Em 1972, Esther Newton publicou aquele que se viria a tornar um clássico na etnografia LGBTQI+, Mother Camp: Female Impersonators in America. O livro resulta da sua tese de doutoramento que, como a própria diz no prefácio do livro publicado pela University of Chicago Press, antes de tudo começou como ideia para um pequeno artigo sobre drag queens — e cresceu quando a escritora percebeu que havia camadas a mais para explorar o tema superficialmente.
Mother Camp: Female Impersonators in America reúne dois anos de pesquisa no terreno, a ouvir a(s) vida(s) de queens e a viver um pouco dessa(s) vida(s) com elas, na primeira metade da década de 60. Em 1990, Judith Butler lança Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity [editado pela Orfeu Negro com tradução de Nuno Quintas, em 2017] e a dimensão performática do género, já levantada por Esther Newton nos anos 60, volta a ser convocada. À reflexão de Newton, Butler acrescenta que “o drag subverte totalmente a distinção entre espaço psíquico interno e externo, e escarnece do modelo expressivo de género, mas também da ideia de uma verdadeira identidade de género.” [1]
“Na sua forma mais complexa, [o drag] é uma dupla inversão que afirma: “A aparência é uma ilusão.” O drag declara [curiosa personificação de Newton]: “Por fora, a minha aparência é feminina, mas “por dentro” a minha essência [o corpo] é masculina.” Ao mesmo tempo simboliza a inversão oposta: “ ‘Por fora a minha aparência [o meu corpo, o meu género] é masculina, mas “por dentro” [eu] é feminina.” [2]
O enquadramento de drag queens, drag kings e drag queers evoluiu, naturalmente, com o pensamento e as suas diferentes correntes. Tal como o ser e estar drag sofreu mutações, também. Para enquadrar do ponto de vista académico a questão drag na reportagem “No palco da cultura drag, canta-se o orgulho de sermos nós mesmxs”, na Revista Gerador de julho, entrevistámos à distância Ana Cristina Santos, Doutorada em Estudos de Género e Investigadora Principal do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Coordenadora em Portugal dos projetos europeus CILIA Vidas LGBTQI+ e Diversidade e Infância, de quem recuperamos as palavras para esta semana temática.
“A diversidade de expressões de género sempre existiu ao longo da história. Sucede que, em tempos de maior conservadorismo, essa diversidade é violentamente reprimida e disciplinada para voltar a encaixar nos modelos hegemónicos de masculino e feminino. No entanto, a ideia de que há uma – e apenas uma – forma adequada ou possível para nos exprimirmos é fantasiosa, acabando necessariamente por falhar”, começa por dizer a investigadora.
Olhando para os meandros da História e a evolução, também da noção de justiça, a investigadora refere que “com os importantes avanços legislativos e socioculturais das sociedades democráticas, reconhece-se que uma sociedade justa não só acolhe como celebra a diversidade sexual e de género enquanto reflexo dos valores da liberdade e do respeito pelos direitos humanos”.
Sendo o género “tão central na construção da identidade pessoal”, este “não corresponde a um determinismo biológico”. O género é, segundo Ana Cristina Santos, “em si mesmo social e performativo”. “Nenhum/a de nós se apresenta da mesma forma todos os dias. O modo como nos apresentamos quotidianamente difere em função da ocasião, das pessoas com quem nos vamos encontrar, dos compromissos que temos, da nossa disposição. Essa performatividade relaciona-se com a expressão de género – e não necessariamente com identidade de género –, e a expressão de género é o terreno em que por excelência se move a cultura drag.”
Para a investigadora, é central nesta reflexão referir que “a cultura drag, envolvendo drag queens e drag kings, foi sempre uma componente essencial do ativismo LGBTQI”. “Enfrentando discriminação fora e dentro da comunidade LGBTQI, e deparando-se com preconceitos acentuados face à intervenção artística e política que representam, as drag queens e os drag kings constituíram em muitos países os primeiros rostos visíveis da resistência queer à discriminação, nomeadamente em marchas, prides e outros eventos públicos”, acrescenta.
Esses mesmos rostos da resistência queer à discriminação tiveram um papel preponderante desde o início do movimento LGBTQI um pouco por toda a parte, mas sobretudo nos Estados Unidos da América — inclusive naquela que ficou conhecida como Cultura Ballroom, que surgiu nos subúrbios de Nova Iorque nos anos 70, eternizada no documentário Paris is Burning (1991), de Jennie Livingston, e reavivada na série Pose (2018), de Ryan Murphy e Brad Falchuk.
Ana Cristina Santos acrescenta ainda que “pela sua forma desassombrada, in your face, de ocupar o espaço, a cultura drag convida necessariamente a uma tomada de posição, não se compaginando com os brandos costumes que sempre acentuam as assimetrias e fragilizam quem é mais vulnerável e precário”. “Nesse sentido, drag queens e drag kings oferecem um contributo inestimável, expondo as contradições de um regime dicotómico de género que limita o potencial humano, destituindo cada pessoa do seu direito à autodeterminação e livre expressão”, conclui.
Ao longo desta semana convocamos vozes da reportagem “No palco da cultura drag, canta-se o orgulho de sermos nós mesmxs”, publicada na Revista Gerador 31. Depois de te apresentarmos as três protagonistas desta peça e de partilharmos contigo, na íntegra, esta entrevista à investigadora Ana Cristina Santos, convidamos-te, na sexta-feira, a ler a conversa que tivemos com Deborah Kristal, nome incontornável do transformismo em Portugal.
[1] [2] Butler, J. (2017) Problemas de Género (1ª edição), traduzido por Nuno Quintas. Lisboa: Orfeu Negro (Obra original publicada em 1990), p. 272