A norte do país, entre a Póvoa de Varzim e Vila do Conde existem dois lugares que, durante anos, viram pescadores saírem para mar alto: Poça da Barca e Caxinas. Abel Coentrão nasceu em Caxinas, é filho, neto e familiar de pescadores poveiros e caxineiros e cresceu num Portugal em transição, num Portugal pós-25 de Abril que foi deixando, de forma muito rápida, a arte da pesca. Apesar de ainda ter um irmão e primos pescadores na família, a sua geração foi a primeira em que não “ir ao mar” aconteceu com alguma naturalidade, mas o desejo de recuperar uma história com a qual ainda cresceu, fê-lo, em 2012, com outros filhos de pescadores, criar a Bind’ó Peixe uma Associação Cultural e de defesa do património de Caxinas e Poça da Barca.
O nome é a primeira forma de recuperar as memórias e manter vivo o que ainda resta. “Bind’ó Peixe” (Vinde ao Peixe) é um pregão que ainda se ouve no centro da cidade de Póvoa de Varzim, onde vive. “Há uma senhora que passa aqui a vender peixe na rua, com um carrinho de mão, um atrelado, e quando passa por zonas de casa onde quer atrair a atenção dos moradores, começa a gritar “binde ó peixe”, repetidamente, depois diz o que tem, ora sardinha, ora carapau”, conta o jornalista e presidente da associação, Abel Coentrão, ao Gerador, fazendo a analogia desta tentativa de chamada de atenção para vender algo, com a chamada de atenção para o peixe que a Associação vende – o património e a cultura da zona.
Caxinas é, como muitas outras comunidades que se construíram à volta da pesca, um poço de memórias. Abel não tem a certeza de se esta é a maior comunidade do país ou não, como muitas vezes ouve dizer, mas tem a certeza de que, é uma das maiores, e que em cada porto de Portugal continental e ilhas, há um caxineiro ou vestígios de Caxinas. Segundo o jornalista, a pesca continua a ter um peso muito forte naquela zona, alimentando atividades em terra, como a dos estaleiros de construção naval que chegaram ao século XXI. Há uma identidade poveira, e consequentemente de Caxinas e Poça da Barca, que Abel vai puxando durante toda a entrevista para nos explicar a importância desta zona do país para a pesca em Portugal, mas também para a criação de uma cultura marítima em Caxinas, começando pela forma como os caxineiros eram vistos. “Tivemos até há 30 anos um estigma. Quando cheguei à Universidade do Minho, em 1993, quando me identificava como sendo de Caxinas, as pessoas reconheciam Caxinas como sítio de gente dura, que podia fazer mal se não te portasses bem”, conta.
O povoamento de Poça da Barca, primeiro, e de Caxinas, a seguir, começa no final do século XVIII, “mas mais intensamente no século XIX”, a partir da “colmeia piscatória,” da Póvoa de Varzim, cujas praias começam a ser recomendadas pelos médicos, uma vez que as suas águas tinham uma elevada presença de iodo. A fama do sítio levou a que existisse uma pressão urbana sobre os territórios de pesca em terra, e as praias e dunas, onde antes se esticavam as redes, começaram a ser ocupadas com novos usos, obrigando as pessoas a rumar cada vez mais para sul (para Poça da Barca e Caxinas). Estes territórios, ainda que recentes, têm em si uma história já longa. Com uma vontade de afirmação destes dois lugares face à póvoa, que por várias vezes tentou puxar para si, administrativamente, estes lugares, mas também face à antiga vila ribeirinha, a atual cidade e freguesia urbana de Vila do Conde, a que pertencem.
Na linha cronológica que Abel nos traçou, existiu a vontade de criar uma freguesia a partir do núcleo piscatório, que não foi atendida. O que não impediu que uma identidade intrinsecamente ligada com o mar, não se formasse a li. Entre igrejas que se ergueram, cemitérios que se começaram a ocupar, blocos de casas que se construíram e ruas onde a vida acontecia e a camaradagem que se criava no mar era transportada para terra. A história da Vila foi-se cosendo, e foi-se criando uma comunidade reconhecida como tal, localmente e ao longo do país.
Foi sempre zona conhecida por naufrágios – Abel Coentrão apresenta-nos uma lista longa de tragédias – ou pelo menos onde existiam naufrágios existiam caxineiros. Essas tragédias deram lugar a que fossem também conhecidos por aventureiros. Quem nos conta as histórias acredita que esta também é uma entidade caxineira, a de “morrer demasiado no mar”. “A minha geração cresceu a ver muita gente a morrer no mar. Normalmente acontecia e acontece quando há muitos dias de temporal, muitos dias sem ir ao mar, ou seja, sem ganhar sustento. Depois o pessoal arrisca-se, também porque o pescado vale mais. É aquela ambição, ganância e às vezes necessidade, outras foi ambição com azar, outra ganância, e nessas não posso associar o azar. Mas sempre houve pouca cultura de segurança e muita cultura de risco. Acho que é aquela coisa que ainda herdamos dos antigos poveiros”, lembra Abel Coentrão. Notanto que, felizmente, a segurança vem sendo uma preocupação dos mais jovens.
Hoje, quem por Caxinas passa, dificilmente encontra vestígios dessa maritimidade. Hoje, a maioria dos pescadores trabalham noutros portos e regressam ao fim de semana. “Já não existe o antigo salva-vidas que foi destruído no final dos anos 70, mas ainda chegou a servir de sala de aulas. Outras coisas que tínhamos que nos ligavam ao porto antigo, como a rampa de entrada, foram também destruídas. O Pólis destruiu a casa da guarda fiscal […]”, lamenta Abel que recorda um momento em que um habitante da zona, “com uns 30 anos”, lhe perguntou o que era, talvez um dos últimos vestígios desse portinho, o antigo farolim – “O património piscatório desapareceu […] está lá apenas um farol que hoje serve de prancha para os miúdos saltarem para a água na maré cheia e, mais recente, a famosa igreja em forma barco que foi construída nos anos 80. Não é património, ainda, mas numa comunidade onde falta tudo o resto, onde não se nota nas ruas a presença de trabalho com pesca, passar por aquela igreja põe-nos a pensar o que fazem as gentes deste lugar”.
Há quase 10 anos, a Associação Bind’ó Peixe começou a palmear as ruas e a ir ao fundo das gentes para combater a falta de informação que existia. Apesar de terem uma sede, não existe em Caxinas, ou perto, um espaço onde possam expor o que têm encontrado e construído de braços dados com a própria comunidade. Por isso, voltaram ao sítio onde as memórias foram criadas – na rua e entre as pessoas. Ajudam interessados a fazer teses de doutoramento e mestrado, fazem cinema, criam exposições, vão a escolas, a encontros relacionados com a cultura marítima, e vão construindo e levando a Cultura de Caxinas até a quem a construiu e a quem não sabe que existiu – “Na Bind’ó Peixe tentamos perceber o que mudou e o porque mudou. A mudança está à vista de todos. O que nós precisamos de deixar para as próximas gerações são explicações para estas mudanças. Temos ajudado investigadores, que se interessam por este território a fazer teses de mestrado, abrimos-lhe a porta e levamo-las a pessoas. […] Nós surgimos numa comunidade famosa, grande, mas que lhe falta tudo, do ponto de vista cultural […] A comunidade não tem um equipamento, como um museu, onde possa fazer a sua autorrepresentação, e isso faz falta, porque, na verdade, quando tivermos isso, vamos estar a trabalhar o século XX como um passado longínquo, porque não sendo longe no tempo, do ponto de vista da memória e daquilo que é a imagem presente das coisas, está tudo longe porque não existe. Não existe uma única catraia na praia, por exemplo […]”, conta Abel Coentrão.
As catraias, derivações mais pequenas da antiga lancha poveira, já não vêm cheias de peixe, nem são motivo para que a multidão se junte para o receber. Mas a Bind’ó Peixe decidiu, em 2014, fazer a recriação da chegada de uma catraia à praia, num “teste” para entender até que ponto a memória continuava viva. Falou com pessoas mais velhas para reunir quem ainda tocou nas catraias daquele tempo e quem ainda tinhas as vestes da época, arranjaram a replica da catraia, em Esposende, e até tiveram os mais jovens a participar, como um que fez de guarda-fiscal. Houve “coisas engraçadas que correram bem, mas um desastre também”, brinca. Na altura de puxar a catraia para terra, explica, há que amarrar a uma corda à proa, mas amarraram a corda no sítio errado e destacaram uma peça do barco – as pessoas que em tempos faziam este ritual quase sem olhar, naquele dia precisaram de ajuda. Simularam ainda o leilão do peixe, e tudo aquilo que pintava a chegada de uma catraia.
É essa memória que a associação quer valorizar. “O trabalho da associação é tentar, por um lado, valorizar a memória, guardá-la, para poder explicá-la, mas ao mesmo tempo não deixa de haver um outro esforço que, para mim foi fazendo sentido: nós somos uma comunidade de rua, trabalhávamos na rua, as crianças estavam à volta, havia um espaço de liberdade tremenda, mas, como em todos os lugares no país, o desenvolvimento urbano e a monotorização segregaram os espaços”. Sente por isso, uma urgência no lembrar e ligar de um património que, mais do que físico, como a criação de espaços identificativos, é “um património das relações humanas”, o da vizinhança, o qual, segundo Abel, "é um património ao qual damos pouca importância, que se deteriorou, mas que é possível construir tendo como alicerce um passado comum”.
Um dos projetos mais recentes, Rostos da Maré, mostra exatamente esse passado comum através de 21 histórias. Com edição de Abel Coentrão, o livro, realizado em parceria com a Escola Superior de Media, Artes e Design, do Politécnico do Porto, para a Área Metropolitana do Porto, conjuga trabalho fotográfico contemporâneo, fotografias partilhadas pelos participantes e os textos resultantes de longas entrevistas feitas pelos jornalistas Ângelo T. Marques (Póvoa de Varzim), David Mandim (Vila do Conde) e Luísa Pinto (Matosinhos). Moradores de Matosinhos, Vila do Conde e da Póvoa de Varzim contaram as suas histórias de vida para um projeto que mostra as interdependências familiares, pessoais e profissionais fruto de um passado de pesca, essa tal cultura marítima. Como duas histórias que Abel conta: “Imaginemos uma pessoa que vive na Póvoa de Varzim e, numa tempestade é empurrada para o porto de Leixões. Na chegada, vê uma miúda que há de ser a sua futura namorada e mulher, que é também da mesma rua onde vivia, só que essa miúda tinha sido levada quando era criança pelos pais que, por necessidade, tinham ido viver para Matosinhos à procura de um porto mais seguro. Depois existe uma curiosidade como ter duas histórias seguidas, por puro acaso, de dois homens que perderam os irmãos no naufrágio do Cordeiro de Deus (um dos maiores desastres da zona, no início dos anos 80), e isto mostra como, tanto pela morte como pela vida, ligamo-nos todos”.
A associação “ainda tem muito por fazer”, diz Abel, mas tem sido um abraço para uma geração que se acha esquecida – “O feedback é emocionante porque estamos a falar de uma comunidade que tem pouca memória escrita, é uma comunidade de tradições sorais em que as coisas foram passadas de boca a boca, contadas nos dias de temporais em que não se ia ao mar. E existia também a sensação de que as vidas eram sempre trabalho. Há, inclusive, uma frase que funciona como mote, dita por um pescador que já morreu e que, numa das vezes em que conversávamos desabafava– “Nino, ninguém quer saber da nossa vida para nada!” – Havia e houve este corte geracional. As pessoas estão mais interessadas noutras coisas, antes existia uma reprodução social em que o pai era pescador e o filho ia ser também, agora o filho é doutor, e esse é um corte geracional profundo. Por isso, estamos a pegar em bocados de fio, a coser, a religar as pessoas […] Voltando ao Rostos da Maré, nota, por exemplo, que as pessoas que nele entram, nunca esperariam entrar num livro. Quando vêm fotografias suas, elas sentem uma gratidão enorme, e nós também ficamos gratos por ver isso acontecer e ver que as pessoas precisam disto. Há sempre uma reciprocidade neste trabalho”.
Questionado sobre se, mais do que um incentivo económico para que a pesca não acabe, é necessária uma valorização social e cultural da pesca, Abel responde que, atualmente, “a cultura está a ir atrás do turismo”, e não é isso que os move. Segundo o mesmo, a cultura e o património devem ser valorizados internamente porque é algo que identifica cada comunidade, mas assume que “aqueles espaços onde há um carácter e que está visível na rua, acabam por ser valorizados também do ponto de visto do turismo”. O jornalista e presidente da associação reconhece o potencial impacto das economias paralelas à do mar, mas que vão estando ligadas a este, “no desenvolvimento de novos produtos, serviços, hotelaria ligada ao alojamento local personalizado, as pessoas estão a perceber que vale a pena associar aspetos da cultura marítima às atividades em terra, e isso é um começo de algo”.
“Não é tudo por causa da Bind’ó Peixe”, sabe-o Abel, que acredita ainda assim que o ambiente criado pela associação e o facto de existir um reforço para a recuperação desta memória, leva a que as pessoas pensem e se lembrem desta cultura marítima e a tragam para terra. As comunidades piscatórias, não esconde, “estão em processo de dissolução por todo o país por razões externas e internas, pois representam uma organização social que está em desuso e certos aspetos, é própria das aldeias rurais […] estamos a tornar-nos em zonas urbanas onde apenas habitam pessoas nas suas casas”.
Entre a senhora que ainda vende peixe pelas ruas da Póvoa de Varzim e o grupo de Facebook onde todas as pessoas podem partilhar aquilo do qual ainda se lembram, relatos e fotografias – Bind’ó Peixe – Farol da Memórias de Caxinas e Poça da Barca –, a associação Bind’ó Peixe, assim como outras associações que preservam a memória da cultura marítima ao longo do país, vai costurando um trabalho, uma âncora, que mantém segura uma cultura que já não tem como fim o esquecimento.