A 2 de março, ao destruir uma torre de televisão em Kyiv, as bombas do exército russo caem na zona da ravina de Babi Yar - e do memorial ao Holocausto que lá se encontra. Propositado ou não, este bombardeamento, na zona de um dos maiores massacres de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, é dolorosamente simbólico de uma guerra que, na realidade, nunca serviu para “desnazificar a Ucrânia”.
Recuemos um pouco. No calor de uma invasão que tem sido sustentada através do uso da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto como armas retóricas, convém convocar a História. Em junho de 1941, no contexto da operação Barbarossa, o projeto nazi de conquistar e subjugar a União Soviética, a Ucrânia é ocupada. Pouco depois, as organizações ultranacionalistas de extrema-direita ucranianas, à semelhança do que aconteceu em países como a França, Holanda, Noruega, Croácia ou a Roménia, começaram a colaborar ativamente com a Wehrmacht, as SS e com os Einsatzgruppen (esquadrões responsáveis pelas execuções em massa de pessoas judias, roma, polacas, soviéticas, etc). Estima-se que cerca de 250 mil ucranianos - provenientes de organizações como a Organização dos Ucranianos Nacionalistas, que acalentavam o desejo, que sairia gorado, de uma Ucrânia independente sob a esfera do terceiro Reich - colaboraram ativamente com a política genocida nazi através da integração da Polícia Auxiliar Ucraniana ou de divisões das SS e Einsatzgruppen. Em Lviv, um pogrom com auxílio de colaboracionistas levou à morte 7 mil judeus e, a 29 e 30 de setembro de 1941, na ravina de Babi Yar, estimam-se que cerca de 33 mil judeus tenham sido assassinados por membros das Wehrmacht, das SS e da Polícia Auxiliar Ucraniana. Se tudo isto é verdade e não deve ser esquecido, não podemos deixar de lembrar igualmente que 4.5 milhões de ucranianos combateram no Exército Vermelho, fazendo frente à ocupação nazi, que cerca de 250 mil integraram redes partisans de resistência à ocupação, cerca de 2 milhões foram trabalhadores forçados e que se estima que cerca de 6 milhões de ucranianos perderam a vida durante a Segunda Guerra Mundial - um dos números mais altos de mortos de entre as várias antigas repúblicas soviéticas. É esta parte que, convenientemente, a propaganda russa tende a omitir.
Vladimir Putin, autocrata de extrema-direita, referindo-se seletivamente a esta história do século XX, procura assentar a sua guerra de expansão imperialista no pressuposto de uma “desnazificação” da Ucrânia moderna. Vejamos, então, que estudos recentes têm vindo a revelar que, contrariamente ao veiculado pela propaganda de Putin, os partidos de extrema-direita ucraniana - que se reivindicam herdeiros de Stepan Bandera (líder ultranacionalista e fascista) e das organizações ultranacionalistas e colaboracionistas que liderou nos anos 1940 - têm uma expressão eleitoral altamente reduzida na Ucrânia. No entanto, não deixa de ser legítima a preocupação de vários académicos e ativistas com a atividade destes grupos neo-nazis, nomeadamente das suas milícias armadas, com a sua participação crescente na esfera pública desde 2014 e com a reabilitação de símbolos ligados a Bandera. Essa preocupação não legitima nunca a invasão de um país soberano, o assassinato, a guerra e o esmagamento da autodeterminação de um povo.
Viremos, agora, o nosso olhar para Vladimir Putin. Neste dias, muitos foram os que tentaram colar o presidente Russo à esquerda portuguesa. O autocrata que se senta no Kremlin, na realidade, nada tem que possa ser de esquerda. Por um lado, foi sempre um fiel amigo da extrema-direita europeia: de Salvini a Le Pen, passando pela alemã AFD ou pelo déspota húngaro Viktor Orban. Numa conferência internacional, chegou a elogiar as “qualidades masculinas” de Bolsonaro. O próprio Putin, ao longo de duas décadas no poder, perseguiu e prendeu opositores, liderou uma economia oligárquica e profundamente corrupta, restringiu os direitos das pessoas LGBT e perpetuou um discurso oficial que remete as mulheres para o papel de mães e de domésticas. No seu projeto de expansão imperialista, iniciou uma guerra injustificável. Uma posição de esquerda será sempre contra Vladimir Putin e todos os que atentam contra os direitos humanos, a autodeterminação dos povos e a paz.
A memória do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial, complexa como se nos apresenta, não pode nunca servir para legitimar qualquer tipo de ocupação ou invasão. Pelo contrário, lembrar os que perderam a vida às mãos e na luta contra a tirania e a violência do racismo, é um instrumento para reconhecer a violência intrínseca de qualquer imperialismo ou da xenofobia. O Holocausto e a Resistência nunca serão justificações morais aceitáveis para quem quer fazer a guerra. Que saibamos ativar a sua memória criticamente para lutar contra todo o belicismo, toda a ocupação e violência xenófoba e ultranacionalista. Dizer “nunca mais” é condenar a invasão da Ucrânia, a ocupação da Palestina, a guerra no Iraque e Afeganistão, as intervenções criminosas na América Latina e o genocídio dos uigures na China.
-Sobre Leonor Rosas-
Estudou Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH. Está a fazer um mestrado em Antropologia sobre colonialismo, memória e espaço público na FCSH. É deputada na AM de Lisboa pelo Bloco de Esquerda. Ativista estudantil e feminista.