É fim de tarde, e Luís Garção está a carregar as malas para dentro do autocarro que o vai levar de Lisboa a Portalegre. O seu último destino é a aldeia de Santo António de Areias, no município de Marvão, no Alto Alentejo, onde encontrou uma nova casa para viver. Aos 29 anos, decidiu trocar a capital do país, que lhe tem servido de residência e local de trabalho nos últimos anos, para regressar às origens.
Tem pela frente mais de quatro horas de uma viagem que separa as zonas mais contrastantes do nosso país, em termos de evolução populacional. Enquanto a Área Metropolitana de Lisboa foi das únicas regiões (juntamente com o Algarve) a registar um crescimento do número de habitantes nos últimos dez anos, segundo os dados dos Censos 2021, o distrito de Portalegre, a que pertence o Marvão, foi, por sua vez, o mais assolado pelo despovoamento, tendo perdido cerca de 10 % da sua população numa só década.
Ainda assim, o padrão de litoralização, que afeta o desenvolvimento social e económico da região, não assusta Luís. “Nasci no interior e nunca fui capaz de me adaptar a Lisboa. Sinto que apenas subsisto e não consigo imaginar-me a comprar casa, por exemplo. Comecei a fazer contas e a aperceber-me de que nem para uma habitação mais barata terei grandes possibilidades. Tenho muitas despesas e acabo por não ter tanta liberdade como quando estou no interior do país. Esta situação começou a frustrar-me e a afetar as minhas relações pessoais”, desabafa, em conversa com o Gerador, o jovem que se dedica à comunicação e promoção de eventos culturais.
A pandemia fê-lo perseguir a ideia de que pode trabalhar a partir do Marvão, local com o qual detém um vínculo emocional, devido às memórias de infância criadas com o seu avô, que viveu naquela zona raiana. Explica que na aldeia de Santo António das Areias, para onde se muda, “apesar de tudo, não falta nada” e consegue “ir a todos os locais a pé”, uma vantagem para quem está saturado do stress do dia a dia na cidade. A partir de agora, pretende deslocar-se a Lisboa esporadicamente, apenas quando a profissão o exigir.
Resistência do interior alicerça-se na cultura
Além de estar envolvido em eventos como o Periferias – Festival Internacional de Cinema do Marvão e de Valencia de Alcántara (sobre o qual podes ler mais à frente), Luís é presidente da associação Ficar, sediada em Portalegre, voltada para a dinamização cultural e socioeconómica daquela região.


Neste momento, além dos concertos frequentes no café-concerto Pátio da Casa, a Ficar tem planos para organizar um festival de reggae, na Portagem, uma povoação rural da freguesia de São Salvador da Aramenha, no Marvão, durante o próximo ano. Antes disso, em outubro, arrancam as Jornadas Micológicas, com caminhadas que pretendem valorizar os recursos naturais do Parque Natural da Serra de São Mamede. Em parceria com o jornal Alto Alentejo, a associação tem vindo também a incentivar as comunidades locais e os turistas que por ali passam a criarem registos fotográficos das particularidades da região. As melhores imagens são selecionadas e publicadas no jornal. A iniciativa está exposta no Instagram através de um perfil cunhado de “Portalegregram”.
Este é apenas um exemplo de como os jovens – e não só –, em Portugal, estão afincados em contrariar o abandono das aldeias e comunidades mais remotas, numa resistência que se forma através da cultura. Por todo o país, são vários os exemplos de locais onde já não são apenas as romarias que divertem os que vão e voltam apenas durante o “querido mês agosto”, trazendo o único momento do ano em que muitas populações se conectam com o exterior da sua aldeia. A conectividade da tecnologia, que tem impulsionado o trabalho remoto, tem empurrado pessoas, incluindo de outras nacionalidades, para o interior do país, onde se vão misturando com as populações locais e devolvendo vida, durante todo o ano, àqueles que se pensavam esquecidos. Uma dinâmica que tem permitido valorizar o território, recuperar tradições e reinventar saberes, enquanto se combate o isolamento e se cultiva o espírito crítico das populações, tantas vezes invisibilizadas perante o Governo central.
Bons Sons: “uma autêntica lufada de ar fresco para os negócios locais”
O Bons Sons, festival de música portuguesa realizado todos os anos na aldeia ribatejana de Cem Soldos, é provavelmente um dos exemplos mais antigos que atiçam a revolução cultural que, nas palavras de Zeca Afonso, passa por “ir a sítios e encontrar música lá”. Criado em 2006, para celebrar os 25 anos da associação local SCOCS (Sport Club Operário Cem Soldos), este festival tem vindo a promover o “desenvolvimento local através da fixação dos mais jovens e da potenciação da economia da região”.


Quem o diz é Miguel Atalaia, membro e ex-presidente da associação e atual diretor artístico do Bons Sons. Tinha 17 anos quando se deu a primeira edição. Hoje, com 33, recorda o impacto que o festival teve logo de início, não só na aldeia de cerca de 600 habitantes como também no panorama da música nacional. “Abriu os olhos às pessoas, que passaram a reconhecer algo de especial na música portuguesa, numa altura em que esta não tinha a energia, a pujança e a capacidade que tem hoje. Estava alicerçada em projetos pontuais – alguns históricos até – em que era dado palco quase sempre aos mesmos artistas. O Bons Sons começou então a desenvolver-se com o intuito de dinamizar a própria aldeia, em termos culturais e financeiros, juntamente com a questão de potenciar a música portuguesa”, conta em entrevista ao Gerador.
Os próprios habitantes de Cem Soldos organizam o festival, que acontece em agosto e chega a receber 35 000 pessoas. São os residentes que abrem as portas de suas casas, cedem os quintais e os terrenos, para estacionamento, campismo e outros espaços necessários para acolhimento. As pessoas da aldeia limpam os terrenos e organizam-se em turnos durante o festival, para assumir a cozinha ou receber os artistas, por exemplo. Há concertos, conversas e outras atividades, distribuídas pela igreja, a escola, o espaço alocado aos escuteiros, o edifício da Junta de Freguesia, a Casa do Povo, o auditório da aldeia e a própria sede da SCOCS.
O Bons Sons ocupa praticamente toda a aldeia, tendo-se tornado, ao longo dos anos, uma referência nacional no que diz respeito a eventos que levam a cultura às comunidades mais pequenas. As repercussões deste festival para a região de Tomar, no distrito de Santarém, fazem-se notar “numa lógica material e também imaterial”, observa Miguel Atalaia. Por um lado, “é uma autêntica lufada de ar fresco para os negócios locais. Um desafogo. Faz com que consigam estar mais seguros durante o resto do ano. Num sentido mais macro, traz cerca de 3,5 milhões [de euros] em termos de impacto mediático e económico para toda a região envolvente”.


Por outro lado, o festival e a própria intervenção da SCOCS nas restantes dinâmicas locais têm gerado impactos na manutenção de serviços e instituições, assim como na retenção e atração de jovens. A parte mais concreta vê-se, por exemplo, na sobrevivência do ensino. “Em 2014, passamos por um processo muito difícil de quase encerramento da escola primária de Cem Soldos. Na altura, conseguimos mobilizar os pais, criando um projeto alternativo, que envolveu também a aldeia. Felizmente, esse capítulo inquietante da nossa história foi ultrapassado, sem prejuízos”, recorda Miguel Atalaia. “No entanto, questionamo-nos como é possível uma aldeia com esta visibilidade, por organizar todos os anos um festival com a escala e importância do Bons Sons, enfrentar um grave risco de encerramento de uma escola, como acontece em locais mais refundidos.”
Ao mesmo tempo, o Bons Sons tem sido uma plataforma de experimentação para que adolescentes descubram a sua verdadeira vocação. “Alguns integram a associação [SCOCS] muito novos, aos 16 anos, e depois vão estudar e trabalhar em áreas que descobriram no seio da associação, no festival ou noutras atividades que desenvolvemos durante o ano. Isso é muito evidente e muito reconfortante. Quer dizer que a aldeia lhes deu oportunidade de descobrir o que gostam de fazer”.
O diretor artístico do Bons Sons nota ainda uma dinâmica que se tem intensificado nos últimos anos: o retorno à aldeia daqueles que saíram para estudar e trabalhar noutros locais. Ele próprio é um exemplo disso. Designer gráfico de profissão, estudou em Tomar e em Lisboa, mas sempre sem se desvincular da aldeia. “Há muita gente a regressar, com os seus pares, para constituir família. Reconstroem as casas antigas dos pais e instalam-se. Atualmente, é mais difícil encontrar casas onde ficar em Cem Soldos porque mais casas estão habitadas”, constata.


Miguel Atalaia não sente que houve um ponto de viragem que tivesse levado a um salto em termos de projeção de Cem Soldos. Na sua opinião, o mesmo aconteceu devido a “um pensamento estratégico a médio e longo prazo” que tem raízes “muito mais profundas”, alicerçadas na génese da própria aldeia, cuja história se cobre de particularidades que a destacam entre os contextos que a rodeiam. “No início do século XX, esta era uma aldeia muito pobre, e desde a década de 1960 que a população mostra uma mobilização para reabilitar edifícios e para realizar festas, por exemplo. Essa inquietação coletiva de ir arrojando foi passando para as gerações mais novas e resultou naquilo que se vive hoje na aldeia”.
Personagens “muito peculiares” são lembradas em Cem Soldos. A população carrega o orgulho de romper com os dogmas e com uma lógica cultural “mais rígida”. Miguel Atalaia dá o exemplo da “Dona Lurdes”, a primeira senhora da aldeia a ir a cafés e a fumar. “Andava com um macaco ao ombro, era mais endinheirada e levava os miúdos à piscina”, relata. São estas memórias que reforçam a herança e o sentimento de pertença que faz muitos jovens ficar (ou regressar) àquela terra que os viu nascer. “A minha geração, por exemplo, vai estudar fora, mas tem sempre um pé cá, na ambição de um dia voltar – e perceciona este regresso não para um sítio bucólico, nostálgico, onde as ovelhas pastam, mas para um local dinâmico. E isso é o mais importante”, insiste Miguela Atalaia.
O Bons Sons tem assim cumprido o papel que assume no seu manifesto: a responsabilidade de manter a aldeia viva e dinamizar a comunidade. “A verdade é que também há um tipo de vivência aqui que não há nas cidades e que traz vantagens. Durante o confinamento, isto foi óbvio. Tínhamos muito mais facilidade em encontrar espaços ao ar livre, para respirarmos e passearmos. O teletrabalho também veio trazer o paradigma de que podemos estar a trabalhar em casa, nas nossas aldeias, sem o stress das grandes cidades, sem perder horas no trânsito”, reflete Miguel Atalaia.
Periferias: o cinema de autor chega às comunidades remotas
O advento do trabalho remoto tem colocado o país, nos últimos anos, no topo das preferências de locais para “nómadas digitais” se instalarem. Pessoas de todo o mundo têm escolhido o interior de Portugal para residir e trabalhar, devido à qualidade de vida e aos baixos custos oferecidos. Vantagens das quais a colombiana Paula Duque já apercebera há cerca de uma década, quando decidiu fixar-se na zona raiana do Alentejo e lá criar o Periferias, um festival de cinema internacional que une as populações transfronteiriças de Portugal e Espanha e que se propõe a promover uma “efetiva descentralização cultural”.


Se aquelas populações não vão ao cinema (porque simplesmente não têm alternativas), então que se levem as salas de cinema até elas. É este o desígnio do festival que celebra este ano a sua 10.ª edição (acontece entre os dias 12 e 20 de agosto). Começou por ser um festival de cinema africano, mas progrediu para versar as temáticas dos direitos humanos, meio ambiente, arte e cultura. Atualmente, decorre ao longo de 15 aldeias, entre o Marvão e Valência de Alcántara (Espanha).
Filmes quase sempre de autores portugueses ou espanhóis, que se encaixam nas categorias de “cinema de autor, documental, galardoado e recente”, são exibidos ao ar livre, em locais como o Castelo e a Casa da Cultura de Marvão, o Lagar Museu António Picado Nunes, em Galegos, o Cine-Teatro Mouzinho da Silveira, em Castelo de Vide, ou o Largo da Igreja de Santo António das Areias. Neste último local, por exemplo, este ano vai ser exibido o filme “Memórias de Contrabando”, que conta a história daquela região.
Ao transbordar para Espanha, as telas gigantes do festival ocupam a Plaza de España, em San Vicente de Alcántara, e o Museo Vostell (de arte contemporânea), em Malpartida de Cáceres. Cada sessão chega a ter cerca de 50 pessoas a assistir e o festival conta ainda com caminhadas pela região, visitas guiadas por diversos espaços, atividades de literatura e música.


“O objetivo é levar a arte a estas zonas rurais e desenvolver o pensamento crítico desta região. De outra forma, estas pessoas não teriam como aceder a estas obras”, explica Paula Duque, fundadora e diretora do festival. Volvidos 10 anos desde a primeira edição, Paula “nunca pensou assistir a uma mobilização social tão grande como a que o festival envolve atualmente”. Quando arrancou, o Periferias desenvolvia-se apenas do lado de cá da fronteira, mas com o passar do tempo foi ganhando o interesse das populações espanholas mais próximas, tendo-se tornado uma plataforma de aproximação e partilha cultural entre as populações transfronteiriças. “Temos uma dívida a saldar com estas populações”, afirma Paula Duque. Em 10 anos, o Periferias já recebeu mais de 40 mil visitantes e este ano conta com extensões a Portalegre, Arronches e Campo Maior, em jeito de celebração da data redonda.
CISMA: criar estrutura para artistas se fixarem na Covilhã
Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que entre 2011 e 2021, Portugal registou um decréscimo populacional de 2 % e acentuou a dinâmica de concentração da população no litoral. A região da serra da Estrela, no centro do país, foi também uma das que mais perdeu habitantes. A Covilhã, uma das cidades mais populosas da região, perdeu cerca de 10 % dos residentes neste período. Nem o facto de ser uma cidade universitária tem permitido atenuar o despovoamento. A escassa oferta de trabalho e recursos não ajudam, mas formaram a tempestade perfeita para que um grupo de jovens decidisse intervir e remar contra a corrente do abandono do interior do país.
Falamos da Cisma, uma associação que se formou no último ano, a partir da fixação de 11 jovens, ligados a áreas tão distintas como moda, economia, informática, comunicação ou som, com o intuito de fomentar a arte e dar uma nova vida cultural àquela cidade, posicionada no distrito de Castelo Branco. Os elementos da associação estão ligados à Covilhã, ora pelas origens familiares ora pela vida académica conectada à Universidade da Beira Interior. Alguns deles chegaram mesmo a sair dali, para outras cidades mais populosas, mas decidiram voltar. Um movimento que pretendem que se torne mais frequente entre os demais. “Queremos incentivar as pessoas que passam pela Covilhã a ficarem mais tempo e a instalarem-se aqui, com os seus projetos. Para isso, é necessário que sintam que há uma estrutura, uma plataforma que os apoia e a Cisma pretende preencher essa lacuna”, explica João Ferreira, um dos responsáveis pela associação.
Depois de viver dois anos no Porto e dois em Lisboa, João está agora num processo de regresso à cidade onde cresceu, para se dedicar à Cisma, cuja principal missão passa por reabilitar o Centro Comercial da Covilhã. Este, que foi o primeiro centro comercial a surgir na cidade, entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, foi assistindo a um progressivo abandono. De um total de 27 lojas distribuídas por três andares, contam-se pelos dedos de uma mão aquelas que se mantêm ativas.


A Cisma assume, para já, seis dessas lojas desertas, que vai ocupando com artistas e artesãos seus associados. “Temos o ateliê de moda da Raquel e da Rafa, que fazem roupa à medida e upcycling de roupa. Temos um tatuador, o Samuel. Temos a Bárbara, que é uma artista performer de Shibari e trabalha também com artesanato. Noutra das lojas está a Inês, que tem formação em Design Industrial e trabalha com móveis. O seu último projeto estava relacionado com móveis para crianças com autismo”, vai enumerando João Ferreira, em conversa com o Gerador.
No mesmo espaço comercial, situado a poucos metros de distância do Pelourinho que marca o centro histórico da Covilhã, a Cisma está a construir um estúdio de música e um cineclube, com direito a estúdio de fotografia, que estarão disponíveis para o público. “Queremos voltar a incutir nas pessoas o hábito de ver filmes num espaço em comum”, indica o porta-voz. Num futuro mais longínquo, a Cisma que também realiza eventos de música e arte noutros lugares da “cidade-neve”, vislumbra a instalação de uma cantina e um espaço de convívio para os seus sócios, no centro comercial que tem resgatado ao abandono.
Na mesma lógica de valorização territorial e recuperação histórica, a Cisma vai também reeditar o livro Café Montalto (2003), obra ficcional do romancista local Manuel da Silva Ramos, inspirada na história dos operários da Covilhã, que em tempos foi um dos maiores polos europeus de lanifícios. “É uma obra muito importante para a região e o autor ficou muito contente por termos tomado esta iniciativa”, lembra João Ferreira.


A Cisma quer transformar-se, assim, num trampolim para artistas que, de outro modo, não teriam como se estabelecer na região da Beira Interior. A população local tem-se mostrado entusiasmada e curiosa com o que estes jovens vão fazendo, dá conta João, que se diz “de coração cheio” com o carinho que a associação tem recebido.
Pés na Terra: festival traz coesão social às Montanhas Mágicas
Um pouco mais acima no território continental português estão as Serras Mágicas, onde se realizou, este ano, pela primeira vez, o festival Pés na Terra, entre os dias 7 e 8 de maio. É o primeiro festival de natureza que abrange as serras de Montemuro, Arada e Gralheira, procurando criar uma maior coesão social num território onde se localizam algumas das aldeias mais remotas de Portugal. “Algumas delas têm apenas dois ou três habitantes e o isolamento é um problema bastante sério nesses casos”, explica em entrevista Marisa Araújo, coordenadora técnica do programa de apoio social CLDS-4G (Contrato Local de Desenvolvimento Social 4ª Geração) afeto a de São Pedro do Sul, concelho onde surgiu a ideia de organizar este evento.
Durante dois dias, o festival Pés na Terra contou com experiências como caminhadas pela natureza, aulas de pilates, de macramé ou de ioga, por entre bosques, degustação de pratos tradicionais confecionados com produtos locais, oficinas de bolas de sementes florais polinizadoras, observação de aves, teatro e apresentação de grupos locais de música tradicional, entre outras iniciativas vocacionadas para toda a família.
Tudo foi organizado com o envolvimento das populações das aldeias. “Envolvemos desde Rancho Folclórico a Grupos de Cantares. Ao mesmo tempo tivemos música eletrónica e música balcânica. Foi uma mistura muito engraçada: além de darmos a conhecer o que estas pessoas fazem, trouxemos expressões diferentes, para dar um ar fresco de cultura às pessoas de cá”, dá conta Marisa Araújo.


Marisa Araújo já foi professora de português e atualmente é coordenadora técnica de um dos CLDS coordenados pela ADRIMAG, associação dedicada ao desenvolvimento rural integrado daquelas três serras. A ideia inicial do Pés na Terra cingia-se a manter as festividades no município de São Pedro do Sul, onde Marisa Araújo nasceu e vive atualmente. No entanto, ao avançar com o projeto, apoiado pela ADRIMAG, todos os seis municípios onde a associação desenvolve os CLDS quiseram envolver-se. E assim o festival estendeu-se por 13 aldeias, distribuídas pelos municípios de Arouca, Castelo de Paiva, Castro Daire, Sever do Vouga e Vale de Cambra, além de São Pedro do Sul, sendo a aldeia da Coelheira, com 11 habitantes, o centro das atividades.


“Organizamos caminhadas com uma vertente gastronómica, com degustação de produtos em cada paragem, como o mel de Urze. Foram os próprios habitantes que deram as sugestões”, conta Marisa Araújo. “Procuramos promover os produtos endógenos desta região. Há formas de viver e modos que distinguem estes territórios que não se encontram em outros lugares.”
Os visitantes que chegaram às Montanhas Mágicas para pôr os “pés na terra” trouxeram um deslumbramento que se espelhou nos próprios habitantes das aldeias, levando-os a inteirar-se da riqueza dos seus costumes. “É o caso da dona Ana e as suas fritas de mel. Ela não ligava nada àquilo. Não se tinha apercebido que tinha ali algo tão especial. Era algo que fazia para os filhos e para os netos, em ocasiões de festa, quando lhe pediam. A verdade é que poucas pessoas sabem fazer aquela receita. Eu própria apercebi-me, devido ao festival, que tínhamos ali um tesouro”, sublinha a coordenadora.


Quando terminou o festival, Marisa Araújo percebeu que toda aquela azáfama tinha deixado enérgicos os habitantes das aldeias. “Por elas teríamos continuado durante mais uma semana”, brinca. “Estas atividades servem também para mudar a forma como estas pessoas se veem. Passam a valorizar mais os sítios onde vivem. Os habitantes das aldeias, que se sentiam esquecidos, acabam por dar mais valor às suas próprias tradições e produtos.”
Marisa sublinha também a importância destas ocasiões enquanto oportunidades para “convidar governantes e representantes de determinadas entidades” a visitar estes locais. “É importante que cá venham para saber quais são as reais necessidades destes territórios. Nada como estar e ouvir as pessoas.”
Goat Community – ocupar a serra com música eletrónica
Além dos habitantes das aldeias, o Pés na Terra deu espaço a um grupo de jovens, de levar avante o seu primeiro grande evento, num dos dias do festival. Receberam cerca de 600 pessoas numa festa de música eletrónica que decorreu no Lugar da Fraguinha, a mais de 1000 metros de altitude, entre as serras da Arada e da Freita. O local estava envolto numa paisagem coberta de carqueja e urze, espécies que em maio pintam de tons amarelo mostarda e o lilás aquelas serras.


O projeto chama-se Goat Community e foi fundado “quase por brincadeira” por Bruno Regueira e Marco Pinto, dois jovens que, depois de terem estado a estudar no Porto, regressaram a São Pedro do Sul para desenvolver negócios dedicados ao turismo e restauração. “Tudo começou com festas que realizávamos durante o pôr-do-sol para juntar todos os amigos que vivem fora, quando estes vêm visitar a aldeia, no verão ou no Natal”, explica Bruno Regueira, ao Gerador. Quando decidiram realizar um evento maior, para cerca de 80 pessoas, e projetar a experiência online, foram surpreendidos pelo alcance que conseguiram. “Chegámos a canais de streaming ligados à sustentabilidade, concretamente a causas para acabar com o plástico nos oceanos, com visibilidade para milhões de pessoas por todo o mundo. Num deles tivemos cinco milhões de visualizações. Conseguimos promover São Pedro do Sul em várias partes do planeta e começámos a receber contactos de promotoras internacionais, interessadas no projeto e no local”, explica Bruno Regueira. “Não tínhamos ideia de que iríamos obter este impacto. Podemos agora contribuir – mais do que imaginávamos – para dinamizar a região e chamar mais jovens.”
O conceito da Goat Community passa pela reutilização de madeira que é desperdiçada por madeireiros da região, para montar as estruturas, assim como outros materiais que encontram desaproveitados. No local das festas, tem associado ainda um pequeno mercado onde promovem projetos de sustentabilidade da região, como marcas de sabonetes, perfumes naturais e biquínis de origem sustentável.


Esta “ocupação da montanha” contribui ainda para a vigilância e sensibilização perante o risco de incêndio. Nos eventos da Goat Community há a preocupação em delinear espaços restritos para quem queira fumar. Há ainda um foco no apoio a estruturas locais. Neste âmbito, a Goat Community já conseguiu apoiar financeiramente os próprios bombeiros, uma associação de pessoas com deficiência e um canil local.
O próximo evento desta comunidade acontece no próximo dia 24 de setembro, também num lugar bucólico das Montanhas Mágicas, ainda a ser revelado. Através da plataforma de venda de bilhetes a que recorrem, os fundadores perceberam que têm vendido bilhetes por todo o mundo, esperando que o próximo evento seja ainda mais especial e que reforce o objetivo de contrariar o despovoamento da região. “Sabemos que não há muita oferta de trabalho na região, a não ser as atividades ligadas ao termalismo, à hotelaria ou à restauração. Temos amigos de infância que saem para estudar e depois acabam por não conseguir voltar e queremos por isso ajudar a região a progredir, em termos económicos, para que as atividades possam diversificar-se e mais jovens consigam fixar-se cá”, explica Bruno Regueira.
Rostos da Aldeia: “os problemas do interior começam a ser discutidos”
A preocupação crescente da sociedade com a sustentabilidade e a pegada ambiental dos produtos consumidos apresentam-se cada vez mais como uma oportunidade para o desenvolvimento económico e social das aldeias de Portugal. O desvio da tendência do consumo em massa tem impulsionado a valorização da confeção artesanal e permitido a criação de novos negócios, que muitas vezes recuperam velhas tradições, dando-lhes um “toque” de modernidade. O comércio online garante depois a estes negócios mais pequenos uma montra para todo o mundo.
Esta foi uma das realidades com que Luísa Pinto se foi deparando, ao longo do seu trabalho de documentação das localidades mais remotas de Portugal que sustenta o projeto Rostos da Aldeia. “Por exemplo, em Campo Benfeito, uma aldeia da Serra de Montemuro a 1100 metros de altitude, existe uma cooperativa de mulheres que não queriam migrar para outras cidades. Para seu sustento, fundaram então uma cooperativa de artesanato – As Capuchinhas –, que faz vestuário moderno com materiais tradicionais, como o burel. Criaram os seus próprios postos de trabalho, fixaram a sua oficina na antiga escola primária da aldeia, onde estudaram, e conseguiram manter-se na aldeia”, conta Luísa Pinto. “Cada vez mais as pessoas procuram este tipo de produtos. Há cada vez mais esta consciência ambiental de que é melhor comprar uma mala feita de modo artesanal, com produtos tradicionais e que duram anos, do que comprar muitas malas, de pouca durabilidade. Isto para dar um exemplo”, indica.


Luísa Pinto é um caso sério de amor ao interior do país. Após 25 anos a trabalhar como jornalista, ligada a questões como a coesão territorial ou os investimentos comunitários, decidiu rescindir contrato para concretizar uma ideia que já lhe palpitava há algum tempo: dar a conhecer a gente que ocupa as aldeias portuguesas. O projeto surgiu na sua cabeça em 2017, quando conheceu Ferreira de São João, uma aldeia localizada na serra da Lousã, que a impressionou pela mobilização de todos os seus 40 habitantes para arrancar eucaliptos, com o intuito de prevenir incêndios.
Naquele ano, a aldeia de Ferreira de São João sobreviveu aos incêndios devido a um antigo sobreiral que cobre uma das zonas para onde o fogo se deslocava, tendo servido de escudo para evitar um mal maior. “A aldeia ficou quase intacta mas a preocupação da população, depois desse episódio, foi a de levantar todos os eucaliptos que tinham sobrevivido em seu redor, para plantarem árvores autóctones, no sentido de protegerem-se contra futuros incêndios. Essa sinergia foi levada para a aldeia através de um habitante novo, o Pedro Pedrosa, engenheiro que nasceu em Leiria e tinha vivido em Lisboa, mas que decidiu instalar-se ali, tendo criado uma associação de moradores, através da qual conseguiu mobilizar todas as pessoas”, relata a fundadora da Rostos da Aldeia. “Se não fosse alguém de fora a trazer todo aquele conhecimento e impulso, provavelmente os habitantes teriam ficado resignados.” Depois de conhecer esta história, Luísa sentiu vontade de descobrir outros casos de dinamização das localidades mais escondidas.
Ferreira de São João foi assim a primeira aldeia a ser retratada pelo projeto Rostos de Aldeia, lançado em setembro de 2021. Através desta iniciativa, Luísa Pinto, juntamente com Tiago Cerveira, videógrafo e autor do projeto O Meio e a Gente (dedicado também a eternizar costumes e tradições do mundo rural), e Filipe Morato Gomes, autor do blogue Alma de Viajante, tem visitado várias aldeias Portugal. Até ao momento, a iniciativa Rostos da Aldeia já retratou as histórias de 10 aldeias. A dinâmica é simples: os três mudam-se durante alguns dias para estas localidades e misturam-se com os habitantes. Ouvem-nos.


“Nunca senti falta de nada”, diz Luísa Pinto, ao percorrer mentalmente os locais por onde já passou. “Em algumas aldeias, é difícil o acesso à Internet. Mas é uma realidade que o Governo já manifestou a intenção de mudar. Está agora a fazer o levantamento de todas as zonas brancas, onde não há telecomunicações. Porque havendo esse serviço, fica tudo muito mais facilitado para atrair população”, sublinha a mentora do projeto.
As histórias que os três responsáveis trazem das aldeias contam-nas em palavras, vídeo e fotografia. Um trabalho que está estampado no website da Rostos da Aldeia, no qual se encontram também recomendações para explorar os diferentes locais. “O objetivo não é romantizar nem dizer que o interior é um mar de rosas. Queremos mostrar que é importante haver iniciativas que dinamizam estes territórios, para que mais pessoas visitem e até se mudem para lá”, explica Luísa Pinto.
É certo que o despovoamento é um problema que “não poderá ser totalmente revertido”. No entanto, Luísa acredita que é possível “contrariar esta tendência ao se normalizar a vida no interior, ao qualificar estes territórios como lugares com qualidade de vida, onde é possível montar um negócio”. E é esse um dos papéis fundamentais da associação sem fins lucrativos Rostos da Aldeia.
Para a jornalista, a pandemia ajudou as pessoas a criar novas formas de vida, que beneficiam as aldeias, seja através da normalização do trabalho remoto seja pela valorização dos produtos locais. “As pessoas começaram a pensar mais no que consumiam, de onde vêm os alimentos, como são produzidos. Estamos num momento de charneira, de mudança da forma como vivemos”, sublinha.
Luísa Pinto nota que a resistência à desertificação do interior do país é também muitas vezes levada a cabo por pessoas mais novas, ao relatar histórias de jovens que trocaram cidades como Madrid ou Lisboa pelo interior de Portugal. Graças a estes, o interior está a fortalecer-se. “Não podemos falar de um êxodo urbano, mas começa a haver uma tendência neste sentido. As pessoas que experimentam as cidades, quando decidem mudar-se para o interior do país levam muita capacidade de pensamento crítico, novas exigências, novas chamadas de atenção. Mostram às pessoas que nunca dali saíram que vale a pena. Levam uma energia nova e impulsionam movimentos, que acabam por surgir com maior espontaneidade e com resultados mais amplos. Com estes projetos, os problemas destas regiões começam a ser discutidos”, conclui a mentora da Rostos da Aldeia.