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Beatriz Nunes: “O patriarcado é um grande chapéu de chuva e estamos todos lá debaixo”

Se recuarmos uns bons séculos, ser mulher era o mesmo que não ter voz, enquanto…

Texto de Ana Margarida Paiva

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Se recuarmos uns bons séculos, ser mulher era o mesmo que não ter voz, enquanto ser homem era o mesmo que ser livre. Quando falamos na história das mulheres, falamos em desigualdade, discriminação, humilhação, em violência, mas não só. Falamos também de força, de resistência e, principalmente, de luta. Uma luta constante pela igualdade de género que parece infindável e que, embora tenha havido uma evolução considerável nos últimos anos, ainda hoje não chega a todos os cantos do mundo.

Em pleno século XXI, continuamos a ser confrontados com situações de discriminação de género sob diversos contextos e a música é um deles, onde a mulher se revela (quase) invisível. Recentemente, foi publicado no Jazz Research Journal um artigo sobre a presença da mulher no jazz português, intitulado Festa do Jazz: A case study on gender (im)balance in Portuguese Jazz [Festa do Jazz: Um caso de estudo sobre o desequilíbrio de género no Jazz Português], uma coautoria entre dois investigadores portugueses, José Dias e Beatriz Nunes.

O Gerador esteve à conversa com os autores, José Dias e Beatriz Nunes, ambos músicos, professores e investigadores, para falar sobre as principais motivações para levar a cabo este estudo e os resultados obtidos. No decorrer da conversa, procuraram ainda refletir e abrir espaço para um debate sobre o que realmente se está a passar em Portugal.

Gerador (G.) – Em primeiro lugar, como surgiu esta colaboração entre ambos?

Beatriz Nunes (B. N.) – Na minha perspetiva, posso dizer que foi a partir de um gesto muito generoso do José, porque eu ainda não tinha terminado o meu mestrado. Na altura, eu estava ainda a fazer a dissertação e o José contactou-me. O José, sim, estava a produzir um artigo sobre as questões da Festa do Jazz e, ao pesquisar sobre quem estava a tratar sobre a temática dos estudos de género relacionada com jazz, encontrou o meu nome. Foi assim que estabelecemos o primeiro contacto, em contexto de entrevista. No meu ponto de vista, essa entrevista foi muito interessante, porque, se calhar, foi das primeiras pessoas que conheci com um interesse quase tão grande como o meu. Não vou dizer que não tinha já conhecido outras pessoas interessadas, inclusive uma orientadora ou o próprio Carlos Martins que organizou a primeira conferência sobre jazz e género. Porém, houve qualquer coisa na nossa conversa que me fez sentir que estávamos muito alinhados, que estávamos a falar a mesma língua. Havia coisas que eu dizia que não eram contrapostas, foi uma dinâmica bastante orgânica. Depois, o José dizia: “eu quero citar onde estás publicada”, ao qual eu respondia: “mas eu não estou publicada, nem acabei o mestrado”. Um dia, ele abriu o artigo e perguntou: “e se pensarmos numa coautoria?”. Evidentemente, isto foi discutido com a editora, que aceitou esta proposta do José e, a partir daí, começámos a trabalhar em conjunto, mas pensámos no artigo de outra forma: “e se fizéssemos uma análise dos programas todos e olhássemos mesmo para os números?”. Foi isso que aconteceu.

G. – O que te levou a escolher também este tema para a tua dissertação de mestrado?

B. N. – Veio do próprio contexto do mestrado, mais precisamente da disciplina de metodologias em que nos foi dito: “procurem”. Eu achei esta ideia de investigação interessante, porque é algo que deve partir de problemas em que olhas à tua volta e para os quais ainda não houve resposta. Identifiquei vários, mas houve um que se destacou. Todo o meu percurso no jazz foi sempre feito em grande isolamento, em termos de género, isto é, estava sempre muito rodeada de homens e poucas mulheres e, portanto, levantei a questão: “porquê?”. Claro que esta pergunta é muito complexa e muito difícil, é a pergunta que toda a gente faz. Depois, acabei por me concentrar na questão da educação, que me parece um contexto particularmente importante na formação de mais mulheres. O meu estudo foi tentar perceber as autoperceções das alunas e alunos. Fiz uma comparação sobre a confiança em relação à improvisação, se havia diferenças ou não, bem como as experiências de ansiedade em relação também à improvisação. Conclui que, de facto, os rapazes são muito mais confiantes e as raparigas muito menos confiantes e têm muito mais experiências de ansiedade. Isto são preditores não cognitivos, preditores sobre o sucesso das aprendizagens e sobre a motivação na continuação das aprendizagens.

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Beatriz Nunes. Fotografia de Rita Carmo
G. – Publicaram recentemente um artigo no Jazz Research Journal, em que se debruçam sobre a presença de mulheres no jazz em Portugal. O que vos levou a querer estudar esta temática?

José Dias (J. D.) – Este artigo, em particular, veio de um convite que me foi feito para participar numa edição especial de uma revista muito conceituada de estudos de jazz. Inicialmente, a ideia era dar uma perspetiva do jazz português no geral. Entretanto, com a editora, começámos a perceber que seria mais interessante focarmos, como estava a dizer a Beatriz, numa pergunta que precisasse de ser respondida e levantasse outras perguntas. Escrevi um livro, juntamente com o Gonçalo Frota, jornalista do Público, sobre a Festa do Jazz. O livro estava dividido em três partes — o passado, o presente e o futuro do festival. No futuro, colocámos sobretudo três questões e uma delas era a questão das mulheres. Peguei nisso, achei que seria muito interessante. Depois, como a Beatriz disse, comecei a procurar quem é que estava a trabalhar nisso para poder ter alguma fundamentação. O estudo veio sobretudo dessas questões que a Beatriz já mencionou. Estamos muito contentes com o estudo por ser tão relevante na academia portuguesa.

G. – Utilizaram a Festa do Jazz como o vosso objeto de estudo. Alguma razão em concreto por detrás desta escolha?

J. D. – A Festa do Jazz é um bocadinho diferente das restantes festas, porque é uma espécie de showcase anual do que se passa no jazz em Portugal. Há esse lado que é interessante, não é melhor nem pior do que os outros, é apenas diferente nesse sentido. Depois tem também uma grande diversidade de oferta. Para além de espetáculos de artistas mais consagrados e workshops, também tem a competição das escolas de jazz, onde dá para ver as várias gerações, dá para ver músicos que são ainda estudantes, músicos que são principiantes, músicos já estabelecidos, músicos já com carreira internacional e alguns poucos músicos internacionais. Diria também que a ecologia à volta da Festa do Jazz também é interessante. As conversas informais e formais que se fazem e as conversas abertas sobre os diversos temas. O Carlos Martins (Diretor Artístico da Festa do Jazz) tem feito um trabalho interessante nesse aspeto e tem promovido debates sobre o racismo no jazz ou o lugar da mulher no jazz. É um festival que nos pareceu ideal para percebermos aquilo que está a acontecer no jazz em Portugal.

Vale a pena destacar que, embora seja um estudo de caso de um festival e, neste caso, sobre jazz em particular, não é sobretudo no jazz que isto acontece. Estive a liderar um projeto que aconteceu em São Paulo com 12 músicas de vários géneros da região de São Paulo e os problemas são exatamente os mesmos. É sempre a mesma narrativa de que não há mulheres suficientes. Existem histórias de mulheres que entrevistámos nos diversos projetos em que estamos envolvidos que são absolutamente assustadoras.

G. – Para chegarem aos vossos próprios resultados tiveram de passar por métodos e parâmetros. O que tiveram em conta?

B. N. – Nós partimos de todas as programações impressas e analisámos cada nome masculino como uma participação masculina e cada nome feminino como uma participação feminina. Por vezes, tens o mesmo nome no festival a participar duas ou três vezes e, nesse caso, mesmo sendo a mesma pessoa ela conta duas ou três vezes nesse festival. Basicamente, nós contámos e avaliámos números de participação. Foi tudo bastante complexo, pois fizemos esta leitura por ano e, depois, fizemos a média de todos os anos. Fizemos por ano para tentar perceber se havia alguma tendência de crescimento, que nós inicialmente estávamos otimistas que fossemos encontrar. No entanto, não é muito consistente. De facto, há um crescimento até uma certa altura, depois volta a cair e os últimos anos são percentagens bastante baixas. Depois, analisámos também o número de mulheres instrumentistas em comparação com mulheres cantoras e fizemos o mesmo procedimento para as escolas.

J. D. – Fizemos também uma contextualização histórica do jazz em Portugal para que se percebesse onde estamos e porque é que estamos aqui, neste momento. Acho que isso também deve ser tomado em conta, porque cada país tem a sua história. No caso de Portugal, foi um dos países pioneiros no mundo em termos de feminismo, no início do século XX, e, depois, houve um fechamento muito grande com a ditadura. Diria que fechar mentalidades é muito mais eficaz do que abrir mentalidades. Depois, houve ali pelo meio uma luta muito grande pelos direitos das mulheres.

Portanto, a primeira parte tenta explicar que o jazz é uma realidade no meio de uma realidade nacional e histórica bastante mais lata. O estudo passou, então, pela contextualização, estudo do caso, dados e a questão quantitativa e qualitativa da análise desses dados. No fim, apontamos algumas possíveis direções no futuro, isto é, questões que achamos que são prementes e que são muito importantes verem-se resolvidas. Estratégias essas que não são muito populares.

B. N. – Sim e como nós não acompanhámos a segunda vaga feminista anglo-saxónica francesa, acabámos por perder esse comboio, portanto, depois, quando finalmente há a possibilidade de ter qualquer coisa parecida, encontramos um contexto português social e político altamente conservador e antifeminista. Isto sabe-se também pela entrada dos estudos de género na academia em Portugal, que foi difícil e ainda o é — ainda não é uma coisa pacífica e adquirida, há alguma resistência. Porém, a nível internacional, este assunto é muito mediático e tem vindo a ser cada vez mais em Portugal.

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José Dias. Fotografia de Rita Castro
G. – Dada por terminada essa fase, comprovam que existe uma grande discrepância de género e uma baixa participação de mulheres no jazz nacional. Mais detalhadamente, que resultados e conclusões obtiveram com este estudo?

B. N. – Reforçando a questão das escolas, de ver os vários níveis, pego já no papel de programação. Uma das conclusões a que nós chegámos, justamente, é que a maior parte das mulheres programadas decorre de iniciativa direta da programação, o que nos permite refletir sobre as dinâmicas de participação. Portanto, o que começámos a ver no festival é que a maior parte dos grupos são exclusivamente masculinos e quando aparecem mulheres como cabeça de cartaz, logo iniciativa direta da Festa do Jazz, os seus grupos são constituídos exclusivamente por homens.

J. D. – Aliás, esse é um aspeto que agora está a ser discutido a nível europeu. Há um manifesto, Keychange, que alguns festivais europeus, de jazz sobretudo, assinaram e que consiste basicamente em ter cabeças de cartaz, em número igual, de mulheres e homens. Contudo, o que acontece é que quando uma cantora vem, é uma mulher com mais quatro ou cinco homens em palco. Portanto, não se está a contribuir para a igualdade de género.

B. N. – Outra coisa que o estudo nos permitiu ver foi uma franca genderização do papel musical, ou seja, quando falamos de mulheres, falamos muitas vezes de cantoras. Verificámos uma discrepância ainda mais profunda quando olhamos para o papel de instrumentistas. Portanto, o estudo também nos permitiu olhar para isso, quer na programação do cartaz, quer nas escolas. Há uma genderização da prática que associa o instrumento ao masculino e a voz ao feminino.

J. D. – Para além de que as formações das escolas são orientadas, sobretudo, por homens. Em relação a isto, a questão não é só dos números. Nós baseamo-nos muito em números, mas não são só números, porque temos visto mulheres à frente de festivais, que continuam a fazer festivais da mesma forma, o mesmo com escolas e formações em cima do palco. É por isso que tanto quero sublinhar a questão de que isto é transversal a homens e mulheres. Tenho visto homens muito mais feministas a programar festivais do que algumas mulheres. A solução não é só colocar mais mulheres, esse é um primeiro passo, sim, pela questão de igualdade. No entanto, o passo seguinte é informar bem as nossas decisões em termos de curadoria.

B. N. – Sim, mas, neste ponto, acho que é sempre complicada a questão da replicação do patriarcado ou do racismo, por exemplo. Há uma negociação de identidade muito difícil que é preciso também equacionar, sendo uma minoria, agora focando só na questão de género das mulheres. Sendo uma minoria num contexto muito masculino é realmente um risco. É compreensível que muitas mulheres, quer de gerações mais antigas, quer de gerações atuais, inconscientemente ou conscientemente tenham optado por colaborar, no sentido em que era a sua sobrevivência em causa. É como o José diz, é uma coisa transversal a homens e mulheres, o patriarcado é um grande chapéu de chuva e estamos todos lá debaixo. Também sou uma feminista em construção, tenho aprendido muito neste processo, continuo a aprender e há muitas coisas que são tão naturalizadas, entendes? Quando são naturalizadas tu nem entendes que elas são discriminatórias, e isso já me aconteceu em entrevistas com algumas mulheres do jazz, a quem perguntei se sentiam que tinham sido discriminadas e que me responderam que não. No entanto, já tinham sofrido assédio sexual. Há aqui uma ideia de que o assédio sexual não é bem uma discriminação. Nós falamos disso no nosso artigo, justamente. Eu levantei a questão ao José dos bystanders [papel de testemunha] que são maioritariamente masculinos, e que, por exemplo, podem não ser eles que estão ativamente a perpetuar um comportamento discriminatório, mas ao não tomarem uma posição com os seus colegas, ao não bloquearem discursos discriminatórios, ao não serem ativamente aliados, estão também a colaborar na perpetuação da discriminação.

J. D. – Era o que eu queria dizer no princípio. Os homens têm de tomar uma posição. Em parte, sinto-me responsável, percebes? Estou na música há tantos anos e vi muita coisa. Por vezes, pode ser só uma coisa que parece tão inocente, como anedotas acerca da mulher no jazz e há milhares, e, o facto de eu só assistir e estar a rir-me delas, faz-me cúmplice e culpado. Isso dá-me força para querer mudar e querer chamar a atenção da malta à minha volta. Como os ingleses dizem, é aquela coisa de nos pormos nos sapatos dos outros. Se eu me puser nos sapatos daquela mulher que estava a ser bombardeada com anedotas sobre a sua incapacidade enquanto música só porque é mulher, é horrível e eu não queria passar por isso.

B. N. – Eu queria chamar a atenção também para o facto de haver muita gente que ouve isto e diz: “lá estão eles com a cultura do cancelamento”. Contudo, isto não é cultura de cancelamento, isto é cultura de responsabilização e consciência. Aqui, a questão é que nós devemos pensar de quem é que nos rimos, há sempre aqui uma relação de poder. Eu quero-me rir do mais fraco ou quero-me rir do mais forte? Eu posso escolher no que estou a colaborar, o que eu estou a perpetuar. Por vezes, as pessoas acham que a crítica é cancelamento, é radical. Ela é radical no sentido que pretende uma transformação radical, idealmente, se calhar utópica. Se calhar, esta coisa da igualdade é uma utopia. Nós somos uns sonhadores, talvez, e com estes pequenos passos tomados de consciência vamos caminhando na direção para onde queremos caminhar.

G. – O que acham que pode ser feito para alterar esta situação?

B. N. – No fim [do estudo], damos precisamente algumas pistas para o futuro. Desde já, falta estudar muita coisa. Este é um primeiro estudo, falta apurar não só dados quantitativos, mas sobretudo qualitativos. Vale também reforçar que, de facto, a transformação desta realidade passa pela educação, pelas políticas de programação, pelas políticas da indústria, sendo que a indústria já é um bolo maior, onde metes a crítica, os agentes ou o management. Outra coisa que se fala no artigo é a questão da falta de management das mulheres, mulheres instrumentistas terem mais dificuldade em serem representadas do que homens. Agora também vou fazer uma apologia ao ativismo, pois acho que são muito importantes os pequenos movimentos de mulheres e aliados. Por exemplo, a Rita Maria Martins vai fazer o festival Theia, que é inédito em Portugal. Trata-se de uma iniciativa com o centro cultural da Mala Posta, um festival dedicado a projetos liderados por mulheres. Isto, para mim, são tudo indicadores de mudança, de transformação.

J. N. – Acho que é preciso ter noção de que não dá para fazer tudo e que as coisas têm de ser graduais. Este é só o primeiro passo, é só o primeiro estudo e, portanto, é preciso um estudo de fundo em Portugal sobre o papel da mulher na música. Isso levanta questões, porque parte da academia também é muito patriarcal, parte de quem atribui financiamento para investigação também é patriarcal. Outro problema é achar-se que, a partir do momento em que alguém está a fazer um estudo, o problema está resolvido. O terceiro problema, também é muito grave — haver uma ideia, às vezes, de que as pessoas possuem determinadas áreas de saber e eu acho que temos de começar a partilhar um bocadinho mais um estudo com as nossas experiências.

Acho que a chave para nós percebermos o que está a acontecer com o jazz em Portugal e não só, é termos também equipas equilibradas de cientistas sociais, como é o nosso caso. Por exemplo, não termos só mulheres a escrever sobre o nosso estudo, porque até agora só mulheres jornalistas é que se interessaram. Tem de deixar de haver esta espécie de gueto nas redações em que as mulheres jornalistas são as que escrevem sobre questões femininas ou sobre mulheres no jato e os outros tratam das outras coisas.

B. N. – Eu acho que isso faz todo o sentido, porque isto tem muito que ver com o lugar de quem constrói o discurso. O conhecimento nunca é uma construção neutra, vem sempre informado da tua experiência e contexto. Há pouco tempo li uma coisa que dizia assim: “de facto a neutralidade é impossível, mas devemos desenvolver o ceticismo” e achei piada. Ou seja, não vamos ser neutros em relação à realidade, mas devemos ser céticos. É bom promover uma posição de ceticismo, de crítica, no fundo. Para além disso, considero também muito importante que os problemas não sejam só levantados por homens brancos, cisgénero, heterossexuais.

J. D. – Se olharmos para a história do jazz, que agora já começa a ter mais de 100 anos, vemos que não está feita de pessoas que tocam muito rápido e tinham muitos gigs [concertos] em clubes. A história do jazz está feita de pessoas que tomaram posições e que transformaram a história, não só pela música que tocavam, mas pelas posições que tomavam em termos de direitos cívicos ou racismo. É um convite que faço a todos os meus amigos músicos, sobretudo masculinos, para repensarem um bocadinho. Basta cinco minutos para pensar o que é que eu estou aqui a fazer, que tipo de público eu tenho, porque é que estão aqui mais homens do que mulheres, porque é que eu não tenho uma única mulher em cima do palco e, aos poucos, irem tentando fazer a diferença.

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Festa do Jazz '21. Fotografia de Vitorino Coragem
G. – Considerando as conclusões a que chegaram, este artigo pode surgir como uma espécie de alerta e/ou incentivo para a mudança. Era esse o vosso objetivo?

B. N. – Diria que é uma missão. Quando estudas esta questão, tens a missão, eventualmente, de transformar a realidade, ou seja, não é só um exercício intelectual. É interessante perceber como é que se pode pegar nestes resultados e aplicá-los para uma transformação. Este valor da igualdade é um valor que não é também universal no mundo. A nossa cultura acredita neste valor da igualdade, um valor que vem da Revolução Francesa. Acho muito interessante a história do conceito de igualdade, porque, até à Revolução Francesa, os próprios filósofos defendiam que o ser humano era todo diferente. Depois, há uma transformação política e social a partir da Revolução Francesa, em que começaram a defender a sua ontologia e a sua essência, de que os seres humanos são iguais. Portanto, temos esta herança da Revolução Francesa que nos faz acreditar que somos iguais, então nós tentamos caminhar para isso. Na cultura ocidental em Portugal, há a ideia dominante de direitos humanos, que são ideais. Não temos de ter medo desta palavra — “ideologia” —, parece uma palavra muito assustadora, mas não o é. É um conjunto de ideias que defendemos e através das quais baseamos o nosso comportamento. No fundo, é isso, por isso, sim, há uma missão de transformação.

J. D. – Atualmente, o investigador é diferente. É um investigador que deve ter causas. Temos uma responsabilidade cívica e social. Se a investigação das ciências humanas não tem uma preocupação muito grande e não serve a humanidade e a mudança para melhor, não faz sentido. Tenho 40 anos de doutoramento e já me apareceram com ideias fenomenais, mas têm que ver com eles próprios e isso é nulo. Isso não é ciência. Portanto, tem de haver sempre aquilo que aqui se chama “a ponte” entre a academia e a sociedade civil. Se não houver essa ponte, a academia deixa de fazer sentido.

B. N. – É também esta missão de como é que a produção de conhecimento vai beneficiar toda a gente. Por exemplo, o meu doutoramento é financiado pela FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia] e sinto uma enorme responsabilidade de dar alguma coisa em troca. Está a investir-se para que eu produza conhecimento, que idealmente se vai traduzir numa melhoria de vida para as pessoas.

G. – Feito este estudo, que incluiu uma vasta pesquisa bibliográfica, o que têm a dizer sobre a documentação da presença de mulheres nesta área?

B. N. – Olha, há um livro muito interessante da Filipa Lowndes Vicente chamado A Arte Sem História, que mostra que a documentação histórica dificulta, para já, uma coisa importantíssima, que são os role models. Portanto, a ideia de que há modelos com os quais eu me posso identificar e que observo na história. Há outras mulheres a estudar bateria, há outras mulheres que são protagonistas de movimentos históricos no jazz. Isso é ausente, não há essas figuras de relevo histórico, está muito mal documentado. Por outro lado, reforça a ideia de invisibilidade, de que as mulheres nunca existiram, mas, na realidade, o que acontece é que elas não foram documentadas. Depois, há uma série de trabalhos, até, às vezes, chamados compensatórios, de história compensatória, que vão realmente tentar recuperar arquivos e claro que encontram imensa coisa. Aliás, havia muitas bandas só de mulheres na altura da Segunda Guerra Mundial, justamente porque muitos homens das orquestras grandes estavam overseas, estavam a lutar. Então, esses lugares eram ocupados por mulheres, mas a História não as observou como verdadeiras bandas. Eram exóticas, eram pitorescas, eram umas senhoras a fazer umas coisas engraçadas. Não foi observada relevância histórica e, portanto, não ficou documentado. Isso replica a invisibilidade e essa falta de documentação que também dificulta que mais raparigas ingressem em estudos de jazz, observem o jazz como uma escolha que faça sentido. Há essa estereotipia de género sempre muito associada ao masculino, também na documentação histórica.

J. N. – No presente, também temos de mudar isso. Estou, agora, envolvido como editor num livro em que a Beatriz vai também fazer parte com um capítulo. O livro vai sair pela Oxford University Press e vai-se chamar Women and jazz european perspectives. Todos os capítulos vão ser escritos por mulheres investigadoras, porque achamos que fazia falta também isso, fazia falta a perspetiva feminina sobre a história, sobre os fenómenos atuais do jazz. Vamos incluir, também, uma jornalista e promotora e vamos apresentar conferências. Faz falta isto. Contudo, as coisas estão a acontecer, por exemplo, a Marie Buscatto, uma investigadora francesa, acabou de publicar um livro muito importante sobre as mulheres no jazz, sobretudo, na França. Saiu também recentemente um estudo de um querido amigo austríaco sobre a mulher na história do jazz na Europa. Portanto, as coisas estão a começar a acontecer.

Texto de Ana Margarida Paiva
Fotografia de Vitorino Coragem via Facebook Festa do Jazz

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