Mãe,
Encontrei há uns dias numa caixa uma polaroid antiga. Dentro da moldura branca, a fotografia mostra-te sentada na cama em que dormi na minha infância, na casa que compraste para nós. Devia ter uns 4 ou 5 anos quando me ofereceram esta câmara fotográfica instantânea e desatei a fotografar os meus amigos que iam lá a casa, as minhas coisas, e te tirei esta fotografia a ti. Deves lembrar-te melhor do que eu. Esta fotografia tua sempre foi a minha favorita, desenhei-lhe uma moldura com marcadores à volta, porque as molduras da Barbie tinham acabado e eu achava que a tua tinha de ser especial.
Entre as muitas fotografias da minha infância, esta continua a ser uma das minhas favoritas. Naquela altura, éramos só as duas à mesa todos os dias e hoje sei que os dias nem sempre se passavam com leveza. Eu achava-te sempre tão bem resolvida que só duvidava que pudesses não estar bem quando não conseguias segurar uma lágrima que acabava por te escorrer pela pele. Eu chorava contigo.
-Porque é que estás a chorar?
-Porque tu estás a chorar.
Nunca soube bem se todas minhas amigas tinham uma relação com a mãe delas como a que eu sempre tive contigo. Nas primeiras vezes em que tive de falar sobre a minha casa, na escola, fingi que éramos três e não duas. Tinha medo que gozassem comigo, que não fossem compreender, e desenhei um avião com uma filha, uma mãe e um pai numa folha de papel quando o professor nos pediu para dizermos como tinham sido as minhas férias. O colega que estava ao meu lado na mesa disse-me “mas os teus pais estão separados, porque é que os desenhaste aos dois?” Também não sei porque é que o fiz — talvez porque não me fez sentido dividir a meio a folha e desenhar-me contigo, na praia, em Vila Praia de Âncora, e na outra metade, com o pai a passear por Espanha.
Lembro-me recorrentemente dessa pergunta e do meu primeiro ano na escola primária, porque te comecei a ver outra vez com outros olhos. Comecei a falar de ti com uma grande admiração. Eras o que eu queria ser.
Tenho estado a ler um livro de que já te falei, “Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país”, da Ana Cristina Pereira. A certa altura, ela pergunta à mãe “o que é que sonhou para si que, não conseguindo, sonhou para nós?”. Sublinhei esta frase porque senti que nela cabia a mãe que sempre foste. Sonhaste para mim o que talvez nem tivesses sonhado para ti. E eu tenho passado a vida a sonhar em ser como tu. Lembras-te daquele trabalho final que fiz no secundário e me emocionei a apresentar perante o júri quando olhei para ti? A professora cerrou os olhos para eu me compor porque não podia mostrar fragilidade, não era momento para isso. Mas eu não consigo falar sobre ti sem me emocionar.
- A minha mãe sempre foi a minha primeira referência feminista sem que ela soubesse. Sempre a vi a arrastar móveis, a cozinhar e a limpar, a conduzir durante horas, a pregar quadros na parede, a mudar pneus, a ler livros antes de dormir, a ser a primeira e a última a dizer-me se podia ou não sair.
Passo a vida a falar sobre ti e sobre como me tornei uma mulher independente recorrendo às memórias que tenho da nossa vida juntas. Se calhar nunca te disse a ti. Há uns tempos fui entrevistar um grupo de adolescentes e todas as raparigas falavam das suas mães como o seu exemplo a seguir. Pensei logo em ti, em nós. Quando vim para casa, dei por mim a pensar que há lados teus que eu não conheço. Há uns dias vi uma fotografia de uma mãe com o filho nos braços, no autocarro a sair de Kyiv. Ele estava sereno e não lhe via a angústia no rosto, ela carregava-o ao colo. Será que algum dia ele vai saber em que é que ela pensava? Será que se vai lembrar que a vida dele mudou no conforto possível do colo dela?
Há 59 anos nascias em casa, começava naquele dia de inverno a tua vida como mulher. Foste a primeira filha da tua mãe, ela certamente terá sonhado muito para ti o que não conseguiu sonhar para ela. Nunca vou saber o que é que tu própria sonhavas para ti quando a vida não te punha limites. E talvez não precise de saber. Quando nasceste a segunda vez, como minha mãe, olhaste-me com a bagagem que toda a tua vida já te tinha dado. A tua vida não foi mais igual.
Mãe, às vezes penso que já não és só a minha mãe. Nunca foste só a minha mãe. És todas as nossas ancestrais — a tua mãe, a mãe da tua mãe, a mãe da mãe da tua mãe. És comunidade e individualidade ao mesmo tempo. És o que pensas quando estás sozinha, e o que dizes quando estás comigo. És muito maior do que alguma vez sonhaste ser. E és muito mais do que pensas ser.
-Sobre Carolina Franco-
A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais – uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.