“O que é preciso é aumentar os salários em baixo”; “O problema não está em ser rico, está na pobreza dos demais”; “Isso é preconceito contra os que enriquecem, eles merecem as riquezas que alcançaram. O problema está nos que não têm oportunidades para enriquecer.”
Isto são algumas das coisas que vou ouvindo sempre que tento iniciar uma discussão sobre as implicações da acumulação excessiva de capital e de riqueza. Por norma, os argumentos assentam em duas ordens de razão: a primeira é que, moralmente, não há nada de errado com o enriquecimento nem com a acumulação excessiva de riqueza e que ela é legítima à luz do cumprimento das regras e leis socialmente estabelecidas; a segunda é centrada na componente prática, em particular na ineficácia da limitação de acumulação de capital no combate à pobreza e às desigualdades.
O físico sueco Hans Rosling, que ganhou fama mundial através da sua Fundação “Gapminder” e das suas apaixonantes apresentações públicas sobre estatística, é frequentemente citado pelos defensores mais acérrimos do capitalismo para demonstrar como este é o sistema que melhor permite eliminar as desigualdades e reduzir os índices de pobreza mundiais. De facto, uma rápida pesquisa no YouTube por Hans Rosling leva-nos às várias apresentações, visualmente muito apelativas, que faz de um conjunto muito alargado de estatísticas que apontam para uma redução muito acentuada da pobreza no mundo inteiro, um aumento da esperança média de vida e uma melhoria generalizada das condições de vida da população global. As apresentações de Rosling são de especial importância porque são frequentemente utilizadas como a demonstração dos enormes méritos do capitalismo e a forma como este é o único sistema capaz de elevar socioeconomicamente toda a população mundial.
Como referi anteriormente, um dos principais argumentos utilizados contra a ideia de limitar a acumulação excessiva de riqueza é a de que esta proposta não é eficaz ou que o atual sistema capitalista comprova, na prática, que este é o modelo mais eficiente para melhorar as condições de vida globalmente. Ora, por muito apelativos que sejam os gráficos interativos de Rosling, a verdade é que as suas conclusões já foram várias vezes desmentidas por uma análise mais fina dos dados. O primeiro fator é o de que as análises de Rosling apresentam as médias nacionais. À primeira vista, não parece haver nenhum problema com esta escolha, mas uma análise mais cuidada demonstra que este método desconsidera as desigualdades que existem a nível nacional. O segundo fator que está ausente da análise de Rosling é a evolução das desigualdades ao nível nacional nos últimos 40 anos, cuja acentuação provoca um cada vez maior afastamento entre as camadas de população no topo e na base da pirâmide económica dos diferentes países a nível mundial. Na verdade, depois de um período do pós-Guerra, em que a adoção de modelos variados de “estado social”, sobretudo na Europa e na América, levaram a uma redução acentuada das desigualdades sociais e um período de maior aproximação entre os extremos socioeconómicos nos países destes dois continentes, os últimos 40 anos trouxeram um período acentuado de retrocesso e de aumento das desigualdades.
Portanto, demonstrada que fica a ideia de que o atual sistema não contribui para a redução das desigualdades, como tantas vezes se argumenta, ficaria a sobrar a ideia de que o método mais eficaz para combater a acumulação excessiva de capital seria a de aumentar os rendimentos disponíveis das camadas de população mais pobres. Este argumento é totalmente válido. Nos últimos anos, tal como demonstra Piketty, a principal fonte de acumulação de riqueza deixou de ser o rendimento do trabalho, para passar a ser o rendimento do capital, ou seja, o capital a gerar capital. Esta transformação, que resulta da adoção praticamente global de políticas neoliberais a partir da década de ’80, tem assentado, de um modo geral, na perda acentuada do poder de compra das classes trabalhadoras, através de um congelamento ou redução dos seus rendimentos face ao custo de vida. Esta perda de rendimento é ainda mais gritante quando colocada lado a lado com o aumento da produtividade gerada por esses mesmos trabalhadores. Daqui resulta que, como se argumenta, um aumento substancial dos rendimentos dos trabalhadores poderia ter como consequência uma diminuição da acumulação de capital.
Se não pretendo contestar este argumento, que me parece evidente, o que contesto é a objeção que se coloca à limitação de acumulação de capital no topo, sobretudo num cada vez mais reduzido número de pessoas. Entremos, então, na primeira ordem de razões que evoquei. Há, para mim, três argumentos determinantes para a adoção de políticas globais que visem a forte limitação de acumulação excessiva de capital.
O primeiro está relacionado com a finitude de recursos, sejam eles o próprio capital ou aquilo que o capital permite adquirir. A desproporção na aquisição de recursos tem, também, uma consequência muito direta na pegada carbónica que cada pessoa deixa. O exemplo que mais salta à vista é o da utilização de jatos privados, algo que só está ao alcance de um número muito reduzido de pessoas, e cujas emissões por pessoa são, em média, 4 vezes superior à de voos comerciais. Este exercício é extensível aos consumos relacionados com alimentação, habitação, energia e vários outros recursos.
O segundo argumento é o da racionalidade e da igualdade. Por um lado, não há qualquer racional que justifique a acumulação de riqueza numa só pessoa a um nível que é superior, em vários casos, ao total da riqueza produzida por vários estados. Por exemplo, é estimado que se a riqueza de Jeff Bezos fosse a de um estado, este seria a 56ª economia mais rica do mundo. Por outro lado, como demonstra um gráfico interativo elaborado por Matt Korostoff - https://mkorostoff.github.io/1-pixel-wealth/ - a riqueza de Jeff Bezos sozinho seria suficiente para acabar com vários problemas sociais, económicos ou de saúde de toda a população mundial, o que torna a sua riqueza moralmente injustificável.
O terceiro argumento é, para mim, o mais preocupante, também à luz das suas implicações práticas. A acumulação excessiva de capital permite um acesso quase incontrolável ao poder, seja ele económico, seja ele político. A capacidade económica de pessoas individuais ou de grandes grupos empresariais por si só, permitem um acesso quase inescrutável aos círculos de poder e de decisão que permitem continuar o ciclo vicioso de elaboração e execução de políticas que continuamente beneficiam quem as influencia. Desta forma, seja através de ações coletivas das empresas ou da ação direta de um só indivíduo, o poder exercido pelos super-ricos desvirtua a própria essência do exercício democrático, tal como o concebemos. E este é o perigo que mais importa combater e pelo qual se torna tão fundamental exercer um controlo ativo da acumulação excessiva de capital.
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas, onde reside e trabalha atualmente - algures pelos corredores do Parlamento Europeu. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e candidato ao Parlamento Europeu, nas eleições de 2019.