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“A vida como um laboratório de sonhos” em Nets of Hyphae, de Diana Policarpo

Nos cerca de 60 metros de comprimento da Galeria Municipal do Porto há vidas humanas…

Texto de Carolina Franco

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Nos cerca de 60 metros de comprimento da Galeria Municipal do Porto há vidas humanas e não humanas a ocupar espaços e a lembrar que são, e estão, vivas. Projetadas em ecrãs, animadas ou estáticas, em vídeo, desenhadas e em som. O universo a meia luz de Diana Policarpo, com curadoria de Stefanie Hessler, é, desde o primeiro esboço, um ato político e de resistência. Mostra o invisível, o recalcado, o que em tempos foi apagado, e dá-nos luzes sobre o que vivemos hoje. A exposição “Nets of Hyphae” é um epítome de regressos: o regresso de Diana a Portugal, após uns anos pelo Reino Unido, o regresso à pesquisa sobre fungos, o regresso de Paula Pin, com quem colaborou, à Galiza. O processo de criação “foi uma loucura”, diz Diana, mas o resultado é uma completa imersão no universo tecido pela alquimia da artista.

Encontrámo-nos com Diana Policarpo por videochamada no último dia de 2020. Um dia antes, enquanto o guião era preparado, a Argentina tornava legal a interrupção voluntária da gravidez; um dia depois da nossa conversa, no primeiríssimo dia de 2021, a Coreia do Sul deu o mesmo passo. Há coincidências curiosas. “Nets of Hyphae” não é sobre o aborto, mas também o é. É, sobretudo, sobre ferramentas de controlo, que capitalizam a saúde e ceifam a liberdade. É "a vida como um laboratório de sonhos".

Até chegar a esta exposição, que “esteve em constante mutação”, a pesquisa de Diana foi desaguando em múltiplos temas que partiram dos fungos, mas que trouxeram novas possibilidades e questionamentos. Para entender a teia de pensamentos, faz sentido viajar até à residência artística que Diana fez na Índia, há uns anos, cujo foco se situava na “forma como outros seres ou outras realidades do subsolo subsistem, e qual é a interação humana com outras espécies”. “Estar na Índia e no Nepal possibilitou continuar a colher uma forma de conhecimento que vinha precisamente desta ligação às plantas e a medicinas alternativas. Também já há uma história de interesse por esse conhecimento na minha família, e foi uma coisa pela qual sempre me interessei”, conta a artista.

Existe, na obra de Diana Policarpo, essa atenção ao pessoal — que é político. Na Índia, acabou por estudar “um tipo de extração de um recurso natural” que percebeu que estava a ser utilizado em tratamentos para doenças como o cancro. Durante a viagem, percebeu que o cordyceps, o tipo de fungo que decidiu acompanhar, era extraído por comunidades nómadas cuja missão é, uma vez por ano, ir colhê-lo a uma “área muito particular” das montanhas. Aí, Diana percebeu, também, que é um trabalho essencial para a sustentabilidade económica local, cujo valor entra em confronto com as “condições miseráveis” a que os trabalhadores são sujeitos. Sobretudo mulheres.

“Percebi, através de entrevistas e trabalho de campo, que havia uma implicação deste recurso, sendo uma coisa tão valiosa, que tinha uma relação direta com os corpos das trabalhadoras. Queria perceber como é que uma planta tem um valor que é, de alguma forma, sagrado, e comecei a perceber também que havia trabalhadoras que faziam trabalho do sexo nestes campos, e o fungo era usado como moeda de troca”, conta.

À medida que ia tropeçando em novos campos de investigação, que partiam dos fungos, mas não os tinham como objetivo final, iam surgindo ideias para novas instalações e parcerias. O novelo começou a desenrolar-se e o fim (ou o começo?) está ainda longe de se ver. Na exposição das Galerias Municipais, o desafio prendeu-se sobretudo com as novas formas de trabalhar a que a pandemia obrigou. “Acabou por ser um projeto com várias colaborações, que foram muito ricas, e que eu acho que ainda estão a ferver. Esta necessidade de trabalharmos uns com os outros, também pelo facto de estarmos sozinhos em casa, surgiu quase como necessidade. A forma de comunicar e trabalhar, para nós, foi totalmente nova — tudo pelo computador”, partilha.  

Foi através do computador que Stefanie Hessler, a curadora da exposição que é também a diretora da Kunsthall Trondheim, na Noruega, pensou a curadoria da exposição e a agilizou com Diana. Em fevereiro, Diana e Stefanie visitaram a galeria juntas e tiveram a oportunidade de trocar ideias; em março, Stefanie recebeu Diana e Guilherme Blanc, o diretor da Galeria Municipal do Porto, em Trondheim, para onde "Nets of Hyphae" acabará por viajar. “Acho que é essencial que, quando possível, continue a haver a experiência física dos espaços e, claro, da arte. Felizmente, temos muitas ferramentas de comunicação disponíveis para que possamos, quando necessário, trabalhar online. De certa forma, é um avanço positivo, mas é importante não esquecer que nem toda a gente tem acesso a essas ferramentas. A Diana e eu tivemos muitas chamadas online, inclusive com a equipa fantástica do Porto. Foi crucial ter tanto tempo e ter a possibilidade de ir realmente a fundo na pesquisa e na nossa colaboração”, acabou por partilhar Stefanie com o Gerador.

“De repente, estava a montar a exposição com a Stefanie através do Zoom”, conta a Diana entre risos. Foi mais fácil, porque os caminhos de ambas se alinham — e, quando assim é, as dificuldades transformam-se em soluções.

Paula Pin, Stefanie Hessler, Anna Tsing. O conhecimento partilhado, em rede

Stefanie e Diana já tinham ouvido falar uma da outra, e acabaram por se conhecer há uns anos, no Porto. Foi um daqueles casos em que alguém conhecido, em comum, diz — “tens de conhecer esta pessoa” e, quando o encontro se dá, tudo bate certo. Na altura, Stefanie tinha visitado o Porto por causa da exposição de Joan Jonas em Serralves, com quem trabalhou por diversas vezes, e foi apresentada a Diana pela curadora Margarida Mendes. “Começámos a falar e, eventualmente, o Guilherme Blanc, diretor da Galeria Municipal do Porto, convidou-me para fazer a curadoria da exposição da Diana. Uma vez que o trabalho dela está muito alinhado com a minha pesquisa, propus-lhes, à Diana e ao Guilherme, trazer a exposição à Kunsthall Trondheim também, a instituição que estou a gerir na Noruega desde 2019”, conta Hessler.

Ao longo dos últimos anos, a curadora tem-se debruçado nos “sistemas – ecológicos e tecnológicos, e as suas interseções”. “Pensei sobre cogumelos, tanto a trabalhar com Carsten Höller e a ler Anna Tsing, entre outros. A Diana convidou-me generosamente para a investigação dela e eu aprendi muito, enquanto também fui contribuindo com algumas ideias. Descobri, por exemplo, que o cogumelo do ergot, que este novo trabalho explora, teve um papel nos julgamentos de bruxas na Noruega e entre as comunidades Sámi. No geral, o nosso processo colaborativo tem sido muito orgânico”.

Foi, mais ou menos, assim que Diana Policarpo conheceu, também, Paula Pin, investigadora e biohacker espanhola, com quem colaborou para um dos vídeos da exposição — e cujo trabalho rima, também, com a obra de Donna Haraway, uma das referências de Diana. Juntas, olharam a fundo para o cogumelo de ergot e (re)pensaram a ausência de fronteiras entre o Norte de Portugal e a Galiza. Encontraram-se já com a pandemia como pano de fundo, na carrinha de Paula, para desbravar o contexto deste fungo.

“A Paula foi esta artista e biohacker que eu conheci, porque tinha um coletivo em Calafou, nos arredores de Barcelona, que faziam uma prática de ginecologia radical. Elas faziam workshops em que te ensinavam a construir um microscópio para tu analisares o teu próprio corpo. Outra parte interessante do trabalho que elas faziam tem que ver com um processo de descolonização do pensamento e dos corpos. Depois, percebi que a Paula está muito interessada em olhar para plantas específicas que existem na Galiza. A nossa colaboração uniu-nos em dois pontos: para já, ambas voltámos a casa, às regiões onde crescemos, e, depois, percebemos que tipo de pessoas, hoje em dia, também estão a procurar novas formas de viver e de fazer. O vídeo que fiz com a Paula é muito focado no trabalho de nós as duas seguirmos um protocolo para transformar o ergot de forma a não ser nocivo para o ser humano”, explica Diana.

O fungo de que Diana fala, e que estudou com Paula e Stefanie, foi em tempos utilizado como substância abortiva, mas teve também efeitos em contaminações da população, quando misturado acidentalmente com cereais com que o pão era feito. Para convocar o simbolismo do ergotismo, Diana digitalizou uma pintura de Bosch, cedida pelo Museu Nacional de Arte Antiga, da qual resultou um ensaio visual. Este confronto entre o conhecimento ancestral e práticas antigas com os processos altamente digitais de Diana são uma constante da exposição que, indiretamente, nos mostra que a ciência e outros tipos de conhecimento, por vezes, considerado menos válido podem conviver.

“Eu venho de escultura, portanto o trabalho com a matéria, com os materiais, com o espaço é muito importante; mas, de repente, há esse diluir da materialidade em qualquer coisa mais líquida, em algo que transborda de um sítio para o outro. E eu acho que a digitalização também nos permite isso, porque, de repente, estamos a ler um PDF, a seguir vamos ouvir o que gravámos, depois editar, e essa combinação de coisas, que é também o meu processo de trabalho, acaba por ser exposta na ideia da exposição. Entendo que para algumas pessoas possa ser muita coisa, mas as instalações podem viver disso, e ativar o meu trabalho nesse sentido é importantíssimo.”

“Não é a arte que tem o poder de mudar, são as pessoas”

Na exposição “Nets f Hyphae”, onde fervilham questões e possíveis relações entre acontecimentos, é certo que se sairá da visita com novas referências – de Silvia Federici a Dona Harway e Anna Tsing —, mas são mais as perguntas do que as respostas. É Diana quem o garante. “Estou mais interessada em trazer questões para o trabalho e deixar essas questões comigo e com os outros, do que tentar dar respostas. Eu não posso dar respostas. O mais importante, para mim, enquanto artista, é iniciar conversações”, diz ao Gerador.

Quando perguntámos a Diana se existe uma expectativa quanto ao que fica no espectador, responde que “não é a arte que tem o poder de mudar, são as pessoas”. Se a arte for fazendo um levantamento do que acontece na vida, íntima e social, talvez se gere a ignição da mudança. Uma vez que, “em média, as pessoas demoram segundos a olhar para uma obra” numa exposição, o desafio de chamar à atenção é grande; e é para contrariar essa tendência que Diana se interessa pela “instalação total”, que abriga e inquieta.

Em “Nets of Hyphae” convoca a descolonização do conhecimento, a consciência de que o conhecimento assenta em estudos e ideias de homens, sobretudo brancos. Esse olhar faz a diferença na forma como o mundo, a ciência e o autoconhecimento se interligam, e o que representam para cada corpo, de cada indivíduo. E “há muitas ressonâncias hoje, de práticas do passado”. O olhar de Diana é, também, uma forma de convocar e dar a ver outras narrativas num mundo artístico que nem sempre é tão questionado assim. E é por isso que Stefanie refere que “trabalhos como o da Diana são importantes, porque revisitam histórias marginalizadas e oferecem diferentes perspetivas sobre o que foi e o que pode ser.”

O passado foi muita coisa, e o futuro poderá ser também. “Nets of Hyphae” espelha que as possibilidades são diversas e parecem nunca ter fim.

Podes saber mais sobre esta exposição, patente na Galeria Municipal do Porto até ao dia 14 de fevereiro, aqui.

Texto de Carolina Franco
Fotografias de Dinis Santos, da cortesia da Galeria Municipal do Porto

Se queres ler mais entrevistas sobre a cultura em Portugal, clica aqui.

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