Um livro é uma viagem, um bilhete que se apoia nas mãos e se deixa folhear sem pressa. Há nessa viagem uma magia irrequieta e desafiante, semelhante a uma criança que corre, salta e explora, até à exaustão, todas as letras e ilustrações. As crianças são verdadeiras mestres da imaginação e do sonho, ansiosas por conhecer novas histórias todos os dias. No Teatro da Voz já começou a viagem, onde os livros ditam um futuro melhor junto dos mais novos.
Em outubro de 2020, nasceu o Clube de Leitura da Letra à Voz, um projeto integrado no Teatro da Voz, no edifício histórico da Escola Voz do Operário, em pleno bairro da Graça, em Lisboa. Dedicado a crianças dos 6 aos 10 anos, correspondente ao 1.º e 4.º ano de escolaridade, o Clube de Leitura tem como principais objetivos a orientação para a aprendizagem da leitura e da escrita, com foco na partilha de conhecimento entre as crianças, bem como no incentivo à oralidade.


O Teatro da Voz tornou-se um Centro de Formação Artística – CFA, com uma vertente educacional orientada para as cerca de 500 crianças que frequentam a Voz do Operário. O Clube de Leitura da Letra à Voz é a mais recente iniciativa do CFA, que vem dar vida àquele espaço, construído sob os alicerces de uma memória coletiva e da vontade de educar, através da arte literária, as futuras gerações.
O Teatro da Voz: um espaço de encontro artístico
O antigo Teatro da Graça deu lugar ao Teatro da Voz no ano de 2013, na sequência de um protocolo entre a Voz do Operário - Sociedade de Instrução e Beneficência, a EIRA – Produção e Realização de Espetáculos e Audiovisuais, de Francisco Camacho, e a Produções Real Pelágio, de Sílvia Real e Sérgio Pelágio. Com o interesse por parte da Voz do Operário em envolver a formação artística junto dos seus alunos, é criado o Centro de Formação Artística do Teatro da Voz, direcionado para a comunidade escolar e o público fora de portas.


“O antigo Teatro da Graça já tem, por si só, uma história muito rica no âmbito das artes e espetáculos, com a passagem de figuras como as atrizes Isabel de Castro, Cristina Carvalhal e o Grupo de Teatro Hoje, entre muitos outros”, revela Susana Martins, coordenadora do projeto Clube de Leitura da Letra à Voz. Após a criação do CFA, a cooperação da Produções Real Pelágio com o diretor pedagógico da Escola da Graça - Voz do Operário, Sérgio Gaitas, e a coordenadora do 1.º Ciclo, Bárbara Ramires, permitiu reativar o espaço, passando o mesmo a ter um conjunto de atividades regulares, integradas no horário curricular dos alunos, com foco na parceria entre os professores e os artistas.
Atualmente, o Teatro da Voz é lugar de criação e ensaios da Produções Real Pelágio, que orientou, ao longo dos anos, inúmeros espetáculos de dança-teatro. O Grupo 23: silêncio!, que durou 10 anos, é exemplo de um projeto independente da coreógrafa e bailarina Sílvia Real, desenvolvido com crianças. Mais recentemente, a adição da vertente de direitos humanos, com o trabalho de Simone Andrade, estendeu o epicentro de envolvimento para as escolas públicas mais próximas, como é o caso da Escola Básica do Castelo e a Escola do Convento do Desagravo.
As primeiras páginas
Existia um espaço no Teatro da Voz, outrora uma carpintaria de serviço à escola, que persistia isolado e sem vida. Funcionava também como um pequeno armazém de figurinos e objetos das associações. “É um espaço bastante pequeno e que faz a ligação direta à escola, para o pátio dos mais novos”, explica Susana Martins. Ali, persistia também uma enorme vontade de contribuir para a promoção da leitura junto das crianças que, mesmo não sendo ainda leitoras, poderiam ter uma relação com livros. “Na altura estávamos em fase de candidaturas para financiamentos e surgiu o desafio de criar um projeto para esse espaço de armazém, tendo em conta esta proximidade com o pré-escolar.”


Assim nasceu o Clube de Leitura da Letra à Voz, “para dar confiança às crianças no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, a partir da partilha geracional entre pares, sem grande intervenção dos adultos”. No Clube, os adultos são meros mediadores de conversa, presenças humanas de conforto e orientação. Já o espaço que acolhe os pequenos grupos foi construído com a colaboração de diversos voluntários, professores, pais e artistas, que abriram as portas de um pequeno mundo, agora maior no tamanho dos sonhos que lá dentro se imaginam.
“O espaço em si, e o Teatro da Voz em geral, engloba muitos desafios de manutenção, é muito antigo e requer cuidados com a humidade e inundações, o que, sabemos bem, não combina com livros”, alerta a coordenadora do projeto. “A Escola Voz do Operário tem vindo sempre em nosso socorro, como sinal de apoio naquilo que é possível, para garantir as condições necessárias ao projeto.” O arranque oficial do Clube de Leitura da Letra à Voz acontece em plena pandemia, dificultando o diálogo e os objetivos sociais, acrescidos de obstáculos que, num lugar de liberdade, imaginação e intercâmbio de experiências, só criaram barreiras.
Apesar de todos os contratempos, o Grupo de Leitura Livre, composto por 8 a 10 crianças, reuniu, semanalmente, ao longo do anterior período escolar, no espaço renovado do Clube de Leitura da Letra à Voz, pondo em prática os objetivos propostos e tornando-se, também elas, construtoras da fase inicial do projeto.


“A relação com o livro é um lugar naturalmente familiar para as crianças”
Os livros, enquanto estímulo para o conhecimento e para a criação, são um veículo educacional agora esquecido por entre as prateleiras velhas, as caixas e o pó do tempo. Com a introdução das novas tecnologias, cada vez em idades mais novas, o lugar dos livros alterou-se e sofreu uma mutação que, apesar de gradual, não parece ser incontornável. “Existe essa disponibilidade emocional e interesse [pelos livros]”, aponta Susana, “o Clube de Leitura vem voltar a estimular essa relação, e quanto mais cedo, melhor”.
Uma das premissas do Clube é a vertente geracional em que o ato de aprender a ler é feito de forma coletiva, entre as próprias crianças. Torna-se interessante observar que, nessa fronteira geracional, os mais velhos despertam a confiança e o entusiamo pela aprendizagem dos mais novos, onde “todos se tornam partes ativas da leitura uns dos outros, o que não acontece quando fazemos uma leitura solitária, introspetiva nas nossas casas”.
Outra linha orientadora do projeto centra-se na exposição oral. O próprio espaço físico, onde o Clube acontece, pertencera a um teatro, por norma lugar onde a voz surge de mãos dadas com a letra. “Sentimos que na escolaridade, ao nível da leitura em voz alta, há uma lacuna por preencher”, assinala Susana, a propósito de uma das motivações do Clube. Nesse sentido, a partilha da leitura em voz alta é também um ato performativo que se treina e se desenvolve.
É na literatura que se encontram oportunidades de consolidar opiniões, e a criação de um catálogo de livros encaminhou o foco desse trabalho. “Cada vez há mais livros de qualidade para infância, em Portugal, e há diretivas de trabalho no Clube que pretendem focar questões ambientais, direitos humanos, racismo, igualdade de género, que em diferentes idades são introduzidas de formas distintas”, refere Susana Martins relativamente à escolha dos livros a figurar nas prateleiras do espaço. A aceitação da diferença, a relação com o outro, a liberdade de cada um ser aquilo que quer ser, são temas de acesso fácil através dos livros, válidos para discussão junto dos mais novos. A leitura em contexto do Clube também altera a perceção que as crianças têm dos próprios temas. Longe da proteção de casa, das narrativas da família, o Clube desafia-as a falar em nome próprio, junto dos seus pares.


No meio das capas coloridas, encontramos livros como Menino, Menina, de Joana Estrela, ou O Jaime é Uma Sereia, de Jessica Love, que suscitam no grupo alguma estranheza e inquietação. Na partilha da leitura tudo se potencia e se torna mais visível e possível de trabalhar. “Porque é que aparece um rabo aqui? É normal, somos todos humanos e somos assim. Mas porque é que o Jaime vestiu um vestido de sereia? Qual é o problema? Ele está feliz e a avó apoia-o”, ouvimos por entre risadas e expressões curiosas.
Para além destas observações, juntam-se a educação para o cuidado dos livros, do espaço comum, e da experimentação de novas formas de ler. “Também fizemos a experiência do áudio livro com As Histórias Magnéticas, de Sérgio Pelágio, naqueles dias em que ninguém quer ler em voz alta para o grupo.” É nesta relação com o livro, das mais diversas formas, que encontramos momentos naturais e de extrema importância para as novas gerações de leitores e, sobretudo, de seres humanos.
As crianças: construtores do livro do futuro
Por detrás da pequena porta, que deixa entrar a luz natural do pátio, as paredes enchem-se de livros, almofadas confortáveis, tapetes e uma atmosfera aconchegada por uma mezzanine de madeira escura, que conduz a um novo mundo no andar de cima. Num canto, surge um pequeno banco de três degraus, uma espécie de palco de performance para os leitores mais corajosos apresentarem as histórias ao público que assiste, atento, sentado no chão.
As crianças, enquanto participantes do projeto, são membros ativos na construção da dinâmica do Clube, que se revela, sessão após sessão, sempre surpreendente. “Primeiro começaram a pedir para ir para a mezzanine, fazer uma leitura mais isolados, sozinhos e rodeados das pequenas plantas que habitam o andar”, explica Susana, que faz também papel de mediadora nas sessões. “Depois surgiram crianças a querer desenhar ao mesmo tempo que ouviam as histórias, e isso trouxe uma outra dimensão ao projeto, uma parte mais plástica e visual”. Foi também com esta surpresa que cresceu a ideia de uma autoedição pensada pelos grupos, onde a narrativa e as ilustrações ficam a cargo dos participantes e, quem sabe, daí saírem novos livros.


A participação ativa das crianças engrandece o projeto e desafia os mediadores a criar novas estratégias. “Esta primeira experiência, desde outubro do ano passado, só me suscitou mais ideias, sendo uma delas o acompanhamento do crescimento das plantas”, confessa Susana. Curiosamente, o fascínio pelos habitantes permanentes do Clube de Leitura coincide com o período do lanche da tarde, “e poderá fazer sentido criar o ritual de alimentar as plantas, tal como eles o fazem nesse tempo”.
No meio de todas as opções e reviravoltas, acontece o Clube de Leitura da Letra à Voz, onde o ritmo é marcado pelo relógio dos mais novos. “Uma parte muito interessante é a pausa entre livros, para falar, refletir… é mais desafiante ainda porque as leituras são quase uma necessidade essencial, a par com a discussão sobre a narrativa que leram”, acrescenta. Uma dessas discussões, resultantes do livro de José Saramago, A Maior Flor do Mundo, abriu portas para a criação de um mural nas paredes do Clube. A artista convidada, Laura Monteiro, foi desafiada a pintar uma das paredes tendo por base a obra do escritor, e em jeito de comemoração do seu Centenário (1922-2022). A dinâmica acabou por envolver todos os participantes na construção de uma pintura coletiva extra, que personalizou o espaço para as sessões futuras, com as tintas que sobraram da primeira intervenção artística.


O próximo passo
Por estes dias, para lá do muro da Travessa de São Vicente, na Graça, já não se ouvem gargalhadas e corridas desenfreadas repletas de energia. O ano letivo terminou o mês passado e o projeto do Clube de Leitura encontra-se em repouso. “Acho que é algo especial, a literatura ser mais presente nas escolas, a dimensão de vivenciar um espaço como este, de criar o ritual de iniciação à leitura, à interpretação coletiva, à relação com o livro, mas em conjunto…”, conclui Susana.
O próximo passo será reiniciar o Clube em outubro de 2021, com sessões semanais, através de um formulário de inscrição, incentivando os próprios alunos da escola à utilização do espaço de forma autónoma, mas também à visita de parceiros e escolas vizinhas. “A questão da memória local e coletiva e a vertente geracional é algo que ainda queremos trabalhar”, acrescenta. “Criar uma relação com as pessoas que cresceram na Escola Voz do Operário, hoje com 60 e 70 anos, que têm uma narrativa oral sobre a sua experiência, enquanto crianças, e levá-las, de novo, àquele lugar”.


Todos os dias nasce numa criança a primeira palavra, o primeiro parágrafo da história que ela quiser escrever. Cabe aos adultos gerar os projetos e as ferramentas necessárias para o desenvolvimento das suas competências literárias, através de um livro só de palavras, um conjunto de ilustrações sem uma única letra, ou, até mesmo, de uma folha em branco.
No texto A Maior Flor do Mundo, de José Saramago, cujas palavras ouvimos no espaço do Clube de Leitura da Letra à Voz, encontramos em breves linhas o desejo do escritor de, um dia, ser capaz de escrever uma história para crianças. Talvez o melhor será deixá-las escrever por nós.
“Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos.”
A Maior Flor do Mundo, José Saramago
Texto de Ana Mendes
Fotografias de Susana Ribeiro Martins/Real Pelágio
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