Ana Manuela Chã nasceu em São Pedro do Sul, no distrito de Viseu, mas, em 2002, mudou-se para o Brasil. Foi através da exposição Terra, do fotógrafo Sebastião Salgado, reunida depois num livro que contou com a colaboração de Chico Buarque e um prefácio escrito por José Saramago, que conheceu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1998. “Conheci-os através das fotos do Sebastião Salgado, quando fizeram uma campanha internacional depois do massacre de Eldorado dos Carajás”, conta. No dia 17 de abril de 1996, no município de Eldorado do Carajás, no sul do Pará, Brasil, 19 trabalhadores rurais foram assassinados numa ação da Polícia Militar, durante uma marcha do movimento — a exposição do fotógrafo brasileiro incluía fotos do massacre. “Por esse lado negativo de ter sido um massacre, mas também pela repercussão política que teve, [o acontecimento] trouxe uma visibilidade ao movimento muito maior e acho que muita gente [o] conheceu naquele momento.”
O projeto Terra influenciou também a criação da Escola Nacional Florestan Fernandes, em 2005, localizada em Guararema, no interior de São Paulo. “A construção da escola […] aconteceu graças a uma campanha para arrecadação de recursos que contou com a participação de Chico Buarque, José Saramago e Sebastião Salgado, além do trabalho essencial dos militantes Sem Terra”, lê-se no site do MST. O nome da instituição é uma homenagem ao sociólogo e político brasileiro, Florestan Fernandes, e funciona como um centro de educação e formação dinamizado pelo movimento, com foco em temas como a questão agrária, marxismo, feminismo e diversidade.
Os avós de Ana Manuela Chã são de origem camponesa e, por isso, o contacto com o meio rural fizeram parte da sua vida desde cedo. “É uma família de agricultores, mas os meus pais já trabalhavam em serviços, apesar de que a minha mãe, depois que se reformou, voltou a trabalhar na terra, numa escala muito reduzida.” Atualmente, vive em São Paulo e integra a coordenação nacional do Setor de Cultura do MST: um “movimento social, de massas, autónomo, que procura articular e organizar os trabalhadores rurais e a sociedade para conquistar a Reforma Agrária e um Projeto Popular para o Brasil”, lê-se no site.
O movimento está organizado em 24 dos 26 estados brasileiros, nas cinco regiões do país, e, em 2022, estimava que cerca de 450 mil famílias já tinham “conquistado a terra”, através da luta e organização dos trabalhadores rurais. Segundo o Instituto Riograndense do Arroz, o MST lidera também, há mais de dez anos, a maior produção de arroz orgânico da América Latina. Em entrevista à revista Jacobin, no mesmo ano, o filósofo e linguista norte-americano, Noam Chomsky, considerou o MST como “o movimento popular mais importante do mundo”, caracterizando-o como “um movimento enorme” e “muito corajoso” que faz “coisas importantes” e no qual há “figuras bastante impressionantes”. Ainda assim, o MST tem enfrentado múltiplos desafios: no dia 17 de maio, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que vai investigar as ações do movimento. No dia seguinte, a direção criticou a CPI, argumentando que é uma tentativa de “criminalizar” o MST.
Antes de ser uma das coordenadoras do movimento, Ana Manuela Chã realizou, entre 1996 e 2001, uma Graduação em Psicologia, na Universidade de Lisboa, com a tese Psicologia do Ambiente - Educação Ambiental e Estudo sobre Stress em Trabalhadores. Em 2018, publicou o livro Agronegócio e indústria cultural - estratégias das empresas para a construção da hegemonia, resultado dos anos de militância no MST e da pesquisa que desenvolveu, entre 2013 e 2016, no mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe, no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Em entrevista ao Gerador, por videochamada, Ana Chã explicou algumas das reivindicações do MST e a paralisação dos progressos do movimento durante a presidência de Jair Bolsonaro. “Todas as políticas públicas voltadas para a agricultura camponesa e familiar foram praticamente destruídas”, conta. As diferenças e semelhanças agrárias entre Portugal e o Brasil foram também abordadas pela autora. “Portugal tinha, e tem, uma questão agrária que é completamente diferente do Brasil, embora em algumas coisas se toque: o facto de ter também bastantes latifúndios no sul do país.” A coordenadora falou também acerca dos ataques ideológicos da extrema-direita e do apoio do Estado brasileiro ao agronegócio: “É um dos setores que mais tem isenção fiscal e de impostos, [e] é um dos setores que mais tem acesso a crédito, na sociedade brasileira.” Em retrospetiva, Ana Chã refletiu ainda sobre a evolução e as conquistas do movimento durante as suas quase quatro décadas de existência, sem esquecer os desafios do futuro.


Decidiu mudar-se para o Brasil assim que visitou o país pela primeira vez?
Vim pra ficar dois meses e fiquei seis [risos]. Depois, só fui a Portugal resolver as questões da vida e voltei no mesmo ano. Então, praticamente desde que cheguei aqui, fiquei a morar. Mudei-me em 2002.
Disse que os seus avós são de origem camponesa. É essa ligação com o meio rural que justifica o interesse que tem pelos trabalhadores rurais e pelo Movimento Sem Terra?
Isso interessa-me muito, mas acho que, inicialmente, foi mais um interesse político de conhecer o movimento social que fazia uma luta pela terra, mas não só: fazia uma luta por direitos e por transformação social. Conheci-os através das fotos do Sebastião Salgado, quando eles fizeram uma campanha internacional, depois do massacre de Eldorado dos Carajás, e depois comecei a pesquisar. Enfim, também naquela época era bem jovem e comecei a conhecer mais do que é que acontecia pelo mundo e ficou essa vontade de conhecer o Brasil, mas também como é que eles viviam, como é que se organizavam. Foi um bocadinho nesse sentido que vim ao Brasil: para participar do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, mas também já tinha vontade de conhecer mais de perto o movimento. Lia muitas coisas, tinha ouvido várias pessoas que tinham vindo ao Brasil e que conheciam bastante de perto a luta e, pronto, vim, e encantei-me [risos].
Foi então através do MST que o interesse pelos direitos dos camponeses começou…
Especificamente dos camponeses, foi mais a partir do movimento mesmo. São Pedro do Sul [distrito de Viseu, Portugal] é uma área bem rural, então sempre tive a vida inteira contacto com a agricultura, com o campo e, enfim, sempre gostei dessa relação e de se poder produzir. Mas era algo que não tinha essa dimensão política, era uma coisa mesmo familiar e da região onde vivia. Mas, depois, ganhou essa dimensão mais ampla. Portugal tinha, e tem, uma questão agrária que é completamente diferente do Brasil, embora em algumas coisas se toque: o facto de ter também bastantes latifúndios no sul do país, mas nada nas proporções do Brasil. Aqui, a gente percebe que a questão agrária é uma das questões base de estruturação da sociedade brasileira e das injustiças sociais. Quer dizer, se a questão da terra não fosse tão centrada e tão concentrada aqui no Brasil, certamente a questão das desigualdades sociais seria bem diferente. A terra foi a propriedade por excelência que acabou por condicionar toda a forma como a sociedade brasileira se organizou. Isso só pra dizer que toda essa dimensão que é mais social, ela apareceu na minha vida a partir dessa relação com o Movimento Sem Terra, no Brasil.
Em 1996, quando começou a graduação em Psicologia, já tinha interesse sobre essas questões? A sua tese foi sobre psicologia do ambiente e stress em trabalhadores…
Sim, com certeza. O interesse social já estava aí, desde sempre. Sempre fui ligada também a grupos de teatro populares que traziam esses temas nas peças, às vezes.
Falou há pouco sobre as fotografias de Sebastião Salgado, mas Saramago e Chico Buarque também foram nomes marcantes para si. Que relação tem com estes artistas?
A exposição Terra, de Sebastião Salgado, foi feita nesse pós-massacre de Eldorado dos Carajás. O movimento [MST], mesmo no Brasil, não era tão conhecido. Então, como o Sebastião Salgado já estava a fazer um trabalho de fotografias, ele conseguiu muito rapidamente, no dia 17 de abril, que foi o dia em que aconteceu o massacre, foi até ao Pará. Então, ele incorporou também as fotografias na exposição e depois criou-se um livro para o qual o Saramago fez o prefácio, e o Chico Buarque doou os direitos autorais de três músicas que têm mais que ver com essa temática da terra — uma delas chama-se até Assentamento — e então isso virou aquilo que se chamou a exposição Terra. Eles fizeram também várias palestras e isso virou uma campanha internacional, inclusivamente, vários grupos de amigos do MST mundo afora fizeram reproduções dessas fotografias e vendiam-nas como uma forma, tanto de angariar alguns fundos, mas em especial de divulgar o que estava a acontecer no Brasil: a violência e o descaso do governo, na época. Também foi a partir do massacre que se criou o Dia da Luta pela Reforma Agrária aqui, no Brasil. Se criou também um programa de educação para áreas de reforma agrária, por exemplo. Então, o massacre, por esse lado negativo de ter sido um massacre, mas também pela repercussão política que teve, trouxe uma visibilidade ao movimento muito maior e acho que muita gente [o] conheceu naquele momento. O Saramago, ele chegou a vir ao Brasil, especificamente para o lançamento dessa exposição e conheceu várias lideranças do movimento, e o Chico Buarque é, até hoje, um grande amigo do movimento. Posso dizer que foi ali que tomei contacto [com o MST], deve ter sido em 1998.
O grande propósito da luta do movimento é a conquista da Reforma Agrária e de um Projeto Popular para o Brasil. Em que consistem estes objetivos?
A questão da terra é uma questão central na formação do Brasil e sempre a partir desta formação colonialista. A terra sempre esteve concentrada na mão de muitos poucos, de uma elite, e muita gente não tinha acesso à terra para trabalhar. Quer dizer, no início, era o trabalho escravo e, depois, o trabalho assalariado, daqueles poucos que tinham alguma terra, mas sempre de uma forma muito precária. O trabalhador rural, em geral, não tem acesso à terra, nem aos meios de produzi-la. Então, fazer a reforma agrária no Brasil é fazer uma redistribuição de terra por aqueles que precisam. Sempre foi uma necessidade e sempre houve muitos movimentos, em tempos anteriores, que traziam isso como uma demanda. O MST surge no final da década de [19]70, começo dos [19]80, muito com esse objetivo principal de democratizar a terra, de distribuir a terra aos camponeses, e começou no sul [do Brasil], onde havia muitos camponeses, muitos deles de origem europeia. Então, no sul, começaram as grandes ocupações: ocupações massivas com muita gente que ocupava essas terras improdutivas de forma a fazer pressão para o governo desapropriá-las, transformá-las em terras de reforma agrária, com assentamentos e acampamentos. Então, no início, a gente dizia, mais no campo teórico, que se tratava de uma luta por uma Reforma Agrária Clássica, que tinha na redistribuição da terra a sua centralidade, aquilo que era o objetivo principal. E depois, é claro, ao se estabelecer todo um programa de reforma agrária, existiam outras reivindicações, mas sempre ligadas ao uso dessa terra que se distribuía: como as pessoas conseguiam acessar crédito para ter uma moradia, conseguir infraestrutura de estradas, era sempre muito em torno de como facilitar esse trabalho da terra que tinha sido distribuída. Com o avançar dos anos, nas últimas décadas do século passado e o início desta, a estrutura do campo mudou muito, não são só mais os latifúndios e os latifundiários que tinham a terra ociosa só como uma reserva de dinheiro e de poder. Mas era preciso desenvolver o campo de uma outra perspetiva, numa perspetiva de que fosse um lugar bom para se viver e que pudesse dar conta de produzir alimentos para a maioria da população. O MST, na sua proposta política e até mais conceitual, reformula essa ideia de uma luta pela reforma agrária, para uma luta por uma Reforma Agrária Popular, que se diferenciaria dessa que seria só de redistribuição de terra, ou basicamente centrada na redistribuição da terra. Então, o MST defende que, sim, a terra precisa ser redistribuída: sem redistribuição de terra, não é possível avançarmos… O Brasil continua a ser um dos países que concentra mais terras do mundo. Mas é preciso a gente olhar para o campo numa outra perspetiva, que não é só essa produtivista: [o campo] é um lugar bom para se viver, e o tipo de agricultura que a gente faz e a maneira como lidamos com a terra não pode ser igual à maneira que, por exemplo, as grandes empresas do agronegócio a utilizam hoje em dia, que é com monocultivo, não é para produzir alimento, é para exportação. Então, o MST defende: a reforma agrária é redistribuir terra, mas redistribuir terra para que os agricultores possam, a partir de uma matriz tecnológica que a gente acredita que é a agroecologia, produzir alimentos saudáveis, não só para quem mora no campo, mas para todos. Então, por isso, a gente também precisa da tecnologia, precisa de acesso a crédito para fazer agroindústrias, para poder minimamente processar os alimentos para que eles consigam chegar à cidade. E a gente precisa que essas pessoas que moram no campo tenham acesso à educação gratuita de qualidade, tenham acesso à saúde, possam ser eles mesmos produtores e produtoras de cultura, de se expressar das suas formas. Tudo isso também com um olhar que o agronegócio não tem, por exemplo, para o cuidado com o meio ambiente, para o cuidar das relações com as pessoas. Por exemplo, uma das frases que usamos muito é: "Não existe Reforma Agrária Popular se continuar a haver racismo ou se continuar a haver machismo ou se houver qualquer tipo de relações que passem por exploração, tanto do ser humano como da natureza." Então há esse avanço, e havendo esse avanço, a gente acredita que a reforma agrária tem que ser defendida por todos, não só por quem está no campo e por quem precisaria e gostaria de tirar o sustento da terra, mas também por quem está na cidade. Porque se não houver reforma agrária, os alimentos não chegam ou não chegam com qualidade, com quantidade, a gente vai continuar a ter nas grandes cidades esta situação de fome e todo o resto do desenvolvimento do país, porque se o campo produzir, alimenta a indústria, que alimenta os serviços, enfim.


É frequente ouvir que o agronegócio é absolutamente central para a economia brasileira e até que ‘O Brasil é o celeiro do mundo’. O MST tenta combater este tipo de ideias?
Sim, o agronegócio, embora ele tenha-se fortalecido muito, sobretudo, a partir dos anos 2000, ele traz essas grandes empresas do setor agrícola, a maioria delas até de caráter transnacional. Juntando isso com esse latifúndio, que a gente diz mais atrasado, esse que concentra, que nem produz nas terras, com o capital financeiro. Há uma junção, digamos assim, dessas três áreas da economia, mas numa perspectiva que não é de desenvolvimento do país, porque a maioria dessa produção é uma produção negociada nas bolsas de valores de Chicago e do mundo, para exportação, e a maioria dela nem é para consumo humano, são grãos que depois vão alimentar gado na Europa e por aí afora. Por ser justamente uma confluência desses setores todos, o agronegócio é um setor que tem uma força política muito grande e que percebeu, inclusive, que precisava de ter uma força também no campo ideológico e de propaganda muito grande. Então, essa mensagem, claro, serve muito ao setor, não é? Ser reconhecido como esse celeiro do mundo, e mesmo aqui no Brasil, como o setor que puxa o PIB. Mas quando a gente olha os números, a gente percebe que isso só acontece, porque há um apoio do Estado muito grande: o agronegócio é um dos setores que mais tem isenção fiscal, isenção de impostos, é um dos setores que mais tem acesso a crédito na sociedade brasileira. É um setor que não gera emprego em quantidade expressiva e que, no fundo, não traz benefícios do ponto de vista, nem social, e muito menos ambiental, para a sociedade como um todo. Então, para além de trazer muitos malefícios, porque usam muitos venenos, por exemplo, na produção, muitas vezes usam, inclusive, o trabalho análogo à escravidão. Ou seja, é um modelo que a gente não pode ter como referência para a sociedade, se a gente pensa em qualquer perspetiva mais de justiça social e justiça ambiental, até. Para o MST, é muito claro que a questão da terra no Brasil, e da fome, por exemplo, não vai ser resolvida pelo agronegócio. O agronegócio não vai acabar, mas precisa de ser tratado nas condições que também são tratados, por exemplo, os pequenos agricultores e a maioria da sociedade. Não faz sentido que o agronegócio tenha toda essa série de isenções, por exemplo, para exportar, e que a maioria desses venenos que já são proibidos no resto do mundo inteiro, possam ser utilizados aqui, no Brasil, com a desculpa de que trazem maior produtividade. Os números mostram que isso não é assim dessa forma. Para nós, como projeto político que defende uma sociedade mais justa, mais igualitária e de utilização responsável dos recursos naturais, não cabe esse projeto do agronegócio. Os números desmistificam isso, de que ele seja esse motor da economia brasileira, no sentido de que ele é por si só… Ele até pode carregar números que faça parecer que ele é esse motor, mas esses números são à custa de todo o povo brasileiro, porque efetivamente o agronegócio tem todo esse apoio estatal e político que lhe confere essa força e, agora, tem muito esse poder da imagem também. Nos últimos dez anos, em especial, desenvolveram-se largas campanhas publicitárias para reforçar essa imagem e esse conceito político do agronegócio. Por exemplo, aparece aqui uma publicidade todos os dias a dizer que o agro é tech e que o agro é pop, houve um investimento muito grande nessa disputa.
Essas ideias e imagens construídas no campo cultural e ideológico prejudicam muito a luta do MST?
Sim, com certeza. Durante muito tempo, a única possibilidade de confrontarmos essas ideias era nos nossos pequenos círculos, com conversas, com alguma coisa na Internet. A gente tinha um alcance muito reduzido nesse diálogo com a sociedade para fazer esse debate, que era mais fácil de fazer, por exemplo, quando era só uma luta contra os latifundiários, porque toda a gente sabia de algum caso de um latifundiário que tinha muitos hectares e que não produzia nada. E é muito fácil a pessoa se indignar com isso: "Tanta gente que não tem terra para trabalhar e [estão] ali aquelas terras que não são trabalhadas." Então, a maioria das pessoas tinha um pouco mais de consciência em relação ao problema do campo brasileiro, da concentração e tudo. Quando veio o agronegócio, nos anos 2000, ainda para mais com essas campanhas todas de publicidade, para maioria da população passa a ser o senso comum do campo. Uma das mensagens, não diretas, mas que tentam passar mesmo é de que o agronegócio dá conta de tudo, não é preciso ter camponeses, não é preciso ter agricultura familiar. No discurso deles, afirmam que produzem tudo o que é necessário para a sociedade, isso acaba por, perante a sociedade no geral, trazer ainda um maior desconhecimento da nossa luta. Agora estamos um bocadinho mais próximos da cidade e temos conseguido fazer esse diálogo de forma mais direta, seja com atividades como essa que a gente teve agora no fim de semana [dias 13 e 14 de maio], que é uma grande feira nacional [a IV edição da Feira Nacional da Reforma Agrária], e embora tenha esse lado também de comercialização, o nosso principal objetivo é mesmo dialogar com a sociedade, mostrar qual é o nosso projeto e aquilo que a gente faz, o que produzimos, qual o nosso projeto de educação, o nosso projeto de cultura, enfim, a feira é um bocadinho a síntese disso tudo que o MST se propõe a fazer. Agora também temos algumas lojas na cidade, os armazéns do campo, que também são esse espaço de diálogo, e a partir dessas iniciativas, conseguimos chegar a grupos da sociedade que nos desconheciam. Às vezes, até diziam: "Olha, a gente até defende politicamente, mas a gente não conhece", e agora passam a conhecer um bocado melhor. Há um trabalho também grande que a gente faz nas universidades, sempre temos muitos professores aliados que apoiam. Por exemplo, todo o mês de abril, há muitas atividades, a gente chama a Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária. Há muitas atividades em todas as universidades, então também chegamos a esse público de estudantes e pesquisadores. Mas é muito desigual, porque competir com o horário da telenovela, o intervalo da telenovela da Rede Globo, apesar de que a televisão… Enfim, a Internet ganhou talvez um papel maior que a própria televisão, mas é difícil ainda fazer esse contraponto e apresentar a nossa proposta. Isso sem falar de que, como nos definimos politicamente bastante como esquerda, como uma tradição também do campo socialista, isso nos coloca no primeiro plano dos inimigos, digamos assim, da direita. E nestes últimos quatro anos, por exemplo, foram muito fortes os ataques que recebemos.


A presidência de Jair Bolsonaro e o seu apoio ao agronegócio provocaram algum retrocesso na ação e desenvolvimento do MST?
Com certeza, mas os ataques políticos [que recebemos], eles também geraram um apoio político. Mas a gente teve certamente uma paralisação da luta pela reforma agrária e, embora sejamos um movimento com reivindicações políticas, somos também um movimento de reivindicações económicas. As pessoas juntam-se ao MST, porque acreditam que a sua luta pode chegar a proporcionar-lhes o acesso a um pedaço de terra para produzirem e, estando dentro de um programa de reforma agrária, receber créditos, e poder desenvolver a sua produção. Isso tudo foi completamente paralisado durante o governo de Jair Bolsonaro. Todas as políticas públicas voltadas para a agricultura camponesa e familiar, foram praticamente destruídas, o que tornou ainda mais difícil, por exemplo, que mais pessoas se juntassem ao movimento, porque as pessoas juntam-se com esse primeiro objetivo mais do campo reivindicativo económico e se não há conquistas... Ninguém vai viver debaixo de uma lona preta à espera de ter uma terra se não há perspectiva de a ter. Sob esse ponto de vista, isso realmente paralisou bastante o movimento. Por outro lado, como são quase 40 anos, há muitos assentamentos já muito bem consolidados. A gente conseguiu manter, nos assentamentos, a produção de alimentos, conseguimos fazer muitas ações de solidariedade durante a pandemia, conseguimos também avançar na organização das estruturas e dos lugares que já tínhamos organizado. Virámos um alvo muito privilegiado. Por outro lado, também uma parte da sociedade, pelo menos, juntou-se na defesa, tanto do movimento como dessa perspetiva da reforma agrária. Então, houve esse lado positivo.


A eleição de Lula traz novas esperanças para o MST?
Sim, com certeza. Toda a base do movimento se envolveu bastante, tanto na campanha para a libertação do Lula [Campanha Lula Livre, quando o atual presidente do Brasil esteve preso por 580 dias], como depois na campanha eleitoral para o eleger, e acreditando muito que a reforma agrária seria, e continua a ser, uma das bandeiras do Partido dos Trabalhadores. Há uma expectativa muito grande de que mais assentamentos possam ser feitos por este governo e que as políticas públicas que estavam a funcionar possam voltar e, quem sabe, se possam criar até outras. Embora ainda estejamos com cinco meses apenas de governo, algumas [políticas públicas] já avançaram no sentido de reconstruir essas políticas. Havia um programa, que agora voltou, de aquisição de alimentos, que são compras públicas de alimentos que dão garantia aos trabalhadores de que vão ter para quem vender. Há um programa nacional de alimentação escolar que diz que 30 % dessa alimentação deve ser de origem camponesa e familiar e, de preferência, agroecológica ou orgânica. Então, essa política está a reestruturar-se. A própria Conab, que é a companhia de abastecimento que faz também stocks e compras públicas, também já está em processo de se reestruturar. Para além das políticas públicas terem sido destruídas e abandonadas, também os órgãos públicos que cuidavam dessas políticas públicas foram esvaziados. Então, agora há um trabalho de reconstrução mesmo grande para se poder voltar a chamar, por exemplo, uma política de Reforma Agrária Popular. Também sabemos que isso não vai ser fácil, inclusive, estes meses de governo já mostraram isso, de que a terra continua a ser um dos bens mais valiosos e o campo é, certamente, aqui, no Brasil, um dos espaços de maior disputa. A gente acredita que ter um governo que defenda a reforma agrária, que nos permita, inclusive, fazer mais lutas, porque assim vamos ter mais possibilidades de ter algumas conquistas… Mas isso também vai acirrar essas disputas com quem está do outro lado, no caso em especial, com o agronegócio. A gente já vê aí muitas manifestações, inclusive, a tentar criminalizar o MST de novo e a tentar até nos afastar do governo, nos colocando como um problema para um governo que se diz de frente ampla. Mas a gente continua com bastante esperança e continuamos a fazer pressão para que efetivamente esse seja um dos avanços que este governo possa voltar a ter, também no caso de desapropriação de terras, por exemplo, e não só das políticas públicas para quem já tem terra.


Mencionou a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, do MST. O que é que a marcou mais nesta edição?


Eu fiz parte da coordenação da feira e me envolvi muito, então, confesso que me emocionei em todos os momentos por diferentes motivos [risos]. Mas acho que uma coisa muito marcante mesmo foi ver a diversidade, que a cada feira foi aumentando. É muito bonito isso, porque é uma trajetória, um percurso. Pessoas que eu conheço há muitos anos que só tinham produção de alimento in natura e que se foram capacitando, foram estudando e hoje produzem óleos essenciais, por exemplo, uma coisa em que parece que há uma elaboração muito grande por trás, ou a diversidade de arroz que já nem existia e que, mesmo quando o movimento começou a produzir, só tinha uma ou duas variedades, e hoje, conseguimos recuperar as sementes e tinha algumas bancas com dez ou 12 variedades de arroz diferentes. Significa que as pessoas não se contentaram só com ter um pedacinho de terra para produzir a sua comida, realmente há um projeto que tem que ver com o país, de como a gente consegue melhorar, não só a vida própria, mas a vida do conjunto da sociedade e agregar valor às coisas que estão a ser produzidas, agregar conhecimento científico. No dia da montagem, estava a ver os camiões a chegar e a descarregar, e aquilo realmente mostra que é um projeto que faz sentido, faz sentido para aquelas pessoas, mas para a sociedade como um todo. Não é uma produção voltada para algo que não traga benefício para o ser humano e que só visa o lucro. Há uma busca de entregar coisas melhores para a sociedade como um todo e que possam ser usufruídas. Embora isso é uma coisa quase filosófica, na feira também se pode experimentar o Brasil inteiro através das comidas, pode conversar-se com as pessoas. [Houve] muita gente que veio ver depois os concertos e muita gente com o boné, então há um apoio da sociedade que é mais do que só vir a uma festa, isso tudo foi bem impactante.
Um dos temas debatido na Feira foram os desafios atuais para a reforma agrária, nomeadamente os ataques ideológicos sofridos pelo MST. Como é que perspetiva esses desafios e o futuro do movimento?
O movimento completa no ano que vem 40 anos. Isso é um motivo de muito orgulho e de muita honra para todos, porque foi um movimento sempre muito atacado ao longo da sua história, mas que tem esse projeto político definido de forma firme e com bastante unidade interna, apesar de o Brasil ser tão diferente. A gente sempre acredita que essa unidade interna e essa perspetiva também de autonomia que a gente sempre teve em relação, seja ao governo, seja a partidos políticos, porque embora a gente apoie, por exemplo, o PT, sempre mantivemos uma autonomia política em relação a qualquer tipo de partido. Isso nos traz uma solidez para enfrentar esses diferentes momentos. E, como te dizia, muitas vezes, esses momentos até que são mais difíceis do ponto de vista dos ataques, mas acabam também por gerar na sociedade uma onda de apoio, de solidariedade, que acaba por também nos tornar mais conhecidos e mais fortalecidos em relação a esses ataques. A forma de atuar da extrema direita no último período nos coloca desafios muito maiores do que em qualquer outro momento da sociedade, porque eles operam realmente em âmbitos que a gente não consegue propriamente, às vezes, nem decifrar, nem entrar e nem competir, que é esse submundo da Internet, esse mundo das fake news. Então, isso tudo, para nós, tem sido um desafio muito grande e tem chegado informação muito, muito distorcida. A gente sempre teve esses ataques... A própria Rede Globo sempre manipulou muita informação e sempre nos colocou muito numa perspectiva de criminalização mesmo, mas era algo que as pessoas que têm mais acesso podiam perceber a carga ideológica por trás. As fake news não trazem isso, elas transformam a realidade: apresenta-te uma fotografia que simboliza uma coisa e a mensagem que depois é passada é completamente outra e que, muitas vezes, até esconde seu lado mais ideológico. É ainda mais difícil fazeres um trabalho de contra-informação em relação a essas mensagens falsas e completamente distorcidas do ponto de vista da realidade, nem só do ponto de vista do discurso ideológico. Isso tem-nos colocado muitos, muitos desafios: tem-nos obrigado a tentar entrar também nas redes de uma forma que não era o nosso caminho de fazer as coisas, nem sabíamos muito bem, mas agora entendemos que há também uma disputa a ser feita grande pelas redes e, em especial, tentar chegar a uma camada da população, mesmo à classe trabalhadora, que tem menos acesso. A gente tem ainda o nosso apoio grande, que ainda é muito também da classe média e de apoiadores, isso que te dizia da universidade, de alguns setores. A gente tem muito esse desafio de tentar fazer esse diálogo direto com as populações da periferia das cidades. As ações concretas têm sido aquilo que nos permite dialogar melhor. Então, quando a gente fez ações de doação ou quando a gente agora se junta a projetos, por exemplo, de cozinhas solidárias nas cidades, isso permite-nos avançar bastante nesse diálogo e nessa maneira de combater esse ódio, em especial da direita. Porque a gente costuma dizer: "Olha, a gente não está a fazer doação para pedir nada em troca, e nem estamos a doar, por exemplo, aquilo que sobra." Durante a pandemia, conseguimos, por exemplo, nos programar para produzir mais comida, justamente para doar. Foi uma coisa que foi programada por entender que era necessária e que é necessária para resolver problemas da sociedade muito imediatos, como a fome, mas também para debater esse projeto popular. Então, a nossa grande ferramenta de diálogo ainda são essas ações concretas, como a Feira, ou como as doações, ou como os projetos concretos que temos, em especial na cidade, que é onde está a maioria da população brasileira.


Como disse, em 2024, o MST vai celebrar 40 anos. De que forma olha para estas quatro décadas e para as conquistas realizadas? Qual é o balanço que faz da luta do movimento?
Olha, é um balanço muito positivo [risos]. A gente sempre diz, no MST, que existir e poder completar 40 anos é a maior conquista, porque, infelizmente, a maioria dos movimentos de luta pela terra e movimentos de camponeses organizados no Brasil não duraram tanto tempo. Foram sempre destruídos de uma ou outra maneira, porque representavam justamente uma ameaça a esse bem sagrado da propriedade privada da terra, ou uma ameaça à ordem estabelecida pela burguesia e pelas elites, aqui no Brasil, ao seu modo de funcionamento. Então, por exemplo, quando o MST ocupa uma terra como a gente fez agora este ano, para fazer a denúncia de alguma coisa, e não necessariamente porque a gente ia querer ficar naquela terra, como foi o caso aqui de algumas empresas, isso é uma ameaça muito grande, sob o ponto de vista deles, à ordem estabelecida e à ordem de como as coisas funcionam no Brasil. Então, o movimento ter conseguido resistir este tempo todo e se manter como uma força política ativa na sociedade brasileira, essa é talvez a maior conquista que a gente tem. E eu acredito muito que ter avançado também nessa perspetiva de construir uma proposta de Reforma Agrária Popular, não só de redistribuição de terras, e que traz toda essa perspetiva já de cuidado com a natureza e com o meio ambiente, cuidado com as pessoas, uma produção a partir da agroecologia, que traz a diversidade, traz os saberes populares combinados com o conhecimento científico, e de como isso conflui na produção de alimentos que se acredita que são bons, são saudáveis para a maioria da população, acho que isso é também uma conquista muito grande. Os camponeses se colocam a serviço de uma melhoria da humanidade e não só da sua própria vida individual e familiar. Acho que isso também é uma das coisas mais bonitas que a gente vê, tanto nas feiras, como nos assentamentos e acampamentos. Agora, os desafios são muito grandes, porque tudo isso, se não tiver muita luta junto, continua ameaçado. Não sei o que seria do movimento, por exemplo, se não tivesse havido uma mudança eleitoral como a que tivemos com a eleição do presidente Lula. Seria muito complicado, porque a falta de ver a reforma agrária como um projeto e, ainda para mais, querer eliminá-la como projeto, realmente poderia ter colocado em risco a existência do movimento como ele é. Não quer dizer que não possa existir, mas seria muito mais difícil, e a gente sonha com muita coisa, de poder continuar aí a avançar, tanto desse ponto de vista de que mais gente se some ao movimento, como da gente estruturar ainda de forma melhor a nossa atuação. O movimento é isso, tem feito várias contribuições, de uma maneira geral, à sociedade, seja no plano, por exemplo, de pensar a educação. A gente tem feito um trabalho de alfabetização muito grande no campo, não só voltado para o MST, mas, por exemplo, nas pequenas cidades, vilas e comunidades que são próximas do MST, a gente estendeu esse programa da alfabetização no Brasil, que ainda tem um percentual muito grande de população que não é alfabetizada. Isso é uma das propostas que a gente tem também para a sociedade. Quando a gente traz o tema da cultura, também vai bem além do que só o nosso fazer cultural ou só o nosso acesso à cultura, é uma coisa mais ampla para a sociedade como um todo. Tudo isso, acho que é motivo de muito orgulho. É como a gente diz: !É combustível para continuar a luta."

