uma das razões que mais me apaixona na tatuagem é o sentido de compromisso a que ela obriga. numa sociedade descartável, guiada por relações voláteis que raramente subscrevem o “e viveram felizes para sempre”, preenchida por currículos profissionais com rotatividade considerável, vive cada vez mais uma camada da população sem medo de dizer “sim” à tatuagem. tatuar é para a vida. e por mais que existam tatuadores que não se importem de remendar o arrependimento de um desenho por impulso em formato de cover up e se reproduzam as clínicas de remoção de tatuagens, quem escolhe ser tatuado sabe que o momento em que a agulha penetra a tinta na pele, é um ponto sem retorno. é essa consciência de não haver volta a dar que gera adrenalina, o zumbido da máquina de tatuar a assinar a certeza de que aquele momento vai mesmo acontecer, a imprevisibilidade do resultado final, o receio da (des)ilusão.
se a tatuagem começou por ser uma cultura underground a ocidente, dizendo apenas respeito a criminosos e a marinheiros, hoje é uma cultura totalmente transversal. no meu estúdio, já passou todo o tipo de pessoas: filhos, pais e avós, homens e mulheres com profissões criativas e liberais, de atendimento ao público ou institucionais. desenhei em braços tatuados e em pele virgem, fiz tatuagens com significado e outras só-porque-sim, umas escondidas e outras orgulhosamente expostas, desenhei plantas, animais e flores, avós e netos, esboços de criança, homenageei escritores. perdi a conta às histórias que escrevi na pele, aos sentimentos e emoções que traduzi e eternizei, às feridas que a toque de agulha ajudei a cicatrizar. por vezes a tatuagem dói, mas cura. alivia. tira peso da alma e deixa-nos mais leves.
embora o número de pessoas tatuadas seja cada vez maior, o facto é que existe diferença entre o impacto que causa um corpo coberto por tatuagens e um corpo em que esta arte se esconde, reservada a zonas que o olhar curioso não deixa adivinhar. também o tipo de tatuagem, o desenho e a mensagem, podem causar um impacto maior ou menor, respetivamente. ainda que esta cultura esteja cada vez mais enraizada na sociedade moderna, a verdade é que há muito a moldar numa mentalidade que continua em construção. e não se trata apenas de uma questão de faixa etária. novos e velhos persistem em alimentar um estigma que poderia ter caído no esquecimento e validam-no, tanto no seu círculo social, quanto a nível laboral, colocando obstáculos a quem tem tatuagens. expostas, sublinham, corroborando com a ideia cristã que defendia que a tatuagem era uma forma de desfigurar aquilo que foi feito à imagem de deus.
com efeito, segundo a bbc, a university of northern iowa realizou um estudo em 2017 com questões relativas a tatuagens no local de trabalho. para tal analisaram dois grupos, um composto por jovens de 19 anos, o outro por homens e mulheres de 42. os dois grupos concordaram que as pessoas com tatuagens teriam valores inferiores no que toca a honestidade, confiança, sucesso e inteligência. este estudo veio comprovar que independentemente da idade, do acesso à informação ou da expansão cultural, o estigma mantém-se, perpetuando este preconceito tão enraizado na nossa cultura, cegando-nos.
recordo-me de um spot comercial em que uma adolescente entrava na sala de estar onde estavam os seus pais, sentados no sofá, e apresentava-lhes o namorado. ao lado dela surgia um rapaz com tatuagens e piercings e o pai olhava-o com uma expressão que oscilava entre o assustado e o reprovador. este anúncio não passou na televisão há muito tempo e transparece o preconceito que continua a existir, aqui sobre a forma de humor. o que demonstra é claro: o estereótipo de que um jovem tatuado é sinónimo de uma má influência, de falta de responsabilidade e de estrutura. por outro lado, se o rapaz tivesse uma aparência clean, um aspeto semelhante ao do pai, este certamente não hesitaria em, pelo menos, tentar conhecê-lo antes de partir para julgamentos.
não obstante o preconceito ligado a esta cultura underground, ela representa cada vez mais um fashion statement, uma extensão da personalidade de artistas, futebolistas, atores, chefs, músicos, modelos e até escritores, pessoas que inspiram outras e que ditam a moda.
ainda assim, há quem lhe torça o nariz e o faça também às mulheres tatuadas. hoje temos a liberdade – na cultura ocidental – de poder gravar o que quisermos na pele. o que começou por ser impensável para uma mulher, tornou-se um ato de rebeldia e de ativismo e é, atualmente, uma simples demonstração de amor próprio. a mulher tatua-se numa homenagem a si mesma, uma confirmação da sua independência. tatuamo-nos como forma de embelezamento, ostentando a pele como um pedaço de arte.
a tatuagem é a forma mais romântica de self love. é uma declaração de amor para a vida toda, é agir guiado pelo coração sobre pena de ser visitado pelo arrependimento. quem não tem medo de se arrepender quando entrega o coração, quando arrisca por amor? por a tatuagem ser poesia, escrevo-a num traço fino e delicado. é assim que a sinto. pegadas de tinta preta a ganhar asas na direção das nuvens, espessura de algodão doce, voo rasteiro ao sol.
sou um livro de contos que não ocupa uma estante. dispo-me parágrafo a parágrafo, enquanto exponho as linhas do meu corpo e deixo lerem-me em texto com ilustração, à sombra do calor de agosto. chamem-nos incultos e marginais por termos desenhos no corpo, por atingirmos com a agulha a sociedade que se recusa a mudar. vivemos à margem da perceção superficial, alimentando-nos do que os olhos não veem, mas sentem. somos artistas de rua transportando as telas na pele. somos a arte que não se separa do seu criador. somos a peça que morre com quem a pensou.
-Sobre Sofia Dinis-
Sofia Dinis é tatuadora, fotógrafa, designer, ilustradora, criadora de conteúdos e muito mais. Sofia Dinis é artista.
Nasceu e cresceu em Albufeira, mas foi em Lisboa que floresceu. Mudou-se para a capital para tirar a licenciatura em design de comunicação, no IADE, e foi nesta cidade que construiu todos os seus projetos. Teve um espaço de estética e deu formação na área, trabalhou como fotógrafa e designer e abraçou a tatuagem como hobby.
Em 2017, viu-se obrigada a repensar o seu percurso profissional quando fechou o seu espaço de estética e design e regressou a Albufeira. No meio do caos, decidiu que queria ser tatuadora a tempo inteiro e a 15 de fevereiro de 2018 regressou a Lisboa. Dava assim o primeiro passo para se tornar a tatuadora que toda a gente conhece.
O projeto SHE IS ART nasceu em pleno coração de Lisboa, numa casa de Air BnB de uma amiga. Durante duas semanas, Sofia tatuou 2 amigos e fotografou os trabalhos de forma a parecer que tinha um extenso portfólio. Desenhou o seu Instagram, desenvolveu a marca e, duas semanas depois, começou a receber vários pedidos para tatuar, não tendo parado desde então. Em menos de um ano, tinha mais de 50 mil seguidores no Instagram e uma lista de espera de 8 meses.
A marca SHE IS ART não parou de crescer ao longo destes 3 anos. Neste momento, é muito mais do que um projeto de tatuagens, é um projeto artístico. O ano passado, Sofia lançou o seu primeiro produto, o Diário 2021. Este ano, tem já planeados novos projetos para apresentar ao público. Afinal, criar faz parte da sua essência.