Teste de som: “Maria do Rosário Pedreira, sou editora, trabalho na Leya, faço literatura portuguesa, sobretudo romance, sessenta anos. Está bom?” O som sim, mas parece-me que a concretude dos dados biográficos diminuem o percurso. Vejo-a como uma mulher, portuguesa, escritora em várias frentes, com várias barragens, poeta do amor, intermitente mas certa. E mesmo que não se sinta extraordinária, agarrada à linha imaginária das Portuguesas Extraordinárias – Mulheres de coragem à frente do seu tempo (Booksmile, 2018) que Maria do Rosário reuniu em livro, eu, que ando nesta vida há curtos anos, tenho alguma dificuldade em vê-la de outra maneira. Como tal, já que começámos na dúvida sobre o adjetivo adequado, que a mulher francesa das palavras Marguerite Duras encerre a discussão; nem Maria do Rosário Pedreira nem eu nos detivemos a pensar na extraordinariedade de Duras. Porque é essa a premissa da escolha, como se fosse o seu nome do meio.
As duas obras – Barragem contra o Pacífico e O Amante – estão separadas por trinta e quatro anos, um prenúncio deixado pelo tamanho do maior oceano entre os cinco, mesmo não sendo assim tão calmo como Fernão de Magalhães terá julgado. Nesta obra, sobretudo. Barragem contra o Pacífico foi editado em 1950 e retrata a história de uma mãe, outrora professora em França, que embarca com o marido para uma colónia francesa, a Indochina, e onde, já com dois filhos nascidos, se vê em trabalhos e em francas dificuldades financeiras após ter enviuvado. A força do mar e a terra infértil não parecem ser suficientes para destruir esta mulher, envolta numa energia e esperança loucas de erguer “canas-da-índia vermelhas sobre a rampa que cercava o aterro” (p. 16). Mas é uma mãe ambígua, que comporta o amor e o ódio por Suzane e Joseph nas palmas das mãos, mesmo quando faz tudo pelos dois. Que é o que se encontra em O Amante, uma mãe com três filhos, o amor, o ódio, a morte, a compreensão, o interesse, de novo o dinheiro, a falta dele, a dor excruciante de uma família francesa numa colónia francesa, aquela Indochina, e, claro, a relação amorosa, furtiva, sedutora da filha de quinze anos e meio com um chinês que, não tendo matado, também não salvou.
“Essas duas histórias, na minha cabeça, ficaram sempre ligadas. Eu, se calhar, nunca tinha lido até aos vinte e tal anos um livro em que a maldade pudesse ser tão bonita, em que ser mau, ser ruim, ser tremendo pudesse ter aquela subtileza, aquela maneira de transmitir. Foi isto tudo que me ensinou que havia outras coisas para ler, o que era o estilo, no fundo, e que o estilo era o mais importante na literatura, que era fundamental ter um estilo para ser diferente, para poder vingar. É isso que eu mais recordo: ter aprendido que havia várias maneiras de ler”. Também há várias maneiras de ler Maria do Rosário Pedreira: encontramo-la num romance (Alguns homens, duas mulheres e eu, 1993), que Maria Teresa Horta à data do seu lançamento entendeu que tinha referências de Marguerite Duras; em obras de literatura juvenil, como a série Clube das Chaves, escrito a quatro mãos com Maria Teresa Gonzalez; em letras de canções, levadas aos quatro ventos por Carlos do Carmo, António Zambujo, Ana Moura ou Salvador Sobral; e na poesia. A poesia sobre o amor, tema central, que mais não é do que sobre a vida.
Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiram antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.
Uma noite outro copo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.
Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.
Maria do Rosário Pedreira,
em A Casa e o Cheiro dos Livros (1996),
retirado de Poesia Reunida (2012).
Em O Amante, o amante chinês da rapariga branca de quinze anos e meio tinha várias doses de amor; era dominador, dominado, também era pai, apaixonado, rendido, era triste. E eu não sei se aqueles que o vestiram antes e depois dela souberam nele o verdadeiro calor. “Talvez ela soubesse da existência da rapariga branca. Tinha criadas nativas de Sadec que conheciam a história e que deviam ter falado. Ela não devia ignorar o seu desgosto. Deveriam ser da mesma idade, dezasseis anos. Será que nessa mesma noite ela viu o seu esposo a chorar? E, vendo-o, tê-lo-ia consolado? Podia uma menina de dezasseis anos, uma noiva chinesa dos anos trinta, sem cometer uma inconveniência, consolar aquele género de tristeza adúltera de que era ela a vítima? Quem sabe? Talvez se enganasse, talvez tivesse chorado com ele, sem uma palavra, o resto da noite. E depois vir o amor, depois do choro./ Ela, rapariga branca, nunca soube nada desses acontecimentos” (p. 177 e 178). Maria do Rosário Pedreira não se revê nas personagens das duas obras Durasianas que escolheu, mas as maiores dores que o amor nos oferece são do mundo, acabamos por lá chegar.
Barragem contra o Pacífico e O Amante são de autoficção, em que há uma exposição clara da vida de Marguerite Duras, apesar de esta clareza não ser denunciada com evidência. Parece estranho, e é mesmo. Está lá e não está, ora texto, ora subtexto. Et voilá, juntei a palavra de uma à palavra doutra. A vida de Maria do Rosário Pedreira também é texto e subtexto. “A minha vida está na minha poesia, mesmo quando a minha poesia conta histórias de outras pessoas. Aquilo que está na minha poesia sempre subjacente é aquilo que eu sinto. Depois o contorno que eu posso dar a esse sentimento é que pode ser uma narrativa de outra pessoa”. E nesta narrativa que cria, Maria do Rosário encontra um estilo filtrado do que lê, onde Marguerite também tem espaço. “A nossa escrita é sempre bafejada por tudo o que lemos, nós somos um resultado das nossas leituras, e portanto eu acho que é possível que nos meus poemas haja coisas que têm que ver com essa infelicidade durasiana, com essa coisa que é estar triste, mas não se deixar abater. Uma coisa que a minha poesia tem é, por exemplo, o triste ser bom, apesar de tudo. Não é uma coisa de masoquismo, nós temos saudades das coisas porque elas foram boas e eu acho que é muito mais importante ter saudades do que foi bom do que não ter vivido nada”.
Nunca foi apanhada em Flagrante, com as calças na mão, que a sua discrição não lhe permite. Deixou esse número, e essas palavras, para o António Zambujo cantar (disco Quinto, 2012), a quem eu agradeço por nos ter posto em contacto direto. Saravá, António José, pelo bom “pedaço de mau caminho”. Mas Maria do Rosário ergueu as suas barragens, preparou-se para os falsos mares pacíficos, algo que tanto a protegeu como a deixou literalmente mais descoberta. Definitivamente, segura. “Uma delas tem que ver com a minha frontalidade, à frente de tudo. Eu não sou capaz de fingir. Portanto, zanguei-me com imensas pessoas ao longo da vida e não as recuperei. Outra coisa que eu tenho, que é talvez uma barreira para o mundo, mas que essa é que me faz levantar todos os dias da cama e viver, é deitar-me bem com a minha consciência. Não me consigo vender e, portanto, estou sempre em conflito. Às vezes, não faço, se calhar, o esforço de me adaptar, mas eu acho que temos de dormir tranquilos, todos os dias a saber que fizemos aquilo que achávamos que estava certo”. Certo.
Perante duas mulheres que se expõem e que poderão estar longe de entender o impacto que o seu salto escrito tem em nós, porque não há outra hipótese que não fazê-lo, exponho-me na vertigem que foi este encontro a três, o meu com elas. A mãe é uma figura fulcral nestes dois livros de Duras e, como se não bastasse a dureza e a beleza em paralelo, que tanto desconsertam quanto devolvem o cordão umbilical, chegam-me as várias mães da poesia de Maria do Rosário. A sua chegada trouxe a minha mãe escancarada nas palavras que um dia lhe podia ter escrito sem ficção e das quais a terei tentado proteger. Por tanto que a amo. E que, sem vergonha e cheia dela, deixo aqui declarado. Agora, com o rosto em brasa que não do calor que assola Lisboa, eu quero ir-me embora. A voz de Maria do Rosário Pedreira suporta a vontade.
Este poema que se anuncia com o verso “mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada” (O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001) valeu uma jóia, foi sua inspiração, jóia essa que esta mulher portuguesa extraordinária [perdoe-me, Maria do Rosário!] comprou por carinho e por lembrança. Também reza a história, contada por uma amiga da sua mãe, que o seu poema Última Ceia (A Casa e o Cheiro dos Livros, 1996) já foi lido numa homilia, em plena igreja. É realmente caso para dizer, irmãos e irmãs, o que o poema diz: “Trouxe as palavras e colocou-as sobre a mesa”. Maria do Rosário Pedreira, num aproximado exercício terapêutico, expele o amor vivido e o amor ferido sobre a mesa. “Acho que foi sempre assim: pondo cá fora aquilo que me estava a fazer mal. Esse foi sempre, no fundo, um objetivo subjacente à minha escrita de poesia. Algo que me está a fazer mal e que precisa de vir cá para fora. Por isso é que eu escrevo tão pouco. Ainda bem”.
A obra de Marguerite Duras é farta, é (re)conhecida, valeu-lhe prémios, um deles – o Goncourt – justamente com a obra O Amante, mas não voltará. No ano em que Maria do Rosário Pedreira lançava o seu primeiro livro, 1996, Marguerite Duras iniciava outra marcha para o lugar que alguns desconhecem. Também Maria do Rosário Pedreira tem obra farta na profundidade, que é (re)conhecida, que lhe valeu prémios, um deles – o Prémio Literário Fundação Inês de Castro – justamente com a obra Poesia Reunida, e pondera não voltar. “Perdoem-me os que/ ainda esperam por mim. Não sei se volto”. Não sei eu agora se descanse, porque deixou de haver angústia para bordar a sua mesa; ou se desespere, porque afinal a nossa solidão fica mais bem acompanhada quando Maria do Rosário escreve e nos deixa ver o quê. Seja em livro, seja em disco, com ilustração ou com o justo desenho das letras, estamos deste lado, aguardamo-la, como se não houvesse nenhum nome depois.
Onde quer que o encontres –
escrito, rasgado, ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo – é teu,
para sempre, o meu nome.
Maria do Rosário Pedreira,
em Nenhum Nome Depois (2004).