Comentários como os dirigidos a Marega, apesar de serem geralmente enraizados em crenças xenófobas, acabam por ser normalizados como uma “parte do jogo”, diz-nos Ronaldo Coelho, jogador da 4.ª liga – Campeonato de Portugal do Sport Benfica de Castelo Branco. “Dentro do campo […], pelo menos verbalmente, acontece tudo”, acrescentou.
Insultos e outros tipos de comentários negativos não são uma novidade no mundo desportivo. A tática é bastante comum, não só entre adeptos, mas também entre os próprios jogadores, na expetativa de gerar agitação e qualquer tipo de exaspero, de forma a ganhar uma vantagem sobre os seus adversários. Mas o racismo sobrepõe-se a este tipo de abuso verbal, o que torna os atletas negros ainda mais vulneráveis à cultura de insultos, ofensas e comentários negativos no decorrer do jogo.
Mais recentemente, o futebolista português do Sport Lisboa e Benfica B, Sandro Cruz, denunciou insultos raciais vindos da assistência no passado mês de abril, durante a substituição na segunda parte do jogo contra o Rio Ave, em Vila do Conde. O jogador usou as redes sociais para repudiar a atitude e exigir “medidas severas para com este incidente” por parte da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP). Como resposta, foi aberto um processo disciplinar que resultou numa punição de 890 euros ao clube Rio Ave, pela infração cometida. Mas a situação é mais do que um caso isolado, pois, de acordo com a investigação intitulada “Estudo nacional sobre o Racismo no Futebol em Portugal: Perceções e vivências”, desenvolvida pela Associação I, através do projeto Black Lives Matter in Football, cerca de 52 % dos participantes inquiridos referiram ter vivenciado/assistido mais do que uma vez a casos de racismo no contexto de futebol, por violência verbal, psicológica, física, social ou sexual.
Os dados recolhidos entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, apontam que, em Portugal, são os atletas, tanto profissionais como amadores, o grupo mais afetado por episódios de racismo no futebol, e sobretudo do sexo masculino (cerca de 93 % das mulheres consideraram que 74,9 % dos casos dirigem-se aos homens, enquanto 90 % dos homens consideraram que 85 % dos casos dirigem-se a atletas do sexo masculino).
O estudo baseou-se num inquérito que contou com a participação de cerca 1681 indivíduos (456 do sexo feminino, 1221 do sexo masculino e 4 pessoas não binárias): adeptos, jornalistas, treinadores, atletas profissionais e amadores, árbitros, encarregados de educação, etc. Entre as manifestações de violência mais comuns, para os/as atletas profissionais estão a violência verbal (57,6 %), a violência psicológica (39,4 %) e a violência física (15,2 %) vinda principalmente dos adeptos e das claques.
Contudo, quando questionados sobre a forma como os casos de racismo são tratados, 86,8 % e 82,8 % das mulheres e dos homens, respetivamente, que participaram no estudo consideraram “desadequado” o tratamento dado aos casos de racismo no futebol em Portugal. Neste contexto, muitos destes atletas, ao depararem-se com a tal forma de abuso normalizado, são muitas vezes condicionados a continuar com o jogo e seguir em frente perante os comentários, mesmo que estes incluam insultos racistas e xenófobos. Ao Gerador, Ronaldo revela que esta tem sido a indicação que tem recebido desde que expressou o seu interesse pelo futebol, aos 9 anos. Hoje em dia, diz-nos que “tornou-se normal” lidar com situações em que é racialmente discriminado, isto porque “é algo repetitivo, acabamos por nos habituar, ficamos meio preparados para isso”.
Por volta dos 9/10 anos, enquanto jogava em equipas juniores, o jogador informa-nos que sempre foi algo comum receber comentários racistas como “preto, macaco e volta para a tua terra”, por parte dos adeptos, geralmente em forma de crítica pela maneira como jogava ou simplesmente como uma torcida a favor da equipa adversária.
Mas além da regularidade, outro fator que poderá ter contribuído para a normalização é o facto de que as repercussões dos episódios racistas frequentemente se refletiam nos jogadores, e não propriamente na pessoa que proferiu os comentários. Este foi o caso para Ronaldo, que após expressar o seu incómodo e alterar-se com os comentários foi retirado do jogo e dirigido para as bancadas para que se acalmasse.
Similarmente, em janeiro do corrente ano, Cíntia Martins, jogadora negra de 14 anos do Sporting Club de Portugal, de acordo com as denúncias do treinador, foi também alvo de insultos racistas da parte de um adepto da equipa adversária, no decorrer de um jogo com uma equipa masculina da Fundação Salesianos, disputado no Bairro da Boavista, em Lisboa. A jogadora respondeu a um insulto de cariz racial, depois de várias outras ofensas durante a partida. Foi, portanto, esta resposta que lhe valeu a expulsão.
Devido à possibilidade de uma potencial tendência de exposição a casos impunes desde a infância/adolescência, questionámos o Ronaldo sobre os possíveis efeitos de ouvir estes comentários desde muito cedo de forma contínua nos jogos. Este revelou que, durante muito tempo, estes lhe suscitaram pensamentos negativos sobre a sua aparência. As associações e conotações negativas relacionadas com a cor da sua pele fizeram com que, durante muito tempo, simplesmente “não gostasse da sua cor” de pele ao crescer.
A Harvard Health indica que a constante exposição ao racismo, em crianças, pode levar a consequências como stress que pode até resultar em alterações hormonais que causam inflamações crónicas no corpo. Especialistas médicos do estabelecimento universitário sustentam que a inflamação crónica de baixo grau pode contribuir para doenças cardiovasculares, cancro e diabetes do tipo II. Adicionalmente, a Academia Americana de Pediatria associa a exposição ao racismo, em crianças, a casos de transtorno do défice de atenção com hiperatividade (TDAH) ou síndromes de ansiedade e depressão. Porém, no caso de Ronaldo, a longo prazo, o mesmo fala-nos apenas da baixa autoestima e uma eventual normalização de episódios de racismo generalizada entre os atletas negros, identificando a mesma tenuidade perante situações de discriminação entre os demais jogadores da equipa.
Ronaldo exemplifica que em épocas passadas houve circunstâncias em que, para além de insultos raciais, os jogadores já foram inclusive cuspidos por outros de pele branca, mas são programados desde muito cedo durante o seu percurso a “manter a calma e continuar com o jogo”. O jogador informa-nos de que o árbitro não se apercebeu do ocorrido, mas mesmo que o tivesse feito “passamos tanto por isso no passado, ao crescer, que, depois de um tempo, já não abala”, acrescentou.
O código Federação Internacional de Futebol – FIFA (2019) e União das Federações Europeias de Futebol (UEFA) regulam que no caso de uma potencial ocorrência de racismo, o árbitro deverá seguir os seguintes procedimentos:
- Interromper o jogo e solicitar que seja feito um anúncio pela instalação sonora pedindo aos espectadores para pararem imediatamente com todos os comportamentos racistas.
- Caso o comportamento racista não termine após o reinício do jogo, o árbitro deverá suspender o encontro por um período razoável de tempo, por exemplo, cinco a dez minutos.
- Como último recurso, o árbitro poderá dar definitivamente o jogo por terminado.
O Código Penal português prevê que os infratores podem ser condenados de 6 meses a 5 anos pelo crime de racismo, ou uma multa que pode ir até os 10 000 euros. Consequências menos severas podem incluir a interdição do recinto desportivo, ou que os jogos sejam realizados à porta fechada.
Mas será suficiente colocar a responsabilidade de um “fair play” (jogo justo) no árbitro? Ronaldo diz-nos que, na realidade, a exerção do regulamento e consequentemente do cumprimento do fair play, geralmente varia de acordo ao árbitro em jogo. “Cada um vê o jogo de forma diferente, uns chegam a ser mais liberais e lidam com as coisas de forma diferente”, e apesar da presença de uma equipa técnica que pode contribuir para a fiscalização da audiência e mesmo dos próprios jogadores, muitos destes casos ainda passam despercebidos.
Em jogos de escalões maiores, em que, por norma, há maior número de incidências, além do árbitro e de agentes técnicos desportivos (como treinadores e auxiliares) já existem outros meios de supervisionamento da audiência, como, por exemplo, a presença de agentes policiais nos jogos, que podem estar mais atentos à conduta dos adeptos.
Face à incidência de eventos de racismo nos jogos de futebol, a Liga Portuguesa pronunciou-se também, por meio de um comunicado, garantindo que “repudia todo e qualquer ato de racismo ou de xenofobia, que configure um comportamento contrário aos elevados valores que do desporto emanam e que, no futebol profissional, são, e continuarão a ser, protegidos até à exaustão”. A Liga tem-se, desde então, associado a campanhas como “Racismo Não” e “Mais Futebol, Menos Ódio – Um lema de todos”, que se têm encarregado de gerar conversa e consciencialização sobre o tema, apelando a que os jogadores adotem a causa, ao jogarem com um sinal de igualdade no rosto ou com camisolas com a inscrição ‘Racismo Não’, durante a 27.ª jornada da 1.ª e 2.ª Liga.
Para além disso, a Federação Portuguesa de Futebol já apresenta também algumas medidas preventivas e de punição para a erradicação do racismo no futebol, assim como no mundo desportivo em geral. Desde julho de 2021, qualquer pessoa presente nos jogos, tanto os adeptos, jogadores ou mesmo auxiliares, pode fazer denúncias de episódios de racismo vivenciados ou assistidos por meio da plataforma “Futebol para Todos”. A funcionalidade permite que os utilizadores revelem todas as informações relevantes sobre discriminação de que tenham conhecimento (nome do infrator; descrição do acontecimento; razão da discriminação), enviá-las para a plataforma e fazer o acompanhamento da denúncia efetuada, sendo garantida a sua punição “dentro do quadro normativo”, afirma Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa do Futebol (FPF) – citado pela FPF.
Apesar de enaltecer as iniciativas, Ronaldo também expressou a preocupação de serem insuficientes para erradicar o racismo no futebol, porque uma sanção não significa necessariamente que estas crenças sejam absolvidas. “Eu posso fazer uma queixa, mas eventualmente os adeptos voltarão ao estádio e podem cometer a mesma infração”, disse-nos, apelando para medidas mais rigorosas para os adeptos e não só no campo, visto que os insultos se estendem até às redes sociais.
No Dia Internacional para a Eliminação do Discurso de Ódio, a FIFA revelou que, nas fases decisivas do último Europeu e CAN, foram estudadas cerca de 400 mil mensagens divulgadas nas redes sociais. Nesse período, mais de metade dos jogadores recebeu insultos, maioritariamente homofóbicos (40 %) e racistas (38 %).
De acordo com a perspetiva de Ronaldo, as medidas que melhor poderiam contribuir para prevenir e combater o racismo no futebol em Portugal seriam a punição das pessoas adeptas e também a consciencialização dos jogadores. Acrescenta que os efeitos da cultura da normalização do racismo no futebol como “conversa fiada e uma parte do jogo”, presente, desde cedo, na vida de muitos dos jogadores negros, poderiam, numa primeira fase, ser remediados com acompanhamento psicológico gratuito para os atletas, por exemplo. Fica em aberto a reflexão sobre o que podemos fazer para proteger os jogadores, sobretudo os que façam parte de minorias étnicas, de orientação sexual e de género.
*Esta reportagem foi inicialmente publicada a 5 de setembro de 2022.