A hipersexualização do corpo negro cria uma falsa realidade em que deixamos de ser rejeitados para ser aceites.
Eu acostumei-me com a rejeição. Até aos meus 14 anos de idade, eu era considerada a menina mais feia da turma. Nunca fui desejada pelos rapazes. Quando fiz 15 anos, esses mesmos rapazes começaram a abordar-me de um jeito diferente. Não era bem desejo, muito menos carinho, mas havia um certo interesse. O meu corpo tinha mudado, o meu rabo chamava atenção. Os anos foram passando e foram muitas as vezes que escutei coisas como:
"Eu nunca estive com uma preta antes, mas adoraria experimentar."
"Vocês blacks são as mais quentes na cama."
"Adoro o teu rabo grande, vocês pretas têm grande corpo, adoro pretinhas.”
"Tu tens uma beleza muito exótica."
Confesso que, nos primeiros tempos, fiquei contente. Afinal, aquilo era o mais próximo de aceitação que eu achava que merecia. Mas rapidamente percebi que era só mais uma forma de me agredir. Ah, a herança colonial ecoa com força rompendo gerações por aí fora.
Há não muito tempo atrás, homens e mulheres negros escravizados eram utilizados como mercadoria e instrumento sexual. Os seus corpos eram exibidos em eventos para burgueses brancos. Existiam casas de sexo onde eram obrigados a participar em orgias (vulgo violação) e toda uma cultura onde jovens brancos iniciavam a sua vida sexual com as mesmas. Além disso, existia um sistema violento que obrigava jovens negros a se reproduzirem entre si, para que as crianças concebidas desses atos horrorosos se tornassem também elas propriedade dos senhores.
Uma dessas mulheres foi Sara Baartman. Mulher preta e africana, foi levada para a Europa para se tornar atração de circo, no século XIX.
Pelo fato de o seu corpo ser considerado anormal, Sara era obrigada a apresentar-se, seminua, com uma coleira ao pescoço como se fosse uma aberração ou um animal de zoo em espetáculos onde as pessoas se riam, zombavam e tocavam nas suas partes íntimas. Sara morreu jovem e nem o seu óbito foi respeitado. O seu esqueleto, cérebro e órgãos genitais foram, por muito tempo, objetos de estudo, preservados e colocados para exibição num museu em Paris. Só mais de 100 anos depois e após muita insistência e um pedido formal por parte de Nelson Mandela, acabaram por devolver os restos mortais de Sara ao continente africano.
A representação e a redução da mulher negra a um corpo e a grandes apetites sexuais continua a acontecer em músicas, filmes e veículos de comunicação. E também há muitas páginas de redes sociais que se intitulam antirracistas, mas na realidade só querem lucrar ou gerar visibilidade em cima do corpo de mulher negra.
Precisamos falar sobre o outro lado da moeda. Pois se por um lado as pessoas esperam de mulheres negras expetativas que correspondem a estereótipos que as objetificam constantemente, por outro lado a sua feminilidade é completamente invalidada justamente por se afastarem ou não atenderem ao estereótipo imposto. Qualquer coisa serve para questionar a legitimidade de se ser uma mulher preta, seja o seu tom de pele, o seu cabelo, o seu peso ou o seu jeito de falar.
Mas então como combater a misoginia e apropriar-me da minha sensualidade/sexualidade enquanto mulher negra?
Esse poder precisa ser arrancado da branquitude.
Se assumem que a nossa negritude ou experiência sexual é definida pelo tamanho da nossa bunda; se usam o termo "exótica" para nos caracterizar; se acreditam que estar com uma pessoa preta é uma experiência/aventura; se acreditam que homens pretos são máquinas de sexo/de fazer filhos "bonitos" (claros): saibam que nada disso são elogios. São ferramentas que perpetuam a ideia de que somos bestas sexuais, que existem eles, a norma; e depois nós, as espécies raras e diferentes.
Para mim, a questão nunca estará em abraçar a nossa sexualidade e sensualidade. O problema é quando isso se torna um instrumento da branquitude para nos limitar e desumanizar.
-Sobre Sandra Baldé-
Escritora, DJ, e empreendedora digital, começou o seu percurso no digital em 2013 com o blog Diário de uma Africana, uma plataforma voltada para discussões raciais & de género e para autocuidado de pessoas negras. Em 2021 autopublicou o seu primeiro livro intitulado "Para Que Fique Bem Escurecido" cujo enredo gira em torno dos desafios da mulher negra num país maioritariamente branco.