Para além da necessidade de ingestão diária de suplementos de vitamina D, a distância dos palcos de teatro nacionais é uma das coisas de mais sinto saudade estando emigrado há seis anos. Por sorte, e à segunda tentativa, consegui finalmente mergulhar na peça “Catarina e a beleza de matar fascistas”, do dramaturgo e encenador português, Tiago Rodrigues.
Para quem não conheça a peça, o argumento resume-se – de forma nada simples – ao dilema existencial que enfrenta Catarina quando confrontada com a necessidade de, pela primeira vez, cumprir a tradição da sua família de, todos os anos, se juntarem para matar um fascista. Encenada pela primeira vez em 2020, a peça não podia ser uma melhor decorrência e expressão dos tempos em que vivemos. Uma classe política que polui o espaço público com uma retórica proto-fascista, e um espaço público que debate e reproduz ad nauseam a narrativa que estes outrora minoritários movimentos papagueiam.
Já muito se escreveu e se debateu sobre esta obra de Tiago Rodrigues. E, se ainda não tiveram oportunidade de assistir à peça, este é um bom ponto de paragem na leitura, para não partilhar informações relevantes sobre o seu final. É, na verdade, sobre ele que queria escrever.
O ponto de clímax da peça ocorre precisamente no momento em que o fascista, prestes a ser assassinado, acaba por se libertar, fruto da hesitação de Catarina em cumprir a sua tradição familiar. É então que o fascista inicia um longo monólogo, de cerca de meia hora, em que simula uma intervenção num comício, remetendo-nos a um universo discursivo que se tornou demasiado familiar a todos nós. Nesta parte da encenação, o espectador torna-se parte do espetáculo, com o público a reagir por meio de assobios, apupos, cânticos e gritos antifascistas e, em alguns palcos, até a projeção de objetos contra o ator.
Há um mérito inegável da parte de Tiago Rodrigues em conseguir, por meio desta inflexão, despertar as diferentes emoções do público que assiste. É impossível não pensar que o desconforto provocado é propositado e que há a intenção de testar a audiência perante o que está a assistir. É um mérito que, no meu caso, ficou comprovado pelas discussões que provocou junto de várias pessoas conhecidas que também assistiram à peça comigo.
A forma como cada pessoa reagiu à expressão de emoções dos seus coespectadores foi muito díspar – e não duvido que esta experiência se tenha repetido no exterior, nos diferentes palcos por onde a peça já passou. Cada interpretação resultará, certamente, da avaliação que cada um fará do lugar e da forma como devemos reagir à injustiça, à violência – mesmo que apenas verbal – e à ignomínia. Não quero, de todo, deslegitimar as diferentes reações epidérmicas provocadas e manifestadas por aquele monólogo. Mas, confesso, senti falta do silêncio.
Senti falta do silêncio para poder absorver tudo aquilo que ali era dito, mesmo que não fosse mais do que a encenação de uma reprodução tristemente familiar. Senti falta do silêncio para me poder deixar inundar pelo desconforto que cada uma daquelas palavras pungentes me trazia. Para poder apreender e refletir sobre o que aquilo representava. Mas, acima de tudo, porque senti que aquele monólogo não era somente reprodutivo. Porque aquelas palavras pontiagudas não eram apenas adagas mergulhadas num veneno de desumanização e de ódio. Eram também facas afiadas à nossa resistência. A tempos em que a resistência, tal como a revolução, só existem se forem televisionadas. E em que a força das mesmas tende a perder-se em atos performativos que diminuem a sua eficácia e ação. Senti falta do silêncio porque queria sentir o desconforto do confronto com o meu próprio falhanço e hipocrisia, seja ele sinómino de um falhanço individual ou coletivo. Senti falta do silêncio porque talvez ele faça falta para conseguirmos encontrar, de novo, a nossa voz e fazê-la ecoar bem alto por entre aqueles que a abandonaram, ou por ela se sentem abandonados. Porque a nossa voz, de resistência e afirmação, faz hoje mais falta do que nunca e nós perdemos o luxo de falhar.