Estratégias de manipulação utilizadas por quem abusa, consequências da violência sexual, a identificação de sinais de abuso e os obstáculos à partilha são alguns dos tópicos abordados no guia, intitulado Princípios básicos para a prevenção da violência sexual contra crianças: conhecer, identificar e agir. Em entrevista ao Gerador, o presidente da Quebrar o Silêncio, Ângelo Fernandes, explica que, apesar de existirem profissionais cada vez mais conscientes e sensibilizados para a importância da prevenção, nem sempre possuem os conhecimentos necessários para agir. “Nas formações que organizamos, sentimos sempre que não há uma consolidação de algumas noções base, e é preciso garantir que todos e todas temos os mesmos pressupostos”, sustenta.
Tendo em conta a natureza pública deste tipo de crimes, Ângelo Fernandes destaca que a “denúncia é um dever” e uma “responsabilidade profissional” para quem trabalha com crianças. Ainda assim, o fundador da Quebrar o Silêncio, associação que, desde 2017, presta apoio especializado a homens e rapazes sobreviventes de violência e abuso sexual, dá conta de que é comum muitos destes profissionais não saberem o que fazer se tiverem suspeitas de que um menor esteja a ser ou tenha sido vítima destes crimes.
Quando, nas escolas, a associação questiona os profissionais sobre o que fariam se soubessem da existência de um caso de abuso sexual, as respostas são diversas. “Dizem que falariam com a direção ou com a psicóloga da escola ou com a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CPCJ)”, explica Ângelo Fernandes, “as respostas são tão variadas, que depois a incerteza sobre o que fazer acaba por prolongar o abuso, e é importante perceber que quem investiga [estes casos] é a Polícia Judiciária”.
Para a Quebrar o Silêncio, é fundamental que quem trabalha com crianças e jovens possa refletir sobre as diferentes dimensões e complexidades destes tipos de violência. “Nada na violência sexual é direto, não há uma fórmula [para a prevenção] que se consiga aplicar e, por isso, é importante as pessoas refletirem acerca das ideias que têm [sobre a violência sexual] para perceberem que podem ser desfasadas do que é a realidade”, defende o presidente. Nesse sentido, a desconstrução de mitos e crenças em torno da violência sexual contra menores também assume um lugar de destaque na publicação.
Ângelo Fernandes refere que os recursos que, de forma direta ou indireta, responsabilizam as crianças pela prevenção destas formas de violência ainda são comuns. O fundador recorda, por exemplo, o jogo do semáforo, que indica às crianças quais são as zonas vermelhas do corpo, em que devem dizer aos adultos que não podem tocar, as áreas verdes, em que podem tocar, e as amarelas, talvez. “O amarelo é muito ambíguo e aquilo que para as pessoas adultas é claro, para as crianças pode não ser. Aliás, no caso de adultos que abusam de crianças, [estes] não vão respeitar as suas vontades”, explica. “Nesse sentido, estamos a responsabilizar as crianças, e a responsabilidade cabe sempre aos profissionais, às instituições onde elas estão, às famílias, e ao Estado português.”
Segundo os dados do Conselho da Europa, cerca de uma em cada cinco crianças são vítimas de algum tipo de violência sexual até atingirem a maioridade. O presidente da Quebrar o Silêncio alerta, no entanto, que esta é uma estatística desconhecida por muitos profissionais e pela sociedade em geral. “Estamos realmente a falar de números assustadores e é necessário começar a desocultar [o problema] cada vez mais, porque é no silêncio que os abusadores ganham confiança e liberdade para avançar. Quanto mais falarmos de uma forma educativa e informativa, estamos a retirar poder aos abusadores”, enfatiza.
O presidente da Quebrar o Silêncio sublinha que os mitos e crenças existentes em torno da violência sexual estão muito presentes em todas as pessoas, até nas vítimas. Ângelo Fernandes explica que, muitas vezes, são estas ideias que minam a forma como se pensa sobre os abusos, e como pessoas amigas, familiares e profissionais recebem partilhas de casos de violência sexual. “Também temos ideias completamente desfasadas de quem é que abusa: ainda subsiste muito a ideia de que são estranhos desconhecidos, com um ar suspeito, perigoso e asqueroso, que vai abusar de uma criança num beco escuro”, exemplifica.
Na realidade, a maioria dos abusadores são adultos conhecidos das crianças, que fazem parte da própria família ou constituem, de alguma forma, uma relação de proximidade e de confiança com a mesma. Segundo os dados do último Relatório Anual de Segurança Interna (2022), referentes ao abuso sexual de crianças, 53,8% dos arguidos tinha uma relação familiar com a vítima, e 23,6% era um conhecido da mesma. “Enquanto não conseguirmos começar a desconstruir estas ideias erradas, e começarmos a construir um conhecimento que seja sólido e comum às pessoas, não conseguimos abanar este silêncio, e [este] acaba por se tornar num ciclo que se auto-alimenta”, declara Ângelo Fernandes.
O guia foi apresentado no dia 30 de novembro nas II Jornadas sobre Violência Sexual, no auditório das Águas de Portugal, em Lisboa, e já se encontra disponível no site da Quebrar o Silêncio. A publicação conta com o apoio de várias entidades, tais como a Polícia Judiciária, a CPCJ e o Ministério da Educação, que vai distribuir o guia pelas escolas portuguesas.
Podes consultar o guia, ao clicar, aqui.