Ana Ventura sempre soube que seria artista. Desde cedo que o desenho e a pintura a interessavam, mas só mais tarde descobriu o seu talento enquanto ilustradora, área na qual foi recentemente distinguida com o Prémio Nacional de Ilustração. Ainda assim, hoje não se descreve somente como tal. Diz que é, enfim, uma pessoa criativa que “gosta de transformar ideias em acontecimentos visuais e sensoriais”, inspirando-se nos detalhes do que a rodeia e na beleza “das coisas mais improváveis”.
Nascida e formada em Portugal, em 2014 (numa altura em que, por cá, se vivia um período de crise) rumou à Antuérpia, mas continua a trabalhar com e para Portugal, revela. No país, vê um movimento crescente de reconhecimento do papel da ilustração, mas admite que, na Bélgica, tem acesso a “outras condições” que por cá ainda inexistem. Sem planos para regressar ao país, e de olhos no futuro, diz que tem ainda livros para escrever, colaborações para firmar e uma residência artística no Japão para fazer, experiência com a qual anda a sonhar.
Em entrevista por escrito ao Gerador, a artista fala sobre a criação do livro – Mudar (2021), uma narrativa visual, sem palavras, sobre alguém que parte para outro local, onde terá novos hábitos e rotinas – que lhe mereceu o referido prémio, da inspiração ao papel da cor, e partilha como decorre o seu processo artístico. Reflete também sobre a diversidade de media que explora, os seus vários projetos (incluindo a ilustração de sapatilhas All Star) e os conselhos que daria a quem quer encontrar a sua voz artística.
No livro que lhe mereceu o Prémio Nacional de Ilustração em 2022, explora o desafio que é rumar ao desconhecido por necessidade. Como surgiu a ideia para este projeto?
Mudar coincide com a minha experiência pessoal de sair de Portugal para ir viver na Antuérpia, Bélgica. O convite para o livro tinha sido feito pelo editor da Pato Lógico, André Letria, ainda em Portugal. A ideia para esta estória surgiu quando, numa tarde de outono, ao atravessar o parque da cidade em Antuérpia, apanhei esta folha do chão [ver foto]. Olhei para a folha e pensei: está a mudar de cor, está a adaptar-se a uma nova realidade. Exatamente como eu, acabada de mudar para um novo país.
Foi, então, a sua experiência que levou ao livro? E como é que foi a experiência da migração para si? Partiu porque o meio artístico português não apresentava oportunidades?
Sim, foi a experiência com a emigração que lançou a ideia, mas o livro pretende explorar muito mais do que apenas uma mudança de país. É sobre todas as mudanças, interiores e exteriores que ocorrem em todos nós, e como isso nos muda a nós e aos que nos rodeiam. Deixámos Portugal em 2014 durante a crise económica. Estava complicado para qualquer sector profissional. Os nossos filhos ainda eram pequenos e acreditamos ser a melhor altura para arriscar uma vida melhor, com mais condições para todos. O meu marido teve uma proposta interessante para trabalhar numa empresa em Antuérpia. Como sou freelancer, e trabalho quase sempre a partir de casa, posso trabalhar em qualquer sítio.
Nesse livro, a cor é ela própria uma personagem, na medida em que também ela passa uma mensagem. “São símbolos que situam personagens e lhes conferem identidade”, lê-se na sinopse.
A personagem desta história é amarela, vive num lugar onde tudo é amarelo e muda-se para um outro lugar azul. Leva a sua bagagem física, emocional e cultural, criteriosamente escolhida, pois, quando partimos, somos forçados a fazer escolhas, e, quando se chega a um novo lugar, o choque cultural acontece. O entusiasmo mistura-se com a ansiedade. A língua é outra. Os hábitos são outros inevitavelmente. A fusão acontece. Ele também não é o único nesta situação. Percebe que há muitos outros na mesma condição. No final da estória, a personagem amarela nunca deixa de ser amarela, não perde a sua identidade, mas absorve muitas outras cores. Adquire novas experiências, cresce por dentro. Quanto ao lugar azul, este também fica a ganhar com a chegada de alguém diferente, de alguém de outro local.
A cor é, portanto, central. Que papel tem no seu trabalho, enquanto ilustradora, como um todo?
Enquanto ilustradora, no meu trabalho procuro sempre não utilizar muita cor. Gosto de usar duas ou três cores numa ilustração. Pretendo uma abordagem mais limpa e simples. Uma leitura mais poética de forma a deixar quem frui mais liberdade para interpretar.
Aliás, como decorre o seu processo artístico?
No meu processo artístico, primeiramente gosto de analisar o que é pretendido. Pretendo investigar com todo o cuidado e ver o que já foi feito sobre o assunto. Faço uma grande recolha de imagens de todos os estilos sobre o tema. De seguida, procuro misturar toda a informação recolhida. Nesta fase, acontece uma grande quantidade de esboços, imagens e desenhos. Faço registos gráficos de todas as ideias, estudo as melhores hipóteses e aglomero as últimas escolhas numa só imagem. Procuro, então, diferentes composições visuais. Costumo também recorrer a opiniões exteriores. Por fim, vem a fase da limpeza: eliminar e simplificar até encontrar um equilíbrio que me satisfaça a mim e ao cliente, se for este o caso. Quando o trabalho já está quase pronto, faço testes de cor. Muitos testes de cor. Exploro formas positivas e negativas, cheios e vazios, para criar mais dinâmica visual. Seleciono três ou quatro [versões] e envio para o cliente escolher. Decidida a cor e a forma final, melhoro os detalhes e dou os últimos retoques.
Explora uma diversidade de media, dos postais às roupas e até já ilustrou sapatilhas. O seu processo artístico difere em função do medium?
Sim, mas, sobretudo, difere em função do objetivo pretendido. Por vezes, faz sentido desenhar com linhas através do bordado. Noutros casos, faz sentido o desenho simples e limpo ou os padrões e as texturas. Tudo depende do objetivo, produto pretendido e da mensagem que queremos passar.
E porque aposta nessa diversidade de media?
Gosto de explorar diferentes técnicas, diferentes suportes e adoro fazer colaborações artísticas com outros campos nos quais não sei trabalhar: cerâmica, moda, joalharia, têxtil, design de produto. Gosto de ver as minhas ideias aplicadas não apenas sobre papel, mas em qualquer outro meio.
Fez uma ilustração para umas sapatilhas, no centenário da Converse. Escolheu encher as sapatilhas de personagens de boca aberta, a receber e enviar mensagens. Como foi levar a cabo esse projeto?
Este projeto foi um convite da Converse, inserido no programa Product Red em que parte dos lucros são utilizados para custear investigação para a cura da malária e da sida. Foi um projeto pro bono em que 100 artistas foram convidados a ilustrar um sapato All Star. Mais uma vez, explorei a ideia de comunicação e colaboração. Uma coisa não vem sem a outra. A Converse enviou a todos os convidados um sapato branco e uma série de planos em papel que serviam de base. Foi um projeto que me deu muito prazer.
“Gosto de misturar a natureza com outros universos. Há quem diga que costumo encontrar a beleza nas coisas mais improváveis.”
Ana Ventura
O que a inspira enquanto artista?
Gosto de misturar a natureza com outros universos. Dou muita importância aos detalhes e aos pormenores de tudo o que me rodeia e simplifico o todo. Há quem diga que costumo encontrar a beleza nas coisas mais improváveis. Gosto de me perder num monte de imagens, fotografias, livros ilustrados. Dou mais atenção às imagens do que às palavras.
Que conselho daria aos artistas que ainda estão à procura da sua própria voz criativa?
Que nunca desistam, mesmo quando tudo parece ser difícil e complicado. Que procurem o que ainda não foi feito, que explorem em partilha com outros, porque duas cabeças pensam sempre melhor do que uma. Que viagem e explorem o que acontece fora da sua zona de conforto. Parcerias, workshops, partilha com o outro no local.
E, numa abordagem mais prática, que conselhos daria a quem queira ser ilustrador?
Um conselho importante é a relação com os seus clientes. É muito comum os criadores de conteúdos artísticos não darem relevo aos contratos, às premissas do trabalho contratado, ao tempo necessário para desenvolver um bom trabalho e, por fim, aos direitos de autor. Esta parte administrativa e de gestão é muito frequentemente negligenciada pelos artistas, mas é fundamental como em qualquer outra profissão.
Como descreveria a sua linguagem artística, o seu trabalho?
Uma linguagem poética, simples e delicada. Pretendo sempre dizer muito com o mínimo possível, e isto parece simples, mas não o é. A frase less is more está sempre presente.
Também criou uma marca de moda inspirada nos azulejos portugueses. O slogan é “a herança que se pode vestir”. A cultura portuguesa influencia o seu trabalho? De que modo?
Esse projeto surgiu quando ainda vivia em Portugal. Sempre gostei dos azulejos típicos que revestem muitos dos edifícios em Portugal e, como forma de lhes prestar homenagem, pensei que seria interessante usar esses padrões e fazer roupa. Despir os edifícios e vestir as pessoas com esses mesmos padrões. Estes padrões dos azulejos são um ícone da nossa arquitetura e uma imagem usada em todo o mundo sempre que Portugal é promovido. A cultura portuguesa é a cultura com que cresci e onde fui educada. É impossível não ser influenciada por ela. Faz parte de mim.
Venceu o Prémio Nacional de Ilustração. Que importância atribui a essa distinção?
São duas conquistas muito importantes, a pessoal e a profissional. Pessoalmente, foi o reconhecimento e a confirmação de que fiz a escolha certa e de que, apesar de todas as mudanças, esforços, ilusões e desilusões, o resultado foi positivo. Do ponto de vista profissional, abriu e continua a abrir muitas portas. Tenho tido mais convites para novos trabalhos e desafios, entrevistas e novos contactos. Na área das artes, ter projeção no mercado é fundamental.
E já ponderou regressar ao país? Porquê? Há apoio suficiente à ilustração em Portugal?
Não. De certa maneira, nunca deixei o meu país, porque continuo a trabalhar para Portugal. Vou muitas vezes a Portugal para desenvolver projetos. Quando me mudei para Antuérpia, não fui sozinha, levei a minha família comigo. Regressar teria de ser em conjunto e, por agora, ninguém tem vontade de o fazer. A vida, na Bélgica, tem benefícios que ainda não se encontram em Portugal. Estamos melhor aqui e, hoje em dia, com as tecnologias é muito fácil manter contacto com a família e amigos, e manter contactos profissionais com Portugal. Continuo a trabalhar com empresas e editoras em Portugal e noutros países. Tenho notado que a ilustração assume um papel cada vez mais importante em Portugal em diversas áreas: livros, design, editorial. Nota-se uma grande aposta na qualidade da imagem.
Voltando ao início de tudo, como é que a ilustração entrou na sua vida? Sempre soube que seria ilustradora?
Sempre soube que seria artista. A ilustração apareceu mais tarde. Desde pequena que sempre gostei de desenhar e pintar. Entrei para a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, para a área de Pintura, em 1994, mas foi em 1999, com o Erasmus na École Superior LA CAMBRE, em Bruxelas, que a vontade de ilustrar livros nasceu. Não me considero apenas ilustradora. Sou artista visual, designer, sou uma pessoa criativa que gosta de transformar ideias em acontecimentos visuais e sensoriais.
Do passado para o futuro, o que se segue no seu percurso? Que metas quer ainda conquistar?
Muitas. Novos livros e colaborações estão a caminho. Tenho projetos artísticos para concretizar, mas, de momento, o que mais quero poder fazer são residências artísticas, em especial uma residência artista algures no Japão para desenvolver um projeto pessoal ligado à filosofia japonesa wabi-sabi.