Há um dado novo nas próximas presidenciais que, desconfio, ainda não entrou verdadeiramente no nosso imaginário. Em janeiro não vamos votar para eleger um Presidente, vamos votar para quem estará presente na segunda volta. Não é uma hipótese exótica do sistema eleitoral, é o cenário de base desta eleição.
Desde 1976 só em 1986 fomos a uma segunda volta. E, mesmo aí, Freitas do Amaral ficou a apenas quatro pontos da maioria absoluta na primeira, com 46,3% dos votos, deixando muita gente com a sensação de que o assunto podia ter ficado resolvido logo ali. Desta vez, olhando para a fragmentação de candidaturas e para as sondagens, tudo indica que nenhum dos candidatos se aproximará de um valor sequer comparável.
Por isso, nas presidenciais de janeiro vamos fazer uma coisa que nunca fizemos em democracia: cada um de nós vai ter duas funções diferentes no mesmo processo. Na primeira volta somos curadores. Na segunda, eleitores. E isto parece um detalhe, mas muda profundamente a forma como olhamos para o ato de votar.
Um curador não escolhe “o melhor” em abstrato, escolhe aquilo que merece ser visto, ouvido, discutido. É isso que vamos fazer na primeira volta: decidir quais são as duas visões de país que merecem disputar a conversa até ao fim. A partir daí, na segunda volta, voltamos a ser o que sempre fomos: eleitores, chamados a escolher entre as alternativas que nós próprios ajudámos a colocar em palco.
A pergunta que me intriga é simples: será que temos consciência disto? É que esta mudança de papel pode empurrar-nos para comportamentos muito diferentes.
Imaginemos dois tipos de eleitor. O primeiro, o eleitor de convicção, pensa: “se há segunda volta garantida, esta é a minha hipótese de mandar um sinal claro”. Vota no candidato que mais se aproxima das suas ideias, mesmo que tenha poucas hipóteses de chegar a Belém. A segunda volta servirá depois para escolher, entre os dois sobreviventes, o “mal menor” ou o “bem possível”. O voto torna-se mais expressivo e menos defensivo.
O segundo tipo, o eleitor estratégico, raciocina ao contrário: “como só dois chegam à final, tenho de impedir que o cenário que mais temo se concretize”. Em vez de votar em quem prefere, vota em quem acha que tem mais hipóteses de derrotar o candidato que rejeita. O voto deixa de ser uma escolha positiva para se transformar numa barreira de contenção.
Nenhum destes movimentos é ilegítimo. São estratégias diferentes dentro das regras do jogo. O problema é quando fingimos que nada disto está a acontecer e continuamos a falar destas eleições como se estivéssemos, desde o primeiro momento, a escolher “o Presidente”. Não estamos. Estamos a escolher “os finalistas”.
Talvez valha a pena, então, fazermos um pequeno exercício de honestidade individual. Quando formos às urnas, em janeiro, convém sabermos em que papel estamos a entrar na cabine de voto. Estou a agir como curador, a tentar garantir que determinadas vozes chegam à final? Estou a agir como eleitor antecipado, já a escolher o meu Presidente numa espécie de primeira mão?
Não há resposta certa e única. Mas há uma certeza: esta será a primeira eleição presidencial em que, de forma clara, o nosso papel se desdobra. Primeiro curadores, depois eleitores. Talvez, se aceitarmos esta realidade em vez de a varrer para debaixo do tapete, consigamos usar as duas funções com mais consciência. E, quem sabe, transformar esta exceção histórica numa oportunidade para pensarmos melhor o tipo de democracia que queremos programar para os próximos cinco anos.