Se o corpo já está fisicamente de regresso ao trabalho, a cabeça e o coração estão ainda em negação. Ficaram presos no meio de agosto, nos dias quentes de verão, passados num pequeno paraíso chamado Coura. Couraíso, que a língua é bela porque se renova. E move.
Paredes de Coura é um pequeno paraíso por várias razões. Pela forma como o festival surgiu, há mais de trinta anos, pelas mãos de quatro amigos que queriam dar vida a uma território fora das tradicionais rotas turísticas e culturais de um país que vive, infelizmente, mais do primeiro que do segundo. Pelo auditório natural, um palco imerso na natureza, num declive democrático e equitativo, que transforma o público numa parte fundamental do espetáculo. Pelo ambiente, parco em merchandising, outfits de ocasião e a mistura permanente de público e artistas. Por uma audiência que insiste, ano após ano, na peregrinação ao Taboão e teimosamente reclama a vontade de se entregar ao prazer puramente hedonista de apreciar música.
No Couraíso não é difícil criar-se uma ligação com o público. Só é preciso, na verdade, uma coisa: que os artistas mostrem que querem tanto estar ali quanto o público. Com mais ou menos palavras, arranhadas em português ou na língua de origem, através de riffs elétricos de guitarras e batidas fortes na bateria, ou de sintetizadores e mesas de mistura, é a vontade que conta. A certeza passada para o público de que não há outro sítio no mundo onde estariam, mesmo que pudessem.
Foi isso que nos trouxe Dino d’Santiago. Que já é, para todos, o Dino. De Portugal. Eram 17:30, hora de Coura, debaixo de um sol abrasador. Um sol que nem em Cabo Verde. Disse ele, o Dino, não eu. O auditório procurava as sombras, aquelas mesmo junto ao palco, e as outras, poucas, que se estendiam pela encosta acima. Muitos corpos sentados, colados ao chão pelo calor e pela hora de matinée. Corpos que se levantaram quase instantaneamente, como se impulsionados pela mola invisível que só a música tem o poder de exercer.
E, por entre as – talvez – críticas veladas, que eu acompanho, sobre a hora da atuação – “vamos fechar os olhos e agora é meia-noite” – Dino mostrou que a sua arte já transcende, já transcendia, as horas a que subiu ao palco. Porque a seu pedido, os muitos milhares de pessoas que ali estavam dançaram pela noite dentro, totalmente entregues aos ritmos da sua música. É aqui que começam as lições de Dino. Cabo-verdiana não chega para descrever a sua música, mesmo que ela o seja no seu âmago. É também da “Quarteira que me viu nascer”. De um Portugal que teima em glorificar o seu passado de “Descobertas” – com muitas aspas – ao mesmo tempo que tenta ignorar que séculos de colonialismo nos cravaram na(s) identidade(s) nacional(is) a multiplicidade étnica que nos habituámos a explorar – nas diferentes dimensões da escravatura, porque não nos esqueçamos “que o cuidado não pago é negócio”, como há uns dias pontapeava a Capicua no nosso estômago.
Que a sua música é arte plena, multisensorial, e que é possível – é até necessário – defender bandeiras, erguendo-as bem alto. Que os passados que enriquecem a sua música seriam, inevitavelmente, luta pelas vozes que não se conseguem fazer ouvir. É possível – é mesmo necessário – que se saia da indiferença e do conforto da apolítica e se grite – se cante – bem alto pela justiça e os direitos humanos na Palestina, no Congo, na Venezuela. Fê-lo da forma que melhor sabe fazer. Existindo, sendo. De pleno direito. Bem alto, para todos aqueles que barafustam – e legislam – sobre nacionalidade e identidade nacional. O Dino é d’Santiago. E também é nosso. Vai dar tudo certo.