de ti, e transformar-te. Não te podes separar do teu corpo dançante. E esse é o desafio. A tua respiração muda, a forma como olhas à tua volta, a forma como te relacionas com os corpos dos outros à tua volta, a forma como crias empatia e te ligas através da intuição e da comunicação física. Isto tem o poder de criar silenciosamente espaços de autenticidade e abertura à vulnerabilidade, e, por outro lado, pode abrir a possibilidade de brincar e distorcer as realidades.
G. – Portanto, estudaste na Suíça e, depois, em França. Quando é que vir para Portugal se tornou um desejo e porquê?
K. L. – Mudei-me para Marselha e tentei fazer outro mestrado em dança para ficar em França e continuar a aprender. Nesse contexto, conheci o coreógrafo João Fiadeiro. Enquanto trabalhava com ele, não conseguia deixar de ter a impressão de que havia algo diferente nele em comparação com outros coreógrafos que tinha encontrado. Ele estava presente de forma radical. Entretanto, regressei aos Estados Unidos e estava a trabalhar numa padaria. Tomei conhecimento do trabalho que ele iria fazer no Programa Avançado de Criação em Artes Performativas, no Fórum Dança, com Carolina Campos, Márcia Lança, e Dani Pizamiglio. Na altura, queria deixar de fazer arte, e estava a considerar seriamente a padaria como uma carreira. Mas algo clicou. Candidatei-me [ao programa referido] e vim para Portugal. De alguma forma, o caminho mostrou-me por onde seguir e estou muito feliz por o ter seguido.
G. – Que avaliação fazes das oportunidades que te têm sido oferecidas por cá? O meio é difícil?
K. L. – Sinto que o meu trabalho artístico está pouco a pouco a ser reconhecido e compensado, mas ainda é instável e tenho trabalhos paralelos para pagar a renda. Os artistas precisam de oportunidades económicas sustentáveis para trabalharem e esta é uma questão histórica que faz parte da vida de cada artista. Em Portugal, deveria haver mais financiamento para artistas de todas as idades e, num mundo ideal, as instituições públicas, bem como privadas reconheceriam a importância da contribuição dos artistas para a sociedade, para além de um ponto de vista produtivista.
G. – Quais os próximos passos na sua carreira?
K. L. – Nos próximos anos, espero fazer uma segunda parte de Call Me Three Times, criar contextos para colaborações frutuosas na dança e entre disciplinas, poder continuar a crescer como artista e fazer com que o meu trabalho seja um reflexo disso. Quero entrar nos universos dos outros artistas e convidar outras pessoas para o meu mundo.