Gramsci, num texto de 1917, proclamava o seu ódio aos indiferentes, “peso morto da história”, a passividade e absentismo que, de qualquer modo, atua sobre o mundo. Este texto é para as indiferentes. Não com ódio, com uma tremenda inquietação, obstinadamente esperançosa que ainda se consiga transformar alguma desta indiferença individualista em empatia e solidariedade. Serve este texto para interpelar todas as mulheres que acham que isto tudo nada tem que ver com elas, que acham que uma cruz displicente num quadrado da extrema-direita nada diz respeito aos seus direitos fundamentais.
A extrema-direita começa nos nossos corpos, nos nossos direitos, na nossa autodeterminação. Talvez esta frase possa parecer fora de tom, dado que tantos são os movimentos de direita radical contemporâneos liderados ou que contam com figuras charneira do sexo feminino. Começo por dizê-lo: nenhuma fascista é feminista. Nada existe de vitória progressista no triunfo eleitoral de quem quer um mundo cuja página julgávamos haver virado definitivamente. Por detrás da cara de uma mulher – que sepossa até comparar a Joana D’Arc ou à própria República Francesa, como é o caso da infame Marine Le Pen – escondem-se, por vezes, as mais sinistras maquinações misóginas e revanchistas. Um voto de uma mulher na extrema-direita, com todas as explicações que possam levar diferentes tipos de mulher a depositá-lo na urna, representa o tácito aceitamento da onda de retrocesso, quase como um anuir a que nos retirem direitos, desde que castiguem os ainda mais fracos que nós.
Ora, espreitemos o que anda a fazer-nos a extrema-direita. O Rassemblement National de Le Pen votou sistematicamente contra os avanços e conquistas nos direitos das mulheres: no âmbito da igualdade salarial, no combate ao assédio e à violência de género, contra a paridade. Giorgia Meloni, essa girlboss do fascismo, opõe-se a quotas de género, reforça o papel de género da mulher como mãe em repetidos discursos públicos, quis restringir o direito ao aborto e penalizar quem o fazia e até impedir casais lésbicos de terem filhos em conjunto. Pela Alemanha, Alice Wiedel – talvez a epítome desta dissonância cognitiva das mulheres da extrema-direita contemporânea – encabeça um partido que se bate pela “família tradicional”, ataca a “ideologia de género”, que se opôs ao casamento entre pessoas do mesmo género e propagandeia o regresso a uma mulher de “antigamente”, longe da corrupção do feminismo. Todas elas, enquanto atacam os direitos das mulheres, dizem querer proteger as mulheres europeias – leia-se: brancas – dos homens racializados, dos migrantes que vêm assediar e violar, apesar da ausência de correlação estatística entre as duas realidades. Por cá, temos um partido tão parecido com estes: contra a “ideologia de género”, antifeminista e que utiliza os nossos corpos como justificação da política xenófoba.
Estou a dizer alguma coisa que te importe? Talvez sejas indiferente a isto, não tem nada que ver contigo, afinal de contas. A tua vida corre bem. Achas que isto não te diz respeito porque nunca abortaste? Porque tens um bom salário? Porque nunca foste agredida por um parceiro? Porque podes votar e participar na política? Porque nunca te sentiste discriminada? Porque o teu marido até ajuda em casa? Achas que podes dizer que não és feminista? Estás enganada.
Se pudeste considerar não abortar foi porque a contraceção se tornou acessível a todas e conseguiste escolher quando querias – ou não – ser mãe. Se tens um bom salário foi porque milhares de mulheres lutaram pelo direito a podermos ser donas de qualquer coisa (bons tempos aqueles em que as nossas economias pertenciam ao marido, não?), a sermos admitidas em universidades e em trabalhos qualificados, a não sermos discriminadas nos salários que recebemos. Se nunca foste agredida psicológica, sexual ou fisicamente por um parceiro, tens sorte em escapar ao peso das estatísticas da violência, mas com certeza saberás que se fores agredida, o teu agressor terá incorrido num crime público e que é dever de todas as pessoas denunciá-lo. Se podes votar e ser politicamente ativa é porque milhares de mulheres, por todo o mundo, abdicaram da vida da indiferença fatalista e se bateram – às vezes por isso morrendo -– para que tu hoje fosses escolher quem queres que te governe e até poderes ser tu mesma a governar. Se achas que nunca te sentiste discriminada, digo-te que és a exceção à regra: um terço das mulheres na UE já sofreu de assédio no trabalho, metade já foram assediadas em algum momento da sua vida, vinte e cinco mulheres foram assassinadas em Portugal pelos seus companheiros, 32% das mulheres da UE já sofreram violência na intimidade, as violações aumentaram 10% em Portugal no último ano e, sobretudo, sabemos que todos estes dados são altamente subrepresentativos pois a maior parte destes crimes não são denunciados. Se nunca foste vítima, pergunta-te se nenhuma das tuas amigas, familiares e conhecidas foi. Se achas que basta que o Manuel ajude lá em casa, como se a tarefa fosse inerentemente tua e ele condescendesse simpaticamente em colocar a sua roupa no cesto da roupa suja, pensa novamente. Se não te sentes sobrecarregada com a dupla e tripla jornada do trabalho doméstico e familiar, pensa que, em média, as mulheres fazem 74% deste trabalho em Portugal. O teu pai trocava fraldas? O teu avô cozinhava? O que deixaram de fazer a tua mãe e as tuas avós para que tu pudesses crescer?
Se alguma coisa destas te incomoda – assumo que esta leitora tenha em si alguma empatia – não podes dizer que não és feminista. Tudo o que mudou foi pela mão das feministas. Com todas as letras, sem medo de serem apelidadas de histéricas, prostitutas, frígidas, chatas. Elas fizeram isto por nós. Não dês o teu voto a quem quer desfazer. Não sejas uma indiferente.
Vivo, sou militante – dizia o Gramsci no final do já citado texto. Não nos deixemos enganar ou conformar. Acrescento: Vivo, sou feminista.