Estávamos em meados do século XX. Em Portugal, viviam-se tempos de uma intensa tradicionalidade religiosa, principalmente, nas áreas rurais. Por entre as estreitas ruelas das aldeias emergiam as humildes casas, onde o terço e a bíblia eram os “adereços” prediletos do dia a dia destes portugueses. Nem que apenas fosse para pedir que depois da tempestade surgisse a bonança, como diz o ditado utilizado na língua portuguesa.


Hoje, os hábitos são outros. A religião passou para segundo plano e poucos são aqueles que mantêm ou fazem questão de adquirir estes testemunhos, da palavra de Deus, para as suas casas. Tomemos como exemplo um estudo realizado pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião e do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da Universidade Católica Portuguesa (UCP), com o patrocínio da Conferência Episcopal Portuguesa, coordenado pelo antropólogo Alfredo Teixeira, referente ao ano de 2014. Se no ano de 1999 aproximadamente 87 % dos portugueses dizia ser cristão, no ano de 2014 essa realidade decresceu para 77 %.
Ainda assim, esta descida pode não significar de todo uma desvantagem, mas antes uma mudança de pensamento. Se, em tempos passados, a população portuguesa não ousava questionar a veracidade ou a total veracidade desta palavra sagrada, nomeadamente, a Bíblia, nos dias de hoje, começa a ser cada vez mais uma realidade. Olhemos para o caso da Galeria Espaço Exibicionista que desafiou 18 artistas, portugueses e estrangeiros, a apresentarem uma obra relacionada com o tema central: Apocryphu.
Chegados a este ponto, devem estar a questionar-se o que significa este termo…


De acordo com o artigo “Perspectivas Teológicas e Literárias do texto apócrifo: Apocalipse de Baruch”, de Silvana Gaspari e Diógenes Braga Ramos, apócrifo “significa literalmente secreto, oculto”. Ao longo dos anos, passaram a ser designados com esta nomenclatura os textos ou os factos sem autenticidade comprovada, pelas igrejas cristãs.
Precisamente, foi nos primeiros séculos da origem do cristianismo que estes tipos de relatos foram produzidos em maior número. Essencialmente, eram compostos de uma literatura apocalíptica através de registos gregos, latinos, coptas, árabes, etc. Acima de tudo, “neste tipo de literatura, são comuns as visões paradisíacas e infernais do além e o anúncio do fim do mundo”, lê-se no mesmo artigo.
Por esta mesma razão, a igreja viu-se obrigada a esclarecer quais seriam as obras “verdadeiramente inspiradas”. Assim sendo, no final do século IV, a instituição religiosa procedeu à fixação do cânone, ou seja, dos livros oficialmente inspirados por Deus. Esclarecidos quanto ao seu conceito, a seguinte questão que nos palpita vai ao encontro do desaparecimento dos restantes. O que terá sido feito destes textos apócrifos?
Foi com este sentimento de inquietação, e curiosidade, que Nuno Graça, diretor do Espaço Exibicionista, partiu para o lançamento da exposição Apócrifo, de 9 de julho a 14 de agosto, na própria galeria. “A palavra apócrifo surgiu de um trabalho de pesquisa. Não queríamos que os artistas ficassem centrados à própria Bíblia, mas que fossem um bocadinho além da imaginação”, conta.
Consciente do desconhecimento do termo “para a maioria dos visitantes”, confessa que esta foi uma das formas de “cultivarmos e espalharmos mais conhecimento, apresentando novas perspetivas”.


Quem não tardou a aceitar o desafio foi o artista de colagem, João Fortuna. Apesar do obscurantismo pelo termo apócrifo optou, na altura, pela desconstrução da Bíblia convencional.
Assim sendo, durante um mês e meio, pôs mãos à obra e procurou destruir a sua mensagem para construir uma nova narrativa. Neste caso, uma nova Torre de Babel, a Babel XXI. Uma torre que se ergue através da sobreposição e mixagem de elementos da cultura gótica, arquitetura contemporânea e edifícios religiosos. “Achei a ideia de pegar neste objeto sagrado, que entra no quotidiano, na vida ocidental, um ponto de partida interessante para a minha peça”, justifica.
“Eu peguei num episódio da Torre de Babel, em que antigamente se acreditava que as pessoas falavam todas a mesma língua. Face a esta vantagem, decidiram construir uma torre para chegar ao céu, mas Deus não gostou dessa tentativa de o alcançarem. De forma a confundi-los pôs a humanidade a falar diferentes línguas para que eles não conseguissem construir a torre e, posteriormente, alcançassem o céu. Basicamente, é a explicação do porquê de existirem várias línguas no mundo”, explica.


Ainda assim, não só de explicações vive esta obra de arte do João, já que, simultaneamente, procurou que a mesma fosse uma crítica à sociedade atual. “Temos muito esta ideia de que os cristãos não se relacionam de qualquer maneira com os muçulmanos e que os muçulmanos não partilham ideologicamente formas de vida e formas sociais dos judeus, mas na verdade isso está errado. Acho que existem muitas mais coisas que nos aproximam do que aquelas que nos separam”, sintetiza.
Já com um conhecimento aprofundado sobre a existência deste tipo de textos apresenta-se Paula Rosa, atual artista visual que integrou, igualmente, este projeto. “O conceito era-me familiar, sim. Sempre me interessei por temas filosóficos, do âmbito da Psicologia e da Sociologia, das Ciências Humanas em geral, o que inclui também a dimensão espiritual dos seres humanos e tudo o que ela envolve”, esclarece.
Por intermédio da arte digital, “num frenesim obsessivo e muitos litros de café”, ao longo de quatro meses de trabalho, optou por representar a peça Desire Murder By Presence. A espera enquanto convicção da esperança, de igual modo, enquanto crítica à sociedade.


“Parece-me que o ser humano vive num universo dualista, alternando entre esperanças e nostalgias. Ora imerso no passado, ora focado no futuro. Raramente vivemos o presente, que é onde a vida acontece a cada instante. Tendemos todos a um certo escapismo. Se existe esperança e nostalgia é porque existe a falta. Na falta surge o desejo. O desejo é o que nos move, muitas vezes. Porém, nem sempre estamos conscientes do que nos falta realmente”, exterioriza.
Nesta linha de pensamento, acredita que “não somos alheios à óbvia destruição do planeta e dos seus recursos limitados. Temos vivido mais de ilusões do que de verdades, acredito. Metaforicamente, apócrifo é oculto. Oculto está muitas vezes, para nós mesmos, o que nos falta de facto. Seguimos confortavelmente o cânone porque ele nos dá uma referência, uma espécie de template que facilita a vida. Mas será essa a referência mais importante para nós? É uma pergunta”.
Deste modo, lamenta que a espiritualidade tenha sido reduzida “a fórmulas higienizadas, pasteurizadas e já prontas a consumir”.
Vivemos em tempos de uma espiritualidade “ready-made, canonizada”, finaliza.