Foi cruelmente inesperado – até constatarmos que poderia ser provável. Foi incrivelmente bárbaro – até pensarmos que não foi aleatório, porém, reativo. Aquilo que aconteceu há dias a Donald Trump foi em tudo uma atrocidade contra uma vida humana; porém, não deixa de constituir, igualmente, um epifenómeno da agressividade política que tem caracterizado cada vez mais a sociedade norte-americana (e, por osmose, outros tantos países, sobretudo europeus).
A globalização tem permitido um intenso contacto entre culturas e a diversificação dos padrões de vida, conduzindo, também, e em contrapartida, a uma polarização de visões que se traduz num ambiente de crispação e de rejeição de tudo o que o lado contrário afirma. O outro torna-se o inimigo a abater, criando-se uma fábula de heróis e vilões e menosprezando a complexidade da realidade social que engloba os maiores problemas das pessoas a resolver. Ora, com tanta animosidade o clima escala, podendo alcançar a violência física – como aqui se revelou suceder.
A tentativa de assassinato a Trump é em muitos pontos irónica. Primeiramente, o ex-presidente que tanto apela à posse e ao uso de armas foi alvo do seu efeito perverso. Quem brinca com o fogo queima-se, é o que transmite o ditado. Não é possível apelar a uma salvaguarda baseada no medo e no ressentimento sem se levar um dano colateral (que neste caso foi para além da metáfora).
Mas devemos perguntar-nos: porque faz tanta questão Trump de incentivar os americanos a se protegerem de um modo tão hostil? Contra quem está a tentar escudar-se? Na verdade, de um fenómeno e de um conjunto de sujeitos sobre os quais recaem prolificamente acusações e transformações em bodes expiatórios: a imigração e os imigrantes. Pois bem, qual era o perfil daquele que atirou a matar contra o candidato republicano? Um jovem rapaz branco, que ainda há pouco tempo estava no sistema de educação, aquele em que se moldam os “valores superiores” da América. Um “típico” ou “verdadeiro” norte-americano, um estadunidense de “bem”. Portanto, um elemento deste “tipo-ideal” de cidadão que os mais radicais e extremistas à direita do espetro político querem fazer crer ser o puro e o imaculado. Se a anterior foi uma ironia, esta já pode praticamente entrar no domínio do sarcasmo.
A terceira sátira que podemos verificar neste episódio que, se não fosse trágico, poderia ser cómico é a metamorfose de alguém que sempre pretendeu criar uma imagem do “homem forte”, do “macho-alfa”, em vítima. Vítima de um assassinato, vítima de um sistema que não o quer reeleger e que tudo fará para impedir que salve a nação. A mitificação de Trump pelos seus apoiantes já existia através da criação de narrativas da conspiração, mas agora atinge um novo estado. É que desta vez a tentativa de atentado foi algo real e, ao ter acontecido mesmo, torna legítimas todas as formas de defesa do ex-presidente.
Aqui chegados, emergiu um paradoxo. Para todos os que sentiam o medo a chegar, este acaba de se manifestar ainda mais real. As relações de Trump com a União Europeia e a NATO são de frieza, no mínimo, e de desprezo, no máximo. Trump conseguiu ser o maior instigador da violência política e o maior beneficiário dessa propagação destrutiva. Ao contrário de Joe Biden, cuja força dos argumentos é toldada pela fragilidade de saúde, Trump vê as suas inconsistências científicas e éticas serem atiradas para um canto em prol da deificação pela sobrevivência contra todos os que o criticam. Esta é, destarte, uma má notícia para os democratas moderados.
A sociedade norte-americana, outrora representativa de uma luta superada a favor da liberdade, encontra-se hoje presa nos seus flagelos domésticos. Não obstante, continua a querer passar uma imagem de um país vigoroso, onde tudo corre conforme o planeado. Só que esta foi mais uma ocasião é que tal se prova falso. Os candidatos não estão completamente protegidos contra as ameaças externas, mas, e principalmente contra si mesmos. Se esta não for uma altura para moderar os discursos e as práticas políticas de maneira estrutural – e não circunstancial – e se também não for uma altura para países como Portugal aprenderem que o incremento da exacerbação dos polos políticos a nada mais leva senão ao ódio e à desumanização das alteridades, então, não sei quando esse momento será.